Morreu a intelectual e escritora argentina Beatriz Sarlo

A autora de Da Amazónia às Malvinas deixa as suas memórias por publicar. Fundadora da revista Punto de Vista, o seu desaparecimento “marca o fim de uma maneira de se ser intelectual”.

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A escritora, jornalista e ensaísta Beatriz Sarlo fotografada em Buenos Aires, em 2015 Ricardo Ceppi/Getty Images
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A ensaísta, escritora e jornalista argentina Beatriz Sarlo, morreu na terça-feira, aos 82 anos, em Buenos Aires, cidade onde nasceu em 1942. Estava internada há semanas, depois de ter sofrido um acidente vascular cerebral.

A professora de Literatura Argentina e investigadora da Faculdade de Filosofia e de Letras da Universidade de Buenos Aires é considerada uma das mais importantes intelectuais argentinas. “A sua formação, bem como a capacidade que tinha de leitura da História, de interpretação da modernidade e da pós-modernidade e toda a sua produção cultural”, escreveu o jornal argentino Página 12 no seu obituário, “colocam-na num dos lugares mais relevantes da vida académica nacional e latino-americana”.

Beatriz Sarlo colaborou com jornais e revistas argentinos durante décadas, escreveu para a revista Los Libros, uma das mais influentes do panorama cultural, quando estava casada com o sociólogo Carlos Altamirano. Juntamente com um grande amigo do casal, o escritor Ricardo Piglia, eram os maoistas da revista, que fora fundada por peronistas. Depois de a publicação fechar, entraram na clandestinidade. Anos mais tarde, em 1978, os três fundariam a revista Punto de Vista – “uma plataforma fundamental para novas abordagens teóricas nas ciências sociais e nos estudos culturais e literários”, descreve o jornal Clarín –, que Beatriz Sarlo dirigiu até 2008.

“Com a morte de Sarlo, encerra-se uma era superior de ensino, debate político, ensaísmo e pensamento crítico. A sua inteligência aguçada e a sua honestidade inabalável marcam o fim de uma maneira de se ser intelectual e de se moldar a sociedade, que não deixa discípulos directos”, aponta o mesmo jornal argentino.

Em 2011, quando a jornalista brasileira Carol Pires, que viveu na Argentina, fez um perfil dela na Piauí, o sociólogo e crítico brasileiro Antonio Cândido (1918-2017) assegurava nas páginas da revista brasileira que “Beatriz Sarlo é uma intelectual que honra o exercício da inteligência.”

Professora convidada em várias universidades norte-americanas e europeias, como Berkeley, Columbia, Minnesota, Chicago, Cambridge ou Berlim, deixa uma obra de cerca de 20 livros na área da ficção, crónica e ensaio. O seu primeiro livro foi publicado em 1967 e tinha por tema a crítica literária no século XX. E ainda havia títulos por publicar: o jornal La Nación revela que Beatriz Sarlo entregou este ano à sua editora argentina, a Siglo XXI, uma pasta com o manuscrito do seu livro de memórias. Nas redes sociais, a editora anunciou que publicará o livro em Fevereiro.

“As melhores viagens incluem as mudanças imprevistas de planos”, escreveu Beatriz Sarlo no seu único livro publicado em Portugal, Da Amazónia às Malvinas. Escrito originalmente em 2014, nele recupera as viagens que fez, durante os anos 60 e 70, pela América Latina.

“A mudança imprevista de planos, intuí-o desde os 20 anos, é a verdadeira essência da viagem: um choque que desorganiza o previsível, estraga os cálculos e, de repente, abre uma fenda por onde assoma o inesperado e até o que nunca chegará a compreender-se de todo. Desordem e golpe de sorte. Mas a mudança imprevista de planos deve ser respeitada nas suas regras. Nunca a devemos procurar, porque se transforma no mais vulgar dos exotismos”, concluía.

Da Amazónia às Malvinas foi publicado em 2017 na colecção de viagens da Tinta-da-china coordenada por Carlos Vaz Marques. No prefácio, o editor defendia que “talvez nunca cheguemos a compreender por inteiro a motivação que levou uma rapariga argentina a empreender, enquanto jovem maoista, algumas das ‘viagens ideológicas’ aqui descritas.” Mas, acrescentava, “Beatriz Sarlo faz um inteligente e corajoso exercício de autocrítica, reinterpretando vivências ‘que não são simples recordações, porque lhes pertenço de uma maneira radical’. À luz deste outro tempo, é-lhe agora possível constatar que, em viagem como na vida, só encontramos aquilo de que vamos à procura.”

Por duas vezes, Beatriz Sarlo foi uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Em 2015, quando estava a lançar este livro de viagens no Brasil partilhou o palco da FLIP com a escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho, na época jornalista do PÚBLICO, e que também estava a lançar a edição brasileira do seu livro de crónicas Vai, Brasil.

“A esquerda latino-americana é um tema que atravessou a minha vida, se é que se pode dizer que uma vida é atravessada por alguma coisa”, disse nessa sessão da FLIP onde defendeu a tese de que todos os países da América do Sul funcionam com uma mistura de democracia, autoritarismo e carisma.

O cineasta Rafael Filippelli, o seu último companheiro, tinha morrido no ano passado e Beatriz Sarlo não tinha filhos.

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