Milhões de empregos em risco na recuperação industrial de Xi Jinping

A China em transformação I: O novo modelo de crescimento desenhado pelo Partido Comunista, assente no consumo e nos serviços, prenuncia tempos difíceis para as províncias que têm no sector mineiro o sustento da sua economia

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Qilai Shen/Bloomberg
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As rochas negras da província de Shanxi  alimentaram a revolução industrial da China, ajudando a forjar o aço com que se construiu caminhos-de-ferro, prédios de apartamentos, torres de escritórios e fábricas ao longo de todo o país e alimentando as centrais eléctricas que lhes fornecem energia. 

Agora, à medida que o Partido Comunista procura um novo modelo de crescimento, mais apoiado no consumo, nos serviços e na inovação, esta  província do interior, onde se situam algumas das maiores reservas de carvão do mundo, está a passar tempos difíceis. Pequim ordenou que  se reduza a extracção em 500 milhões de toneladas cúbicas (equivalente a cerca de 9 por cento da capacidade anual de carvão da China) até 2020, no que poderá ser apenas o primeiro passo numa reestruturação industrial de décadas que irá ser sentida de forma mais acentuada em Shanxi.

Guo Yi, de 36 anos, que trabalhou durante uma década, até Março deste ano, numa mina de carvão pertencente ao Estado, está incluído na primeira vaga de despedimentos.

“Sou um dos que tiveram sorte, porque tenho habilitações”, explica Guo, um contabilista que perdeu o seu posto de trabalho juntamente com 1200 mineiros e pessoal de apoio à superfície no centro mineiro de Datong. Tem feito algumas colaborações pontuais numa fábrica de processamento de minério privada, mas assim ele e a sua família, que inclui um filho de 11 anos, não têm acesso aos benefícios da segurança social. “Os trabalhadores das minas de carvão são os que estão a passar mais dificuldades, porque apenas sabem fazer trabalho manual.”

O desafio que se coloca a Shanxi é partilhado ao longo de toda uma região que se estende pelo Norte industrial da China: como encerrar minas de elevado prejuízo mas que empregam milhões de pessoas com poucas perspectivas laborais na nova economia prometida pelo presidente Xi Jinping. Mesmo ainda antes de os cortes se imporem em toda a extensão, o seu efeito esmagador já se está a fazer sentir. No ano passado, entre as 31 províncias da China, apenas uma outra cresceu a um ritmo mais lento do que Shanxi.

Esta política de equilíbrio instável poderá causar distúrbios sociais, se as alternativas, quer na forma de indemnizações ou de novos empregos, não satisfizerem os que forem deslocalizados. Quando os líderes provinciais de toda a China se reuniram no início deste ano num encontro destinado a definir e concertar políticas, o plano de Shanxi relativo ao desenvolvimento económico e social até 2020 admitiu que a província não tinha envidado suficientes esforços para diminuir a sua dependência face ao carvão e aos negócios subsidiários do carvão – que representam uns imensos 80 por cento do produto interno bruto.   

A piorar a situação surgem as dívidas – as verbas que os mineiros têm direito a receber equivalem ao produto interno bruto anual da província. A extracção de carvão diminuiu 3,5 por cento em 2015 e já caiu cerca de 7 por cento este ano, mas as necessidades de indemnizações para os mineiros continuam a crescer, com 268 mil milhões de yuans (41 mil milhões de dólares) de obrigações a vencer no próximo ano. É um sombrio contraste com os novos focos de crescimento noutras zonas da China, como o vibrante centro de inovação de Shenzhen, em Guangdong, ou as florescentes bases de fabrico de produtos em redor da supercidade de Chongqing, no interior.

Em Lvliang, uma cidade de extracção de coque situada na região oeste da província de Shanxi, uma dona de casa de 38 anos de nome Ma encosta-se a caixotes de cartão na rua e fala das provações que os seus amigos enfrentam à medida que a reestruturação vai avançando. Conta que o seu marido, que trabalhava numa empresa gerida por um “barão do carvão” que agora está preso, foi despedido no ano passado e ainda não recebeu as verbas relativas a cerca de seis meses de trabalho que lhe devem.

“Temos uma família para alimentar e temos que mandar os nossos filhos para a escola”, conta Ma, que recusou a dar o seu nome completo. “Por isso as pessoas por aqui estão a aceitar todo o tipo que biscates que apareçam. Alguns estão a conduzir táxis, outros estão na colheita do milho, outros estão apenas a recolher o que conseguem na rua.”

Ma e outros na sua situação ao longo da cintura industrial do Nordeste são os que mais sofrem com as reformas destinadas a alterar a face da China, de uma economia de médio rendimento para uma de alto rendimento, um caminho já trilhado pelo Japão, pela Coreia do Sul e por Taiwan, e também pelos países ocidentais numa anterior vaga de industrialização.   

Mas mesmo que a China como um todo consiga efectuar essa mudança e consiga nesse processo alcançar o título de maior economia do mundo, não há garantias de que Shanxi alguma vez regresse aos seu dias de glória e de recordes de crescimento, situados no auge da explosão de produção de mercadorias da China em 2010. Basta olhar para Merthyr Tydfil, no País de Gales, que já foi o centro da industrialização da Grã-Bretanha e agora é uma sonolenta estância turística, ou para a Virgínia Ocidental, onde Donald Trump se passeou numa vaga de votos de protesto no seu caminho para assegurar a nomeação republicana para as eleições presidenciais dos Estados Unidos.

O Governo de Xi Jinping comprometeu-se a reservar até 100 mil milhões de yuans para ajudar a restabelecer os cerca de 1,3 milhões de trabalhadores do sector mineiro e cerca de meio milhão de empregados da indústria do aço – isto segundo afirmou em Março Yin Weimin, ministro dos Recursos Humanos e Segurança Social. Mas, enquanto operários  em muitas províncias da China se deslocaram milhares de quilómetros na grande urbanização na era pós-Mao, em Shanxi não há muita tradição de sair de casa, tal era o poder de atracção da indústria do carvão.

“Os habitantes daqui não querem emigrar, os seus horizontes são muito estreitos e eles não querem abandonar as suas casas”, afirma um técnico de mineração, Da, que se encontra connosco junto a uma linha-férrea barulhenta no alto de uma colina que oferece uma visão de uma confusão amarelada e acinzentada de unidades de processamento de carvão nos limites ocidentais de Taiyuan, a capital da província de Shanxi. Como muitos outros por aqui, Da que recusou dizer-nos o nome completo, diz que há meses que não recebe ordenado.

“Sejamos honestos: os trabalhadores das minas não têm qualquer outra habilitação a não ser para escavar carvão do solo”, diz Da, de 40 anos, que aprendeu o ofício numa escola construída pela sua companhia. “Graças a Deus que trabalho numa mina que é propriedade do Estado. Se fosse propriedade privada, eu há muito que já tinha sido despedido.”

Barões do carvão reinventam-se

Embora este ano se tenha registado uma ligeira recuperação, os preços do carvão mantêm-se bem abaixo dos níveis dos anos de grande expansão, que permitiram que “barões do carvão” do sector privado vindos do nada se tornassem milionários e conhecidos (e tristemente famosos) por todo o país devido aos seus Bentleys, Hummers, banquetes sumptuosos e mansões no estrangeiro.

Guo Cailiang, de 58 anos, chegou a ser dono de dez minas de carvão em Shanxi. Vendeu tudo ao Governo por 800 milhões de yuans numa anterior ronda de reordenação do sector do carvão, em 2008, que foi imposta após uma série de acidentes em minas de todo o país que levaram à intervenção estatal.

Guo utilizou um quarto dos seus lucros na construção de um refúgio no campo nos arredores de Gujiao aninhado num vale onde costumavam estar os poços de minas a céu aberto. A estrada para a propriedade está ladeada com estátuas de chineses famosos, a relva está polvilhada com pequenos moinhos de vento de plástico. 

No complexo de quartos de hóspedes construídos em redor de um calmo pátio com fontes e pavilhões de pedra, Guo diz-nos que tem mais de 200 empregados e está contente por não ter que gerir uma mina perigosa e suja. Começou a ter lucro este ano, auxiliado pela venda, através do seu site na Internet, dos produtos de uma  pequena quinta e herbário. Também ali possui um campo de minigolfe e um edifício de betão amarelo de aspecto banal designado como de “cinema em 7D”.    

“Comparado com a venda de carvão, o meu parque é um negócio muito mais relaxante para se ter. A entrada de dinheiro pode não ser tão significativa, mas tenho muito mais paz de espírito”, explica Guo numa entrevista  que nos concede num dos quartos de hóspedes, que custam 1200 yuans por noite aos fins-de-semana. “É muito mais fácil lidar com os meus empregados do que com os trabalhadores de uma mina de carvão. E o sector do turismo apresenta um potencial de desenvolvimento ilimitado. Toda a gente necessita de consumir e relaxar, não é verdade?”

Outros esforços para criar novas indústrias não têm resultado tão bem. Em Xinghua, uma aldeia com uma tradição de 6 mil anos na destilação da bebida alcoólica preferida da nação, dez empresários, vários deles enriquecidos  com o carvão, construíram o que esperavam que viesse a ser a maior destilaria do país. O baijiu, uma bebida transparente e forte, tem um papel crucial no bom desenrolar de faustosos jantares de negócios por toda a China, e especialmente aqui em Shanxi.  

Mas seis anos após a apresentação dos primeiros projectos para a fábrica, a produção ainda não se iniciou. Três dos dez investidores iniciais estão presos após terem falhado o pagamento de dívidas, segundo um relatório de Dezembro de 2014 publicado no jornal electrónico 21st Century Business Herald. Construída em estilo imperial chinês, por fora parece uma antiga cidade muralhada, com torreões, enquanto uma olhadela ao interior permite ver longas avenidas que nos transmitem a sensação de estarmos no cenário de um filme chinês de aventuras heróicas. Previa-se que daria emprego a 30 mil pessoas.

Xiangli Jiaxiong, de 33 anos, um técnico de baijiu cuja função é criar a mistura que permite um gole perfeito desta bebida alcoólica,  afirma que é uma de 500 pessoas que estão a trabalhar no projecto. A produção deverá iniciar-se no segundo semestre deste ano, avança. “Este projecto é um bom exemplo da alteração industrial de Shanxi, que estava dependente do carvão, para iniciativas pouco poluentes e com um imenso potencial de emprego. No geral é um bom negócio para as pessoas daqui”, diz Xiangli.

Chamadas telefónicas para os três números listados pela companhia não foram atendidas.

O Governo regional de Shanxi está também a tentar fazer  a sua parte. Decretou que a frota de 8 mil táxis de Taiyuan, a capital, seja substituída por veículos eléctricos, na condição de que a BYD Co. Ltd. (o maior fabricante de automóveis movidos a energias renováveis da China) instale uma fábrica na cidade, para gerar postos de trabalho para os habitantes locais e construir os veículos necessários.

Mesmo com tais medidas, o carvão continuará a ser o elemento mais decisivo no ambiente económico de Shanxi no futuro próximo, de acordo com Chang Yijun, director-geral da empresa de pesquisas económicas e industriais Fenwen Energy Consulting Co.

“O núcleo da competitividade de Shanxi reside no carvão, e será uma luta conseguir efectuar uma transição para outro paradigma”, afirma Chang. “Limitada pela sua cultura e tradição, pela sua geologia e pela tecnologia, Shanxi não se adequa a uma economia alternativa. Tem que se apoiar no carvão.”

 

Primeira de uma série de reportagens sobre os 50 anos da Revolução Cultural chinesa, a publicar até domingo

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