Rui Vitória, o imperturbável

É discreto, trabalhador, determinado. O treinador que guiou o Benfica até ao tricampeonato dá tanta importância aos aspectos tácticos como à dimensão humana. Gosta de estar ao lado dos jogadores nas horas de aperto, mas também lhes exige o máximo empenho e submissão ao interesse colectivo.

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Rui Vitória chegou ao momento mais alto da sua carreira como treinador no Benfica PATRICIA DE MELO MOREIRA/AFP

Há uma regra no manual da vida privada de Rui Vitória que não oscila ao sabor das mudanças na carreira. Primeiro em Alverca, depois na Póvoa de Santa Iria, em Paços de Ferreira, em Guimarães e agora na Charneca de Caparica - o futebol fica à porta de casa, dê por onde der. Quer isto dizer que é tema tabu? Não necessariamente. Quer dizer, simplesmente, que o treinador do Benfica gosta de manter distâncias, de resguardar a família das ondas de choque muitas vezes provocadas por uma maré de remates falhados ou passes errados de um qualquer fim-de-semana desportivo. Ao futebol o que é do futebol, à família o que é da família.

Discrição. Discrição é uma palavra que assenta bem ao perfil do homem (e é o próprio que coloca sempre a dimensão humana à frente da profissional) que, anteontem, promoveu um reencontro do Benfica com uma dimensão já distante da sua história. O tricampeonato, conquistado na última estação de uma viagem em que a equipa chegou a parecer apeada, foi uma espécie de esvaziar de balão para um técnico que nunca deixou transparecer o peso da carga que transportou aos ombros. A desconfiança, a pressão, as polémicas, tudo isso se desvaneceu durante um par de horas. E tudo isso regressará quando a bola voltar a rolar.

Venha o que vier, a “carapaça”, um conceito figurado que Rui Vitória usa com frequência nas conferências de imprensa, está lá para o proteger. Com a força do destino, começou a ser entalhada na tarde de 21 de Setembro de 2002, quando recebeu um telefonema com a notícia que ninguém quer ouvir: os pais tinham morrido. Amante de pesca, Avelino da Vitória cumpria o trajecto de regresso a casa, depois de ter feito uma marcação para o dia seguinte, quando o carro que conduzia se despistou. Lá dentro, para além da mulher, seguia outro casal. Seguiam os pais do melhor amigo, e padrinho da primeira filha, do então médio do Alcochetense.

Rui Vitória tinha 32 anos e um jogo da III divisão para disputar no dia seguinte. Um jogo em que não participou, naturalmente, ainda sem saber que a sua vida estava prestes a levar outra grande volta. Uma semana mais tarde, recebeu dois telefonemas com o mesmo propósito, separados por pouco mais de meia hora. O primeiro do Vilafranquense, o segundo do Alcochetense. Subitamente, tinha um duplo convite para deixar para trás a modesta carreira de jogador e abraçar, precocemente, o cargo de treinador.

Era o momento certo para se desenvencilhar da alcunha de “Pé de chumbo”, que ganhara em campo graças ao forte remate que o caracterizava, e para dar largas aos seus atributos de líder e organizador por excelência. Haveria de manter contacto com os balneários das divisões inferiores, mas a partir de agora com a braçadeira de treinador em redor do bíceps. A sua faceta de comando, de pensador do jogo dentro do relvado, reconhecida por vários dos antigos colegas, transferia-se para fora das quatro linhas.

Optou pelo Vilafranquense, clube que competia na II Divisão e no qual, ironicamente, também tinha um passado como jogador e, acima de tudo, como capitão. Era um regresso a casa, com novos atributos. Era o início do segundo capítulo de uma aventura pelos labirintos do futebol, que começara, ainda criança, no Alverca, muito por influência do pai, antigo guarda-redes do emblema ribatejano. Aquelas manhãs e tardes de fim-de-semana passadas nas bancadas, com as partidas das camadas jovens a desfilarem-lhe diante dos olhos, umas após as outras, eram interrompidas apenas pela pausa de almoço. E o gosto pelo jogo pegou de estaca.  

Com ele, vieram as expectativas e as preocupações, quase todas carregadas no coração da mãe. Foi por isso, por ela já não poder estar ali, para presenciar aquele momento em que se estreou no banco como treinador, que o dia 1 da sua nova carreira teve um sabor agridoce, como revela no livro que editou ainda antes de se mudar para a Luz, A arte da guerra para treinadores. A indefinição acerca do futuro do filho mais novo, a fase pós-futebolista, era uma angústia que estava presente. Mas o “pequeno” Rui haveria de sair bem.

Por essa altura, já tinha tirado o curso de Educação Física, com uma posterior especialização em futebol, depois de um percurso sólido nos diferentes degraus do ensino. A excepção foi o 12.º ano e o relaxamento que adveio de uma abordagem mais desprendida aos estudos, quando o sonho de ser futebolista lhe toldou a razão. O caminho para o sucesso começara a ser desbravado e a experiência que recolhera nas relações dentro e fora do rectângulo de jogo haveria de provar-se útil.

Foi esta combinação das valências académicas com o lado empírico do futebol que lhe deu algum conforto no momento de encarar os desafios. A armadura psicológica que vestiu depois da morte dos pais fez o resto. Qualquer tempestade desportiva que sobre ele se abatesse, era encarada como uma brisa leve quando recuperava a memória daquele dia em que foi obrigado a regenerar-se.

Daí em diante, foi atirado para o futebol real. Lidou com orçamentos simbólicos nos escalões inferiores, numa altura em que ele próprio não recebia mais de 1000 euros, enfrentou de peito aberto várias e sucessivas crises de salários em atraso, que muitas vezes impediam os jogadores de se treinarem, mas o seu percurso inicial em Vila Franca despertou atenções. E Vitória viu-se na iminência de ter de escolher: aceitar uma das várias ofertas que lhe surgiram na II Divisão ou arriscar com uma aposta nos juniores do Benfica. Decidiu-se pela segunda e, em 2004, mudava-se para a Luz.

No primeiro ano, discutiu o título até final; no segundo, fez as malas e mudou de rumo. Próximo destino: Fátima. Consigo, levou pela primeira vez o braço-direito que desde então o acompanha, Arnaldo Teixeira, para fazer as vezes de adjunto. Para além de detectar mérito profissional num colega que conhecera na escola em que leccionou, via nele o prolongamento da sua concepção do que deve ser um treinador e de como deve articular-se com o seu staff.

O resto é história. No Fátima, clube que representou durante quatro épocas, subiu à II Liga e foi projectado para a ribalta graças a uma eliminatória da Taça da Liga, que terminou com a eliminação do FC Porto. Nesse momento, Rui Vitória percebeu também que estava talhado para outros voos, que quanto mais investia na carreira (para esse embate com os “azuis-e-brancos” apostou forte na observação e análise detalhada ao adversário) mais frutos colhia. E o fruto seguinte chamou-se Paços de Ferreira.

O preço a pagar pelo redimensionamento das ambições profissionais foi quase todo de base familiar. Obrigado a viver sozinho, Vitória colmatava a distância de casa com um investimento acrescido no futebol e com um passatempo de longa data que ainda hoje alimenta. Decidiu-se, então, a comprar uma bateria digital e, de baquetas em punho e auscultadores nos ouvidos, espantava o stress durante um par de horas depois de um dia de trabalho.

A primeira época no norte do país foi de tal modo convincente que, à 3.ª jornada da época 2011-12, foi resgatado pelo V. Guimarães, para um reinado de quatro anos que acabaria por levá-lo de regresso a Lisboa e ao Estádio da Luz. Acontece que o Rui Vitória que recebeu com espanto o telefonema de Luís Filipe Vieira não era o mesmo Rui Vitória que passara pelas camadas jovens do Benfica. Tinha um passado recente de respeito e um trabalho promissor no Minho para apresentar num currículo que incluía a improvável conquista de uma Taça de Portugal.

Por isso, quando começou a ser sacudido pelas primeiras contrariedades, não abanou. Não abanou com a pré-época desastrosa, não vacilou com a derrota na Supertaça e não tremeu com o mau arranque de campeonato e a derrota retumbante frente ao Sporting, na Luz. “Sou uma pessoa que, por norma, não se desequilibra com nada. Considero que, enquanto treinadores, devemos sempre manter a lucidez para destrinçar a parte mais emotiva da parte mais racional. É fácil escorregar, sobretudo em situações de grande tensão, para o lado mais emocional, por isso, é fundamental manter o equilíbrio”, explica, no livro que teve a primeira edição em Novembro de 2014.

Esta é a versão de Rui Vitória, o imperturbável. A versão que vemos na área técnica dos estádios e nas conferências de imprensa. A versão que é confirmada por variadíssimos jogadores que lhe passaram pelas mãos e por alguns dos membros da actual equipa técnica, como o preparador físico, Paulo Mourão: “Trabalhar com Rui Vitória torna-se lazer e não trabalho”, descreveu durante a festa do título, destacando que a abordagem do treinador facilita a missão do colectivo.

Aos cuidados que dedica aos jogadores, o técnico do Benfica junta os cuidados que tem consigo mesmo. Preocupa-se com a imagem, assume que gosta de se vestir bem e de perfumes caros, e reconhece que é supersticioso q.b., ao ponto de usar o mesmo fato que no jogo anterior coincidiu com uma vitória. É a dimensão psicológica, que tanto aprecia, a fazer o seu caminho.

Fiel às suas ideias - “Quem me conhece sabe que não gosto de seguir o que os outros fazem só porque sim” -, Rui Vitória gosta de manter as luzes acesas para todos os que o acompanham, faz questão de que saibam que o esforço, conjugado com o talento, há-de um dia compensar e insiste junto dos jogadores que têm de estar preparados para as oportunidades. Para o efeito, costuma usar uma metáfora: “O cavalo passa uma vez à porta e temos de estar prontos para o montar”. Até agora, ele próprio tem provado estar à altura dessa máxima. Em 14 épocas como treinador, nunca foi despedido. E em 2016-17 vai manter as rédeas de um puro sangue.

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