O crescente fosso da desigualdade: a inevitabilidade e a irrelevância (?)
Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Mas será esta a realidade? Uma análise dos autores do livro Mercados – São Mesmo os Grandes Culpados das Crises?
Tenacidade é um dos métodos, segundo Charles S. Peirce (filósofo americano - 1839-1914) para o estabelecimento das nossas opiniões e a fixação das nossas convicções, e que caracteriza do seguinte modo: podemos tomar uma proposição e repeti-la para nós mesmos, concentrando-nos em tudo o que a suporta e voltando as costas a qualquer coisa que a possa desafiar. Mas para tratar do tema da desigualdade, já tão generosamente glosado segundo aquele método, preferimos o método também proposto por Peirce que postula a existência de coisas reais cujas características são inteiramente independentes das nossas opiniões sobre elas; procurando, assim, tirar proveito do que sabemos para nos aproximar mais do que não sabemos, ainda.
Com efeito, esclarecidas as questões quanto ao método, queremos com o termo desigualdade significar o hiato de rendimento que se define entre os termos da comparação que mais genericamente se estabelece na discussão deste tópico, a saber: (i) a diferença de rendimento entre os países mais pobres e os países mais ricos; e (ii) as diferenças salariais num quadro de livre comércio. Procuraremos, pois, desenvolver esta reflexão em torno destes dois polos do tópico, muito valorizado na obra de Angus Deaton, Nobel da Economia de 2015.
O fosso da desigualdade entre países ricos e os países pobres
Partindo do que sabemos, comecemos por revisitar o quadro de reflexão do Prof. William O. Thweat (de quem tomámos o título deste artigo) sobre a definição e o alargamento do fosso da desigualdade de rendimentos entre países ricos e países pobres. Iniciamos esse percurso pela definição do que o autor designa por “taxa de ultrapassagem”: quociente entre a taxa de crescimento dos países mais pobres e a taxa de crescimento do país mais rico de referência, ou seja, o indicador da dinâmica do fosso de rendimento. Se superior a um, estaremos perante uma dinâmica de redução do fosso; se inferior a um, revela o alargamento do fosso de rendimento.
Uma análise centrada exclusivamente no crescente hiato do rendimento com descuidada extrapolação sobre a evolução da pobreza no mundo, como frequentemente se vê fazer, pode ser um obstáculo sério ao estudo lúcido deste importantíssimo problema social e económico, como seguidamente se pretende ilustrar de forma numérica.
Conforme se constata a partir dos dados do Banco Mundial, o crescimento observado nos países com o PIB per capita mais elevado tem sido claramente inferior ao registado nos países com PIB per capita mais baixo (3,9% por ano face aos 7,4% por ano observados no período compreendido entre 1999 e 2014). Apesar disso, o hiato de rendimento entre os dois grupos de países, em termos absolutos, aumentou claramente, com o diferencial entre o PIB per capita a passar de 21.223 USD para os 37.184 USD.
Uma leitura apressada destes dados poder-nos-ia levar à seguinte conclusão: Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Mas será esta a realidade?
Analisemos, as projeções do Banco de Mundial sobre a pobreza no mundo. De acordo com os últimos dados, 702 milhões de pessoas, ou seja, 9,6% da população mundial, vai ainda este ano (2015) viver abaixo da linha de pobreza. Todavia, em 2012 essa cifra era de 902 milhões, 13% da população mundial, que compara com 29% em 1999.
Conforme se observa, a pobreza no mundo caiu significativamente, não obstante o alargamento do hiato de rendimento entre países mais ricos e países menos ricos.
O impacto da integração europeia
Ao procurar outro foco de luz sobre este mesmo tópico da divergência na distribuição do rendimento, agora no âmbito de uma economia específica - Portugal -, no quadro dado de crescente integração no comércio internacional, ocorre-nos, naturalmente, revisitar o modelo de Heckscher – Ohlin e, em particular, o designado “Teorema da Igualização do Preço dos Factores Produtivos”.
De acordo com este teorema, e como consequência do comércio internacional, produz-se uma tendência para a igualização dos preços relativos e absolutos dos factores produtivos. O comércio internacional funciona assim como substituto da mobilidade internacional dos factores produtivos.
De acordo com a informação disponível, tal parece ter acontecido nos últimos anos na Europa, em benefício claro dos países mais pobres. Na realidade, se em 2002 o salário dos quadros superiores em França era o dobro do registado em Portugal para o mesmo universo de pessoal qualificado, em 2013 esse valor terá caído para cerca de 1,6. Leitura idêntica obtém-se quando se analisa a relação entre os salários dos trabalhadores não qualificados - em 2002 o salário em França era 1,4 vezes superior, tendo passado a 1,2 vezes em 2013.
Apesar da convergência salarial observada com o processo de integração europeia, será que adentro de cada país, nomeadamente em Portugal, a diferença salarial entre as profissões mais qualificadas e menos qualificadas aumentou ou diminuiu?
Conforme se constata, nos primeiros anos de integração europeia os salários dos quadros superiores eram em média cerca de 3,6 a 3,8 vezes maiores do que os salários dos trabalhadores não qualificados, tendo este valor crescido para cerca de 4,5 vezes em 1998-2002, facto que traduziu um agravamento das desigualdades salariais. Contudo, a partir de 2005, o diferencial reduziu-se significativamente voltando em 2013 a níveis de 1986.
Como explicar então este aparente paradoxo? Ou seja, como explicar que a desigualdade salarial entre países tenha diminuído no quadro europeu mas que adentro dos países menos desenvolvidos essa desigualdade salarial não tenha diminuído logo após o início do processo de integração europeia (1986)?
A explicação para isto pode estar num fenómeno que, em teoria económica, é mais conhecido pelo efeito de Kuznets ["Economic Growth and Income Inequality", in American Economic Review, Março de 1949]
De acordo com Kuznets (1901-1985, prémio Nobel da Economia em 1971), nos estágios iniciais do crescimento económico de um país a desigualdade vai aumentar. Isso acontece porque nessa fase do crescimento vai ocorrer um aumento grande na procura por mão-de-obra qualificada, elevando os salários dos trabalhadores qualificados em detrimento dos não qualificados.
Reflexões finais
A problemática da desigualdade de rendimentos entre os países mais ricos e os países mais pobres tem sido alvo de acesa discussão nas últimas décadas. Recorrentemente, valorizamos os insucessos visíveis com o acréscimo no fosso de rendimento entre países ricos e países menos ricos, ignorando os ganhos significativos que obtivemos ao nível da eliminação da pobreza à escala mundial e que se traduzem nas seguintes palavras de Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial: "Somos a primeira geração na História que pode eliminar a extrema pobreza".
Por outro lado, a asserção de Kuznets, que tão bem reflectia as fases mais precoces dos processos de crescimento económico dos países mais periféricos, amplia, no quadro de uma economia mundial que progressivamente foi passando para níveis de maior interdependência, o domínio da sua pertinência.
Com efeito, os países onde tem predominado uma economia assente numa mão-de-obra relativamente menos qualificada têm vindo a assistir, sobre diferentes formas, à crescente concorrência do vasto conjunto de países no mesmo patamar de competências, com as conhecidas consequências: (i) a pressão sobre os salários e (ii) o desemprego da mão-de-obra não qualificada. Ao invés, a mão-de-obra qualificada dos países da periferia, tem vindo a beneficiar do efeito de abertura da economia mundial e os seus efeitos são também bem conhecidos: (i) a forte potencial de atração dos países do centro por níveis elevados de qualificação tem impulsionado a forte mobilidade dos que a possuem, (ii) induzindo a valorização interna desses segmentos superiores de qualificação.
Daqui resulta que, num quadro crescente de integração económica à escala mundial, a qualificação dos recursos humanos apresenta-se como a única via para evitar que os trabalhadores dos países mais ricos, nos quais Portugal se inclui, sejam vítimas de uma inevitabilidade teórica: convergência salarial com os países mais pobres.