Grito
Há que resgatar o grito. Não o do populista, disfórico, mas esta energia da voz.
O pensar anda afónico, incapaz de inflectir um curso desastroso – por exemplo, a ciência alertar há décadas para a catástrofe climática e, no entanto, ser precisamente esse o período em que se registam as maiores emissões de gases com efeito de estufa. A nossa urgência já não é apenas a de agir com conhecimento – o que falta saber? –, mas, inversamente, perguntar pelo que resta de agir no interior do pensar. Além de uma acção pensada, urge um pensar-acção que faça mais vontade, até grito.
A civilidade fez-se a controlar a voz, a educar as suas vibrações, risos e gritos, a fazer desse autodomínio direito de dominar. David Abram, no extraordinário A Magia do Sensível (The Spell of the Sensuous), dizia que a “humanidade civilizada” recusou a potência da linguagem ao mundo animal abstendo-se dos elementos em comum, os gritos e chamamentos. Com a linguagem escrita, e a impressão tipográfica sobretudo, calou-se a natureza-mais-do-que-humana no humano e além dele. E Abram contava como uma língua indígena só se tornara compreensível para um homem branco quando “os seus sentidos se foram sintonizando com as subtilezas da ecologia da floresta tropical em que a cultura estava integrada”. No abismo afónico do Ocidente, uma comunidade linguística assim, mais do que humana, tornou-se inconcebível.
E como nota Adriana Cavarero, num magnífico ensaio que merecia tradução (For more than one voice. Toward a philosophy of vocal expression), até a história da filosofia foi, em boa medida, uma “desvocalização do logos”, conceitos abstractos pensados cada vez mais longe das metáforas que os formaram. É tempo de recompor uma filosofia movente, próxima das palavras mais quotidianas.
O populismo, filho da “civilização”, bebe disforicamente desta falta de voz do pensamento. E a desvocalização tem muitos enunciados: a ideologia um mal político, a utopia uma curiosidade sem força gravítica, as emoções encerradas no pátio virtual das redes, desligadas do regime maquinal do trabalho. Não admira que a inteligência artificial se dê tão bem com o populismo.
Por todas estas razões, do outro lado do pensar afónico, que se fez logos sem phōnē, conceito sem voz, há que resgatar o exacto oposto reprimido, o grito. Não o do populista, disfórico, mas esta energia da voz. Nem importa o volume, pode ser silencioso, como nota Ana Dias Ruiz em Uma História Cultural do Grito. O grito silencioso faz-se do corpo inteiro, ser e expressão sem diferença, timbre, vibração, esgar, tudo o que faz comparecer uma singularidade em corpo e acto. É a potência do grito das palavras de ordem.