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Esperançar o ano novo
Olhamos para a frente e, apesar das nuvens cinzentas, insistimos na esperança. Ah, essa esperança e a sua relação tão controversa com esta nossa língua.
Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
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Estamos naquele momento do ano em que desejamos dar o presente por encerrado, transformando-o em antessala do futuro. Olhamos para a frente e, apesar das nuvens cinzentas, insistimos na esperança. Ah, essa esperança e a sua relação tão controversa com esta nossa língua. A esperança não é um conceito que se enraíze facilmente em português, apesar da alegria que geralmente se vê entre os povos que o falam.
Há sempre uma nota de melancolia na língua portuguesa, onde quer que ela seja falada. Talvez mais perceptível em Portugal, mas sempre presente ao redor do mundo. Já dizia Vinícius de Moraes que o samba precisa de “um bocado de tristeza” para ser bom. É que, sejamos sinceros, não é fácil falar português. É uma língua que sempre esteve tão perto do poder, mas nunca foi — sejamos sinceros —, de fato, poderosa. Não como outras que vivem tão perto dela e, por várias vezes, a subjugaram.
Dizemos que “temos esperança” como se guardássemos em nós um objeto, algo que não nos constitui, que nos foi dado por acréscimo. Essa visão passiva da esperança resulta também em acreditarmos que esperança vem de esperar. Minha avó portuguesa dizia que, “quem espera sempre alcança”, e ensinava-me que temos de aceitar o nosso destino de modo calmo e sorridente. Mas quem espera demais cansa e deixa a esperança escapar.
Agir com esperança, em português, deveria ser, segundo Paulo Freire, esperançar. Desconheço se alguém pensou nisso antes dele. Gosto da ideia. Esperançar é ação, não espera. Exige braços e bocas fazendo, não aguardando que alguém faça. Esperançar é o começo da transformação. É um verbo que aguarda se tornar comum na boca dos falantes desta nossa língua. Língua de povos que ainda estão aprendendo a se conhecer como identidades, como realidades diferentes, mas participantes de uma mesma história construída em português. E ainda temos tanto a aprender... Eu, com certeza!
Para um brasileiro, “falar espanhol” é uma expressão que faz todo o sentido. Apenas se fala castelhano na América. As línguas faladas na Espanha são desconhecidas para a maioria dos que vivem nas Américas. Mas aprendi que sentido é também um conceito geográfico. Em Portugal, alguns se ressentem — e com razão — que se chame de espanhol ao castelhano. Minha avó galega agradeceria a atenção da diferença. Há sempre um outro com quem falamos, e ele é sempre uma oportunidade de construir respeito e aprendizagem.
Do último texto que escrevi para este jornal, aprendi que “denegrir”, afinal, pode mesmo não ser uma palavra carregada historicamente de preconceitos, mas, ainda assim, não me sinto à vontade com ela. E aprendi que nem sempre sou compreendido do modo exato como eu gostaria de sê-lo e que isso não é, em si mesmo, algo ruim. Seja porque me obriga a escrever sempre melhor, seja porque lança luz sobre aspectos sobre os quais eu ainda não havia pensado. Escrever neste espaço tem me feito aprender e construir esperanças.
Outro dia li, em um texto até bem construído, sobre algumas palavras que não seriam portuguesas porque teriam se originado de outras línguas. Essa expressão “palavras portuguesas” me incomodou. Uma coisa é uma palavra ser da língua portuguesa e nenhuma palavra, nesta língua ou em outra, surge do nada e outra, um tanto diferente, é dizer que uma palavra seja portuguesa. Toda palavra da língua portuguesa é portuguesa tanto quanto o é brasileira ou angolana ou caboverdiana etc. Esses incômodos também me fazem aprender, quando são o começo de uma reflexão. Acredito que aprender seja o começo de esperançar.
Eu esperanço uma língua portuguesa que seja pontes e se abra ao diálogo. Primeiro, entre os diferentes falantes de português, com as suas variedades europeias, americanas, africanas etc. Depois, que se abra ao diálogo com outras línguas. Uma língua portuguesa que respire proximidades e aprendizagens; que não se feche em sua história ou no seu passado; que não se enclausure na sua gramática, mas que olhe ao futuro, sensível às diferentes realidades em que ela existe.
Uma língua que reconheça as alteridades e se emocione com elas, com a riqueza que representa um outro tão semelhante e tão diferente de mim. Uma língua curiosa que nos permita chegar aos pensamentos mais intrincados e aos sentimentos mais profundos; que não fuja de suas melancolias, mas que continue a transformá-las em poesia e em aprendizagens. Uma língua feita para esperançar.