As características únicas do queijo Serra da Estrela podem estar ameaçadas pela crise climática, uma vez que o calor extremo e a escassez de água podem afectar a flor do cardo – a matéria-prima para produzir o coagulante do leite. Com o objectivo de proteger este produto típico, cientistas portugueses estão a estudar as enzimas vegetais para oferecer aos queijeiros um método que garanta a qualidade do lacticínio num mundo cada vez mais quente.
“O objectivo do projecto ProCardo é saber como podemos optimizar os extractos de flores para que o queijo da Serra não perca as características que tem. Sabemos que as enzimas vegetais respondem a alterações ambientais, ou seja, a expressão das cardosinas varia na flor do cardo. Queremos perceber como a seca e as temperaturas altas afectam a expressão dessas enzimas ao longo da estrutura da flor”, explica ao PÚBLICO Cláudia Pereira, investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP).
O cardo é uma planta herbácea perene que tende a resistir ao calor e a solos secos. “Daí que se adapte bem ao Alentejo e à região da Estremadura de Espanha, que são regiões mais áridas”, explica Cláudia Pereira. Em Portugal, ocorre naturalmente na orla interior do continente, desde Viseu até ao Algarve, mas os cardos também são cultivados para fins comerciais no Alentejo, onde as temperaturas podem ser altas e água escassa.
“Com a seca extrema do ano passado, houve pouco cardo no Alentejo e notámos uma pequena diferença ao nível do coagulante vegetal”, afirma numa conversa telefónica Joaquim Lé de Matos, parceiro do projecto e presidente da Cooperativa dos Produtores de Queijo Serra da Estrela (Estrelacoop).
As alterações climáticas já constituem hoje uma preocupação para queijeiros tradicionais, que entendem que é preciso “começar já a trabalhar” para “manter a qualidade e as propriedades organolépticas” do queijo Serra da Estrela, faz notar Joaquim Lé de Matos. Características organolépticas são atributos que avaliamos através dos sentidos – é o caso do aspecto visual, da textura, do cheiro e do sabor do queijo.
O que são as cardosinas?
As cardosinas são enzimas proteolíticas, ou seja, são enzimas que quebram ligações existentes entre os aminoácidos das proteínas. Funcionam como tesourinhas moleculares, partindo a proteína do leite (a caseína) em moléculas mais pequeninas e, ao fazerem isso, promovem a coagulação. Foram originalmente isoladas das flores do cardo-manso (Cynara cardunculus) no início dos anos 1990 e, desde então, tornaram-se uma peça importante na ciência dos queijos.
O cardo possui várias cardosinas, incluindo as do tipo A e a B. Estas duas enzimas são as mais importantes, porque estão presentes em maior quantidade na flor. A diferença entre ambas tem que ver com a capacidade proteolítica, ou seja, a habilidade de cortar proteínas. A cardosina A é uma tesourinha desvairada: corta o que vê pela frente, de forma indiscriminada. Já a cardosina B é mais selectiva, clivando ligações específicas entre os aminoácidos.
“As cardosinas A e B são muito importantes na queijaria. A cardosina B, ao cortar especificamente em alguns sítios, vai conferir outro tipo de propriedades ao Queijo Serra da Estrela, nomeadamente o sabor e a pasta mole. É o trabalho conjunto destas duas tesourinhas moleculares que confere a este produto com Denominação de Origem Protegida [DOP] as suas características específicas”, afirma a investigadora Cláudia Pereira.
Aplicar a ciência nas queijarias
O grupo da FCUP trabalha já há cerca de duas décadas na caracterização dessas enzimas presentes na flor do cardo. “Tudo começou com o trabalho do professor José Pisarra, ao qual demos continuidade”, explica Cláudia Pereira. Agora, com o ProCardo, usam o “conhecimento acumulado” dos estudos fundamentais para tentar oferecer uma aplicação prática aos produtores de queijo.
O novo projecto é desenvolvido em colaboração com os grupos de investigação de Paulo Barracosa, do Instituto Politécnico de Viseu (IPV), e de Fátima Duarte, do Centro de Biotecnologia Agrícola e Agro-Alimentar do Alentejo (Cebal), em Beja. “Uns têm o conhecimento das enzimas e outros têm o conhecimento das plantas. Então, unimos esforços neste projecto”, refere Cláudia Pereira.
O projecto ProCardo desenvolve trabalhos de campo tanto em Viseu como em Beja. Em Viseu, os cardos estão expostos a dois contextos distintos: um conjunto de plantas Cynara cardunculus encontra-se em situação de conforto (grupo de controlo) e outro em situação de stress hídrico (a irrigação foi limitada). Em Beja, há plantas em estufa que estão sujeitas a uma temperatura mais elevada do que os grupos de Viseu.
“Assumimos que o grupo de controlo está em Viseu, que é a zona onde se produz o queijo Serra da Estrela e é onde os produtores ancestralmente recolhiam as flores de cardo para serem usadas como coagulante natural. Nessa mesma região, temos a situação de stress hídrico, em que alteramos a rega, mas mantivemos a mesma temperatura das plantas de controlo”, explica Cláudia Pereira.
Para garantir que todas as plantas usadas no estudo têm a mesma configuração genética, os cientistas propagaram um exemplar da espécie Cynara cardunculus, produzindo múltiplas plantinhas a partir de uma planta-mãe. A propagação foi realizada através da separação do rizoma (uma espécie de caule) de uma planta-mãe em vários pedacinhos. A partir de cada um desses fragmentos desenvolve-se um novo cardo que, na prática, é um “clone” do vegetal que lhe deu origem.
Quando os cardos-filhos dão flores, os investigadores recolhem a coroa superior – formada por estruturas que se assemelham a agulhas lilases, e que se chamam “estigmas” –, assim como outras partes da flor. O objectivo é, por meio de análises moleculares, verificar as quantidades de cardosina A e B não só nos dois grupos de plantas acompanhadas em Viseu, mas também no de Beja.
Os três tipos de extracto das flores recolhidos em diferentes condições (grupo de controlo, stress térmico e hídrico) deverão ser, em 2025, testados na Queijaria São Cosme, em Gouveia, distrito da Guarda, parceira do projecto. Os produtos obtidos nessa experiência deverão ser avaliados, se tudo correr como o previsto, por um painel de provadores de queijos Serra da Estrela.
“Os produtores sempre estiveram disponíveis para participar em projectos que possam ter uma aplicabilidade prática. Na Queijaria São Cosme, aliás, houve uma ligação à academia desde o início”, afirma Joaquim Lé de Matos, proprietário da São Cosme, onde serão feitos testes com as cardosinas obtidas em três condições diferentes.
Cláudia Pereira explica que esta etapa vai permitir compreender qual é o impacto de condições extremas na qualidade e nas características dos queijos. A ambição do ProCardo é traduzir esse conhecimento numa receita simples que possa ajudar os produtores de queijo a adicionar, consoante o contexto, a quantidade ideal de enzimas para manter a qualidade dos queijos.
“Imagine que se atravessou um período de grande calor. Nesse caso, podemos recomendar que se corte mais a parte de cima da flor, por exemplo, para garantir a proporção ideal de cardosina A e B para fazerem o queijo”, exemplifica a investigadora da FCUP.
Se tudo progredir no projecto como desejam os investigadores, é possível que haja já em 2026 um conhecimento prático, sistematizado, que possa ser divulgado em eventos do sector e visitas agendadas a queijarias. “Queremos realmente que o que aprendemos no laboratório possa ser útil para os produtores”, conclui Cláudia Pereira.
Com duração prevista até Setembro de 2026, o projecto ProCardo conta com um financiamento de 150.000 euros do programa Promove, uma iniciativa do BPI/Fundação “la Caixa” e da Fundação Ciência e Tecnologia.