Madeira

Espírito Santo na Madeira

O vermelho das bandeiras e das opas vestidas pelos homens que transportam as insígnias. As vozes das crianças que cantam ao entrar e ao sair de cada casa e dentro de cada uma delas.  O padre que serve uma bebida a quem está. A alegria da partilha sentida por quem abre a porta ao “Espírito Santo”.

Adriano Miranda
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Adriano Miranda

Vai o padre de casa em casa e com ele um magote. Primeiro, dois homens com bandeiras vermelhas. Depois, três meninas a atirar pétalas de rosa e a cantar: “Aqui chega uma visita, que já não chegou há tanto, recebei com alegria o divino Espírito Santo.” E quatro músicos a tocar os seus instrumentos, um menino a segurar a água benta. Por fim, o padre e o organizador da festa, o chamado “festeiro”, ou um substituto, a recolher as ofertas.

Em nenhuma outra altura se limpam tanto as casas do vale de São Vicente, no Norte da ilha da Madeira. Há quem passe a semana a aspirar, a espanar, a escovar, a varrer, a lavar, a esfregar. No sábado, ainda fazem o pão com batata-doce, o bolo de família e outras iguarias para pôr na mesa da sala, que ninguém há-de tocar até chegar “a divina visita”.

Um detalhe ajuda a tradição a resistir. “O vale de São Vicente manteve a presença do sacerdote”, diz o padre Hugo Gomes. “Em quase todas as outras paróquias [da ilha], isso desapareceu.” Começa no primeiro domingo a seguir à Páscoa num sítio e prossegue nos outros, domingo a domingo, até percorrer as suas três paróquias. O padre da outra paróquia faz o mesmo. São apenas uns minutos em cada casa. Aproveita-os para saudar, fazer uma oração, dizer uma graçola, servir uma bebida, benzer alguma imagem. “É a grande festa da família”, entende. Guisa-se cabrito ou assa-se vaca e à mesa arrumam-se familiares e amigos de perto e de longe. “Aqui, o Espírito Santo é rico porque estamos todos juntos. Estar sozinho é até uma vergonha.”

Na origem de tudo isto está o pensamento de Joaquim de Fiore (1130-1202), segundo o qual a humanidade já vivera a idade do Pai e a idade do Filho e haveria de viver a idade do Espírito, a da confraternização. Garantem estudiosos como João Luís Rodrigues Gonçalves que a rainha Santa Isabel (1270-1336) é que começou a festa: em Alenquer, fez coroar um pobre e distribuir esmolas. A devoção desembarcou na Madeira com os franciscanos, que acompanharam o povoamento. Subsiste, como nos Açores, embora de modo diferente.

Naquele tempo, na festa do Pentecostes — 50 dias depois do Domingo de Páscoa, dia em que, pelo calendário Católico, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos — coroava-se um “imperador” e distribuía-se o “bodo”, as esmolas, pelos pobres. Agora, cada freguesia tem o seu jeito. Em São Vicente, não há “bodo”, nem “imperador”, nem pobres à espera de ofertas. Há paroquianos que, por promessa ou gosto, se voluntariam para organizar a festa. E paroquianos que oferecem dinheiro “para a salva”. Metem-no na coroa do Espírito Santo, transportada pelo “festeiro”, que, como os outros leigos, usa uma opa vermelha, cor de fogo, símbolo de “amor de Deus”. Ali, vai todo para a manutenção da Igreja de Nossa Senhora da Saúde.

Teresa Pestana, a “festeira” do último domingo, é grande devota. “O Espírito Santo é uma palavra infinita”, diz. “O corpo nada manda na gente. Só manda o espírito. Morreu o espírito, morreu tudo. É verdade ou mentira?” Já foi “festeira” sete vezes. “É a alegria que sinto de ter o divino Espírito Santo na minha casa. Uma pessoa com 81 anos que ainda recria a sua casa, planta a sua fazenda, tem as suas farturas. Tudo faço com as minhas mãos! Então não é o Espírito Santo que eu tenho?”

A primeira vez foi há muito. Só tinha dois filhos. Teve outros nove. Estava o marido no Canadá, prometeu ele: “Um dia que eu tenha onde criar galinhas e porcos, uma fazenda para trabalhar e uma casa melhorzinha, tiro a ‘dominga’ três anos seguidos.” “Tinha esta casa, tinha a fazenda à roda, quis pagar as promessas”, recorda ela. “No primeiro ano, adoeceu, pegou lume na casa, foi para o hospital. Fui vê-lo e perguntei: ‘As nossas promessas?’ Ele disse: ‘Tira-se igual. Vais a uma pensão, pagas o almoço, pagas o jantar, que eu não posso ir.’ O Espírito Santo foi tão bom que ele veio na sexta-feira [anterior] para casa. Ele sentou-se e disse: ‘Meu divino Espírito Santo, ajuda-me a pagar as promessas, nem que eu morra daqui a um ano. Pois ele pagou os três anos seguidos e, oito dias antes de o Espírito Santo voltar, morreu. Ele morreu, eu fiquei. Eu cá estou bem!”

Haveria de “cantar e bailar” até tarde naquele domingo, 24 de Maio. A festa com o jovem pároco tem outra graça. Ele não faz grandes sermões, prefere mensagens curtas, mas incisivas, como esta: “Quando o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos, eles começaram a falar diferentes línguas. Só assim conseguiriam comunicar com outros povos. Hoje, que tanto se estuda línguas, o grande desafio é compreender quem vive ao lado.”

Deita-se fogo a assinalar a proximidade do “Espírito Santo”
Deita-se fogo a assinalar a proximidade do “Espírito Santo” Adriano Miranda
Três meninas, as "saloias", cantam: “Aqui chega uma visita, que já não chegou há tanto, recebei com alegria o divino Espírito Santo.”
Três meninas, as "saloias", cantam: “Aqui chega uma visita, que já não chegou há tanto, recebei com alegria o divino Espírito Santo.” Adriano Miranda
As "saloias" atiram pétalas de rosa
As "saloias" atiram pétalas de rosa Adriano Miranda
Teresa Pestana é “festeira” pela sétima vez
Teresa Pestana é “festeira” pela sétima vez Adriano Miranda
O "Espírito Santo" é uma alegria para as três meninas
O "Espírito Santo" é uma alegria para as três meninas Adriano Miranda
O fogueteiro acompanha o "Espírito Santo"
O fogueteiro acompanha o "Espírito Santo" Adriano Miranda
Os foguetes ecoam
Os foguetes ecoam Adriano Miranda
Vem família de perto e de longe
Vem família de perto e de longe Adriano Miranda
Nas paróquias do vale de São Vicente manteve-se a tradição da presença do sacerdote
Nas paróquias do vale de São Vicente manteve-se a tradição da presença do sacerdote Adriano Miranda
O dia é longo e o cansaço grande no fim
O dia é longo e o cansaço grande no fim Adriano Miranda
É tradição beijar a bandeira do "Espírito Santo"
É tradição beijar a bandeira do "Espírito Santo" Adriano Miranda
O padre é sempre bem recebido
O padre é sempre bem recebido Adriano Miranda
“É a grande festa da família” diz o padre Hugo Gomes
“É a grande festa da família” diz o padre Hugo Gomes Adriano Miranda
As espetadas em pau de Loureiro são uma tradição
As espetadas em pau de Loureiro são uma tradição Adriano Miranda
Os músicos tocam em todas as casas
Os músicos tocam em todas as casas Adriano Miranda
As casas são todas arrumadas e limpas para receber o "Espírito Santo"
As casas são todas arrumadas e limpas para receber o "Espírito Santo" Adriano Miranda
Algumas imagens são benzidas em cada casa por onde passa o sacerdote
Algumas imagens são benzidas em cada casa por onde passa o sacerdote Adriano Miranda
Espreita-se pela janela com a ansiedade da espera pelo "Espírito Santo"
Espreita-se pela janela com a ansiedade da espera pelo "Espírito Santo" Adriano Miranda
“Quando o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos, eles começaram a falar diferentes línguas. Só assim conseguiriam comunicar com outros povos. Hoje, que tanto se estuda línguas, o grande desafio é compreender quem vive ao lado”, diz o padre Hugo Gomes
“Quando o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos, eles começaram a falar diferentes línguas. Só assim conseguiriam comunicar com outros povos. Hoje, que tanto se estuda línguas, o grande desafio é compreender quem vive ao lado”, diz o padre Hugo Gomes Adriano Miranda
Uma imagem de João Paulo II é benzida
Uma imagem de João Paulo II é benzida Adriano Miranda
Os homens esperam a chegada do "Espírito Santo"
Os homens esperam a chegada do "Espírito Santo" Adriano Miranda
O descanso de quem anda com as bandeiras
O descanso de quem anda com as bandeiras Adriano Miranda
O representante da "festeira" é que leva a "coroa"
O representante da "festeira" é que leva a "coroa" Adriano Miranda
São três os envelopes com dinheiro que as famílias preparam
São três os envelopes com dinheiro que as famílias preparam Adriano Miranda
É na "coroa" que são colocados os donativos
É na "coroa" que são colocados os donativos Adriano Miranda
As imagens religiosas são uma constante
As imagens religiosas são uma constante Adriano Miranda
O padre é que distribui as bebidas
O padre é que distribui as bebidas Adriano Miranda
Adriano Miranda