Cumplicidades artísticas em amores barrocos
Ana Quintans, a soprano portuguesa com mais brilho nos palcos da música barroca, protagoniza um CD dedicado a Albinoni e reencontra o contratenor Carlos Mena e o maestro Marcos Magalhães em concerto e numa gravação dedicada à serenata Il Trionfo d’Amore de Francisco António de Almeida.
O recital Dialogo d’Amore, que se realiza no dia 11 na Gulbenkian, traz o reencontro da soprano Ana Quintans e do contratenor Carlos Mena com o cravista Marcos Magalhães num fascinante programa de cantatas e duetos do Barroco italiano e ibérico. Figuras maiores da música antiga a nível internacional, conhecidas pela beleza do timbre e pela sensibilidade estilística, a soprano portuguesa e o contratenor espanhol destacam-se também entre um elenco de qualidade na recente gravação da serenata“Il Trionfo d’Amore, de Francisco António de Almeida (ca. 1702-1755), mais um projecto de Marcos Magalhães e Marta Araújo e dos Músicos do Tejo que está a ser bem acolhido pela crítica internacional. Este álbum duplo, que revela em primeira gravação mundial mais uma obra de relevo composta para a corte de D. João V, faz parte da Bestenlisten da Preis der Deutschen Schallplattenkritik, na categoria de ópera antes de 1800. Trata-se de uma lista dos melhores discos de cada trimestre, que inclui ao lado dos Músicos do Tejo grupos tão importantes como Le Concert Spirituel, Il Pomo d’Oro (com Philippe Jaroussky no elenco), Les Talents Lyriques e uma produção da Komische Oper de Berlim e óperas de Boismortier, Gluck, Handel, Rameau e Monteverdi. Ana Quintans é ainda protagonista de um outro CD com primeiras gravações mundiais, no qual dá a conhecer exuberantes árias do veneziano Tomaso Albinoni (1671-1751) em conjunto com o Concerto de’Cavalieri, de Marcello di Lisa.
“O projecto das cantatas e duetos barrocos que vamos apresentar na Gulbenkian partiu do Marcos Magalhães e da vontade que ele tinha de nos juntar [a mim e ao Carlos Mena] num programa mais intimista”, contou Ana Quintans ao Ípsilon. “Durante as gravações de Il Trionfo d’Amore verifiquei que as vozes da Ana e do Carlos combinavam muito bem e que havia grande sintonia interpretativa”, confirmou Marcos Magalhães. “Atrai-me fazer estes programas com um mínimo de cantores e instrumentistas. Com apenas uma ou duas vozes e baixo contínuo reinventar o mundo todo!”, diz. Para além de Alessandro Scarlatti, “o mestre da cantata de câmara”, e de Handel, o cravista destaca a música de Agostino Steffani, “que ganhou também uma aura de mestre no caso dos duetos.”
Entre as inúmeras cantatas de A. Scarlatti, Ana Quintans escolheu Euridice dall'inferno por lhe parecer adequada ao tema do concerto, assim como a cantata para voz e guitarra No se emenderá jamás, rara tentativa de Handel escrever ao estilo espanhol. “Ao Carlos Mena confiou-se a escolha das suas cantatas (de Handel e de Té y Sagau) e também dos nossos duetos de Steffani e Handel”, explica a cantora, para quem “o grande desafio neste repertório é condensar toda a expressividade e progressão de um personagem num curto espaço de tempo.” Se se tratasse de uma ópera haveria várias cenas e a interacção com outros papéis, mas uma cantata “é umgrande monólogo onde o cantor tem de acumular a função do encenador!” O programa da Gulbenkian conta também com a participação de Daniel Zapico na tiorba e na guitarra barroca e com música instrumental de François d´Agincourt, Frescobaldi, Domenico Scarlatti e Antonio Soler. “Não serão obras concretas tocadas isoladamente, mas fragmentos acompanhados por alguma improvisação. Era algo que se fazia na época, mas que hoje está ausente do concerto erudito”, diz Marcos Magalhães.
A pessoa e o papel certos
Em relação às suas colaborações com Carlos Mena e com os Músicos do Tejo, Ana salienta a “profunda empatia artística”. “Ouvi pela primeira vez o Carlos Mena numa das Festas da Música no CCB e fiquei com uma enorme admiração. Cruzámo-nos anos mais tarde num programa de Mozart e Bach com o maestro Marc Minkowski e a partir daí temos colaborado com alguma regularidade. Em Janeiro fizemos um Stabat Mater de Pergolesi em Genebra e para além do concerto na Gulbenkian temos um programa de duetos de Francesco Durante em Madrid com El Ayre Espanol.” Quanto aos Músicos do Tejo, foi o grupo que mais a apoiou e com quem mais cresceu em Portugal. “Devo-lhes também a descoberta do Francisco António de Almeida. O Marcos e a Marta são músicos comprometidos na entrega e honestos no que fazem, o rigor do trabalho com eles está sempre envolto num ambiente de descontração. O Marcos tem um sentido de humor particular e às vezes vai buscar imagens incríveis para descrever o que quer musicalmente.”
No último CD com os Músicos do Tejo, dedicado à serenata Il Trionfo d’Amore, encontramos o exemplo da referida sintonia artística entre Ana Quintans (Nerina) — a quem cabem algumas das árias mais belas como In queste lacrime, Arsindo, Specchiati — e Carlos Mena (Arsindo), bem patente no dueto “Se m’abbandoni, dolce mia speme”, pontuado por elegantes intervenções das flautas. Outros cantores portugueses de alto nível conferem um carácter distintivo a cada personagem: a soprano Joana Seara como Termosia numa grande variedade de árias, das quais se salienta Leggiadra ninfa; o tenor Fernando Guimarães, que deixa transparecer a vertente cómica de Adraste em prestações eloquentes; a meio-soprano Cátia Moreso dotada de grande verve dramática nas árias de “coloratura” de Giano (ouça-se Orride e dispietate Furie); e o baixo João Fernandes, com a sua voz poderosa, mas ao mesmo templo flexível e de dicção clara em Mirenio. Os Músicos do Tejo sublinham instrumentalmente com segurança e bom gosto a diversidade de affetti que emergem do texto e da música de Almeida e o coro Voces Caelestes é muito eficaz nas suas curtas intervenções.
“É muito importante escolher a pessoa certa para o papel certo”, diz Marcos Magalhães. “Não basta ter qualidade musical, há que descobrir a personalidade adequada. Nem sempre os cantores mais espectaculares em cena são os melhores em disco.” Para uma obra como Il Trionfo d’Amore o maestro valorizou “a sensualidade, a riqueza tímbrica e a subtileza.” A escolha seria diferente se o enredo fosse mais dramático. Sucede que esta é uma obra a meio caminho entre a cantata e a ópera, um “scherzo pastorale” que surge na sequência do divertimentos de corte fomentados pela rainha D. Maria Ana de Áustria. Não há um grande enredo dramático, apenas um conjunto de peripécias que conduzem a uma apologia do amor verdadeiro em detrimento dos planos arquitectados pelos deuses ou pelo poder vigente.
“A Nerina é um personagem um pouco enigmático, calculo que isso tenha a ver com as qualidades vocais e teatrais de quem estreou o papel”, diz Ana Quintans. “A tessitura de soprano noutras obras está claramente definida e é associada ao virtuosismo, ora este papel é surpreendentemente médio para um soprano e é como se lhe faltasse uma ária, precisamente a que faria jus às suas características de heroína. Esse heroísmo está patente num recitativo acompanhado belíssimo mas algo curto.” A cantora acredita que “Almeida pretendia que a personagem se destacasse pela sua serenidade e contenção vocal.”
Como contraste, virtuosismo e dramatismo é o que não falta à maior parte das árias de Albinoni, que Ana Quintans gravou com o Concerto de’Cavalieri. “Nunca tinha trabalhado com o maestro Marcello de Lisa mas conhecia alguns dos músicos da orquestra. Quando fui convidada para o projecto em 2013 toda a parte laboriosa de pesquisa e escolha das árias estava já definida. A tessitura de algumas delas não é propriamente de soprano e os tempos idealizados pelo Marcello eram muitíssimo ambiciosos, pelo que tive de confiar e de me encaixar na sua concepção”, explica Ana Quintans. Agora reconhece que o CD resultou e compreende melhor “a obstinação saudável do Marcello!”
Das árias gravadas, nove são em estreia absoluta e pertencem a óperas como L’Inconstanza Schernita, L’Eraclea, Le Gare Generose e Ardelinda. Ana Quintans diz que “foram difíceis de defender” no sentido em que não temos acesso ao contexto, pois as partituras não subsistem na íntegra. “Nos casos em que o libreto era desconhecido, pensei em papéis doutras óperas que me pareceram ter pontos em comum. Algumas destas árias têm linhas melódicas incríveis, como ‘Quel sembiante e quel bel volto’ e uma vitalidade rítmica contagiante, constituindo um verdadeiro desafio no que toca à coloratura e à velocidade que o maestro pretendia.” Efectivamente, Marcello di Lisa parece querer afirmar a imagem de marca de alguns grupos italianos, associada a andamentos vertiginosos e interpretações fulgurantes, que nalguns casos resultam excessivas ou procuram o sucesso fácil, mas noutros se justificam se pensarmos que na época a voz entrava por vezes em competição com o virtuosismo instrumental. Um bom exemplo é a ária “Vien con nuova orribil guerra” (da ópera “La Statira”), que constitui um verdadeiro duelo entre o canto e o trompete “obbligato” e na qual a soprano demonstra uma vigorosa agilidade. Em contraste, a outra ária preferida de Quintans (o lamento “Ristoro degli afflitti”) serve de veículo a um primoroso “cantabile” numa interpretação de tocante intensidade emotiva.
Entre os próximos projectos de Ana Quintans encontram-se óperas como Idomeneo de Mozart na Ópera da Flandres, Les Indes Galantes na ópera de Munique e L'Ipermestra de Cavalli no Festival de Glyndebourne. Quanto aos Músicos do Tejo, prometem regressar a Francisco António de Almeida na temporada do CCB, desta vez com a oratória La Giuditta.