“Há gente assim, que se sabe espantar com a beleza”: Cláudia Dias, Tânia Carvalho e Vera Mantero
Três estreias que sublinham a inventividade da dança portuguesa reclamam a memória do corpo, da palavra e da história.
Escolhas difíceis, portanto, porque os calendários de programação fazem coincidir a estreia de Nem tudo o que fazemos tem de ser dito, nem tudo o que dizemos tem de ser feito, de Cláudia Dias (5 a 7, teatro Maria Matos), com as apresentações em Lisboa de Síncopa, de Tânia Carvalho (5 e 6, Appleton Square), e do programa conjunto de solos assinado por Vera Mantero O que podemos dizer do Pierre (2011) e Os Serrenhos do Caldeirão, exercícios em antropologia ficcional de Vera Mantero (2012) (6 e 7, Centro Cultural de Belém).
Muitos espectáculos para quem goste de uma dança que não se define apenas pelo movimento mas pela capacidade de ver no palco um campo de batalha, de pensamento e de reflexão sobre os limites da percepção do próprio corpo como matéria política no sentido mais nobre do termo: o da inscrição num espaço público.
A proposta de Cláudia Dias assume o teatro como “espaço de inscrição” onde possa existir uma memória. Sete intérpretes revelam um texto, construído a partir de um outro, onde a palavra surge como uma construção da memória e não como um símbolo. Ou seja, o efectivo jogo de coordenadas que vamos vendo revelar-se em palco sugere que os corpos dos intérpretes são portadores de uma ideia e não de uma mensagem. São corpos que “reclamam o direito ao exercício de um outro tempo”, diz a coreógrafa que, ao longo dos anos desenvolveu uma coreografia que fica entre o espaço e o tempo, ou seja, entre a forma e a memória.
Diz Cláudia Dias que procura uma relação menos poluente com o tempo”, para que, cita-se do programa “o que é dito e escrito não se dilua, impune, num etéreo e efémero espaço, mas que ecoe publicamente e sejamos todos responsabilizados pelo que vinculamos”.
Para que haja memória, portanto, tal como aquela para a qual Vera Mantero chama a atenção em Os Serrenhos do Caldeirão, exercícios em antropologia ficcional. Este exercício de uma candura e inteligência notáveis, estabelece laços improváveis com uma outra obra de Mantero, esta feita em colaboração com Rui Chafes, Comer o Coração (2004), no modo como procura transformar o corpo num receptáculo da memória e das heranças, ainda que nem todas heranças directas. Ao mergulhar no universo de Michel Giacometti e no trabalho antropológico com as populações da serra do Algarve, Mantero descobre um movimento que é interior, ancestral, telúrico e, por isso mesmo, sensorial. E então, ao vermos como se relaciona com um tronco de cortiça, lembramo-nos do seu corpo suspenso na escultura de Chafes, como se lhe devolvesse vida.
É da ordem do intangível e a frase “Há gente assim, que se sabe espantar com a beleza”, que a coreógrafa escreveu para a apresentação da peça, vem de uma relação entre morte e vida, entre deriva e atravessamento, como explica. Ou seja, no encantamento pelo que é imaterial e se pode perder. “A grande mentira foi fazer do homem um organismo criando uma ordem de funções latentes que escapam ao domínio da vontade que delibera, da vontade decisora”, ouve-se a dada altura desta conferência-performance assinada por quem diz que sempre gostou de “dançar ao som de gente a falar”. Os rostos que vemos em vídeo, os sons da natureza que se confundem com as vozes dos homens e a surpresa que tudo isto causa na coreógrafa, faz a força de um solo que é, também, sobre o que nem sempre admitimos como parte de uma memória colectiva.
De certo modo, aquilo de que Vera Mantero fala é de uma construção do corpo que procura o seu próprio espaço. E isso é ainda mais evidente em O que podemos dizer do Pierre, brevíssimo solo de comovente beleza onde a voz do filósofo Gilles Deleuze é a banda sonora de um movimento onde “o corpo pressiona e empurra espaços, direccionando-se para o chão”. O movimento de Mantero, aquele que a tornou num elemento disruptivo na dança contemporânea portuguesa – e que estes dois solos, mais de vinte anos depois, sublinham – continua “solto e expressivo”. Mas é mais do que isso.
Tal como as palavras de Cláudia Dias vão constituindo, fragmento a fragmento, um enorme texto que só existe na nossa cabeça, também os movimentos de Mantero, indo ao encontro do que é” verbal e não-verbal, racional e irracional”.Tanto Cláudia Dias como Vera Mantero procuram a origem do movimento, ou da acção. Portanto, do momento imediatamente anterior aquele no qual a acção se torna numa consequência e, por isso, propõe logo um significado.
Por fim, Síncopa devolve-nos o essencial do movimento de Tânia Carvalho, melodioso, contido, sedutor, intrigante. Estreado em Maio, em Montemor-o-Novo, evidencia a coerência de um discurso que se desenvolve a partir de uma construção que é, eminentemente, interior. O solo, que parte de um texto escrito a pedido por Valter Hugo Mãe “contém o lado vivo no morto”, e explora um modo de pensar o desaparecimento do próprio movimento, através de um trabalho que integra o desenho de luz na coreografia como se tudo fosse parte composta de uma matéria fragmentada.
O que, em outras coreografias de Tânia Carvalho era porosidade e aspereza, ganha aqui uma corporalidade que nunca se deixa agarrar e que, por isso mesmo, desaparece à nossa frente. A sua brevidade apenas acentua a economia indispensável de meios e de movimentos que a coreógrafa convoca para as suas coreografias, reafirmando a inteligência com que tem vindo a marcar um território criativo para o qual não tem par.
SINCOPA [ Tânia Carvalho ] from VERA LUCIA RITA on Vimeo.