Desenvolvimento da capacidade para ler textos mais complexos: obstáculos e soluções
A escolha do método de iniciação à leitura e à escrita não é inócua, tem por detrás a conceção que se tem da própria leitura.
De acordo com os resultados do Inquérito às Competências dos Adultos de 2023 agora divulgado, que avalia a população entre os 16 e os 65 anos em áreas como a literacia e a numeracia, apenas 4% dos adultos portugueses revelaram todas as capacidades para ler textos longos e densos, quando a média da OCDE se situa nos 12%.
Sem desvalorizar a necessidade de refletir sobre as causas destes resultados tão preocupantes, importa pensar no futuro, começando pelo princípio, ou seja, pelo início da escolaridade. Situando-nos no momento presente, interessa identificar os desafios com que se confrontam as nossas crianças e imaginar soluções para superar os obstáculos, de modo a contribuir para que os alunos, gradualmente, se tornem mais competentes na compreensão de textos de maior complexidade.
O acesso ao significado é a chave na aprendizagem da leitura
A escolha do método de iniciação à leitura e à escrita não se resume a uma questão técnica, relacionada com as didáticas específicas de cada metodologia. É por esse motivo que não faz sentido afirmar que, desde que a criança aprenda a ler, tanto faz o método utilizado. Porque não é verdade. A escolha do método não é inócua: tem por detrás a conceção que se tem da própria leitura.
Assim, quando se opta por um método para ensinar a ler, está-se também a escolher uma de duas conceções: a primeira, de acordo com a qual ler é ser capaz de decifrar uma mensagem codificada por um interlocutor ausente; ou a segunda, mediante a qual ler é mais do descobrir o som do que está escrito, consistindo em captar o significado da mensagem, procurando ativamente o sentido do texto.
A segunda conceção é aquela que melhor permite formar crianças leitoras, capazes de desenvolver competências de nível superior, que mais tarde possibilitem a compreensão de textos longos e densos, que é precisamente aquela que revelou falhas mais evidentes no estudo agora divulgado.
Esta conceção concretiza-se através da escolha de métodos analíticos ou globais, de acordo com os quais a aprendizagem principia com textos com sentido, para chegar às palavras, às sílabas e às letras. Mas, para privilegiar o acesso direto ao significado do texto, ainda é necessário ir mais longe, valorizando as situações de aprendizagem alicerçadas na autenticidade e na diversidade do escrito.
O método que reúne estas premissas é o método natural, há muito escolhido pelas escolas ou professores com projetos pedagógicos inovadores. Privilegiando o significado da leitura, este método parte de produções escritas baseadas nas vivências das crianças, nas quais estas relatam uma ação, partilham uma ideia, exprimem um desejo ou descrevem uma situação. O facto de a autoria dos primeiros textos trabalhados ser dos próprios alunos contribui para a proximidade, afetividade e autenticidade da leitura, que é apropriada de forma pessoal pela criança em relação com o mundo próximo.
É para caminhar em direção a esse mundo exterior que o universo leitor se alarga gradualmente a outras fontes escritas, igualmente autênticas, de acordo com as necessidades e motivações de aprendizagem da turma. Este alargamento progressivo da diversidade da leitura permite abrir o leque de experiências leitoras, enriquecendo-o com livros de histórias, textos de autor de diferentes tipologias, textos informativos sobre variadas temáticas ou textos instrucionais com diferenciadas finalidades.
Esta abordagem da leitura contribui para formar crianças leitoras, que retiram prazer da leitura e são capazes de aceder ao significado daquilo que leem, com o objetivo de se informarem, cultivarem, divertirem e evadirem, de modo a desenvolverem o conhecimento, o pensamento crítico, a capacidade de reflexão, a empatia, o sentido de humor e a imaginação.
Se tal for necessário para corresponder às necessidades específicas dos alunos, os professores podem e devem aprofundar a componente analítica do método natural, para sistematizar e tornar mais célere o processo de aprendizagem da leitura. Dar o salto para a leitura fluente está na base da compreensão leitora, do prazer na leitura e da vontade de ler, determinante para que as crianças efetivamente se tornem leitoras.
Viagem aos bastidores da construção de enunciados: de “resolvedores” a “autores”
Das visitas efetuadas a diferentes escolas, pude aperceber-me que uma das dificuldades evidenciada pelos alunos incide na interpretação de textos. Curiosamente, esta dificuldade não se resume à leitura propriamente dita dos textos. Muitas vezes, os alunos até são fluentes na leitura, mas essa proficiência não é diretamente proporcional à capacidade de interpretar os enunciados.
Uma das constatações evidenciadas pelos diretores pedagógicos centra-se na dificuldade de concentração na leitura. Os alunos tendem a ler o texto na diagonal, rapidamente e apenas uma única vez, achando que essa leitura apressada é suficiente para que possam dar resposta às perguntas de interpretação. Para as questões de resposta mais imediata, este tipo de leitura até pode ser suficiente, mas quando perguntas são mais complexas, seria necessário reler o texto mais lentamente. No entanto, é a este desafio que os alunos resistem e, quando os professores insistem, não raras vezes respondem “Já li!”.
Na realidade, o que podemos fazer para melhorar nesta matéria? Julgo que a resposta a esta questão se divide em dois domínios: o primeiro, mais específico, relacionado com a interpretação de textos propriamente dita; e o segundo, mais geral, ligado com as questões da atenção… ou, para ser mais exata, com a falta dela.
Indo direta ao primeiro domínio, muitas vezes temos a natural tendência para replicar o modelo do “mais do mesmo” até à exaustão, solicitando aos alunos que deem resposta a uma série de enunciados, de modo a obterem melhores resultados. Contudo, esta repetição excessiva, sem novo pensamento associado, pode desencadear respostas automáticas, acríticas e repetitivas, perpetuando dificuldades e erros, sem um benefício visível para a melhoria do problema que se deseja resolver.
Sem colocar em causa a necessidade de treino para a consolidação das aprendizagens, por vezes também é necessária uma certa ousadia, que introduza uma disrupção nos modelos vigentes, introduzindo aquele q.b. de perplexidade, de espanto e de interrogação que são fundamentais para quebrar o modelo habitual e para nos levar mais longe.
A questão que doravante se coloca é a seguinte: então, e se em vez de “mais do mesmo”, um dia resolvermos fazer “diferente do mesmo”? Ou seja, se em vez de darmos aos alunos mais um enunciado, igual a tantos outros para resolverem, os desafiarmos para serem eles próprios os autores de um enunciado? Mas não se pense que é fácil nem imediato passar para o outro lado da barricada, do lado do “resolvedor” para o do “autor” de enunciados. Para dar resposta ao desafio da mudança de papéis, temos de ir por passos. Para começar, é necessário analisar enunciados existentes para descobrir qual a sua estrutura e como se organizam as perguntas de interpretação.
Através de um trabalho prático efetuado com uma turma do 3.º ano de escolaridade, constatou-se que, regra geral, o enunciado principia por perguntas mais simples, de resposta direta, que são formuladas tendo em conta o desenrolar da narrativa, do princípio para o fim do texto. Fez-se um levantamento das perguntas de diversos enunciados e verificou-se quais as palavras presentes nas mesmas — quem, quando, onde, qual, como… — e qual a informação que cada uma destas palavras requeria. Depois, passou-se para as questões mais complexas, que solicitavam uma explicação, uma opinião, uma inferência ou uma generalização.
Uma vez realizada esta análise, os alunos foram confrontados com uma nova proposta, que implicava que passassem do papel de “resolvedores” de enunciados para o de “criadores”, primeiro em grande grupo e, a seguir, a pares. Após estas tarefas, coube-lhes dar resposta aos enunciados criados, tendo-se verificado melhorias significativas na qualidade das respostas.
Esta viagem ao lado oculto das perguntas de interpretação permitiu, numa primeira análise, compreender melhor as mesmas e aumentar a qualidade de resposta a novos enunciados. Numa segunda análise, mais lata, desenvolveu-se o pensamento crítico, a capacidade de comunicação, a identificação de hierarquias de ideias e a análise dos significados das palavras, ao mesmo tempo que se promoveu o necessário aumento do foco da atenção e se deu mais um passo na capacidade de resistência ao imediatismo.
Acerca da necessidade de evitar a delapidação de atenção das crianças
Umas das condições necessárias de base para a leitura de textos longos e densos é, como não poderia deixar de ser, a capacidade de foco e de manutenção da atenção durante um determinado tempo, tão ou mais longo do que o texto, já que implica refletir sobre o mesmo para assimilar o seu conteúdo.
Acontece que este é um desafio que se afigura cada vez mais difícil num mundo pautado pelo excesso de estímulos e de informações, responsável por uma alteração radical da estrutura da atenção, que se tornou acelerada, efémera, fugaz, fragmentada, volátil e altamente distrátil. A fragmentação continuada da atenção traduz-se, segundo o filósofo Byung-Chul Han, num fenómeno de perceção serial, incapaz de experimentar a duração.
Neste contexto, estamos a assistir a uma deslocação de um tipo de atenção profunda para uma forma de atenção radicalmente distinta, a hiperatenção, que se carateriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processo, cujo expoente máximo é a multitarefa ou multitasking, como queiramos chamar-lhe, tão valorizada nos nossos dias, como se de um progresso civilizacional se tratasse.
O médico e cientista Lamberto Maffei coloca em causa esta ideia, elogiando os benefícios da lentidão e do pensamento lento. Na sua perspetiva, uma excessiva prevalência dos mecanismos rápidos do pensamento pode implicar soluções e comportamentos errados, nomeadamente danos na educação, lançando um convite para reconsiderar as potencialidades do pensamento lento, baseado principalmente na linguagem e na escrita.
Estes apontamentos são fundamentais, na medida em que a leitura de textos mais longos e complexos invoca a atenção profunda e convoca a lentidão. Na ausência ou escassez destes pressupostos, podemos facilmente entrar num círculo vicioso. Ou seja, as dificuldades ao nível da atenção e a prevalência do pensamento rápido colidem necessariamente com a capacidade de ler textos longos e densos, mas o inverso não deixa de ser verdade. A falta de hábito de ler textos mais longos e densos também não estimula o desenvolvimento de uma atenção mais estável e duradoura, necessária para muitas outras tarefas da nossa vida.
Questões como estas conduzem-nos ao incontornável debate sobre a utilização das novas tecnologias por parte das crianças mais novas, que transcende a instituição escolar, abrangendo a sociedade em geral e as famílias em particular. Aquilo que já sabemos neste momento leva-nos a recomendar muita prudência na exposição dos mais novos a este tipo de dispositivos, não só, mas também, para evitar a delapidação da sua capacidade de atenção.
A escola na luta contra o tempo
Para desenvolver um ambiente de aprendizagem favorável à leitura de textos mais longos e densos, é necessário um ingrediente fundamental: tempo. E, por mais que se esgrimam constantemente argumentos sobre os conteúdos que deveriam estar contemplados nos currículos — além daqueles que já estão —, é importante reativar a memória curricular.
A geração que agora tem filhos em idade escolar é constituída por pais com a idade dos meus primeiros alunos. E, recuperando a minha memória curricular, recordo que, à época, os conteúdos curriculares eram, na generalidade, menos densos. A título de exemplo, na área da Matemática, no programa do 1.º ano estava prevista a abordagem dos números até 20, e no 2.º ano até 100, enquanto atualmente o currículo do 1.º ano contempla os números até 100, e no 2.º ano até 1000. Quanto aos números fracionários, passaram a ser introduzidos no 2.º ano, sendo que no 3.º ano já está prevista a realização de operações com frações.
Isto já para não falar no meu tempo… Desde que recuperei o programa vigente na época em que frequentava o ensino primário, o chamado “programa de capa cor-de-laranja”, pude comprovar aquilo que já intuía a partir da minha memória enquanto aluna: que havia mais tempo para aprofundar e consolidar as aprendizagens, já que a diversidade de conteúdos patente no programa era mais circunscrita.
Atualmente, apesar de o ano letivo ser mais longo e o horário escolar mais extenso, parece que os professores têm a sensação de estar permanentemente a lutar contra o tempo para introduzir os conteúdos previstos, desenvolver as preconizadas competências e implementar projetos transversais mobilizadores, sem que, muitas vezes, disponham do tempo necessário para se deter mais demoradamente em determinadas aprendizagens estruturantes.
Esta falta de tempo não funciona como aliada do desenvolvimento do pensamento lento nem da estabilização de uma atenção profunda e duradoura, requisitos sem os quais dificilmente se poderá dar um salto qualitativo que permita mergulhar no âmago dos textos mais longos e densos, captando a sua essência.
Onde andarão os pedagogos?
De cada vez que o país se confronta com um resultado confrangedor, consideravelmente abaixo dos seus congéneres, procuram-se responsáveis e espera-se que estes tenham soluções na manga para inverter a situação. Sem desvalorizar a pertinência da reflexão sobre as causas dos maus resultados, nem tão pouco a capacidade de o poder político avançar com soluções para resolver os problemas, não deixo de me confrontar com uma questão: onde andarão os pedagogos?
É que as ideias transformadoras que realmente funcionam no terreno não podem ser alheias a quem faz da pedagogia o seu campo de reflexão e ação, desenvolvendo uma visão abrangente da educação, que procura desenhar caminhos para ultrapassar obstáculos e imaginar soluções realmente inspiradoras.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990