Vacinação de doentes com cirurgia marcada podia impedir cerca de 60 mil mortes num ano
Estudo internacional com a participação de 23 hospitais portugueses conclui que os doentes que esperam por uma cirurgia devem ser vacinados antes da população em geral.
A conclusão é clara: “À medida que a vacinação global da SARS-CoV-2 avança, aos doentes que necessitam de cirurgia programada (ou seja, que podem ser agendadas e não são casos de urgência) deve ser dada prioridade face à população em geral.” O artigo publicado esta quarta-feira no British Journal or Surgery (BJS) apresenta uma série de estimativas e cálculos e explica os motivos que sustentam esta recomendação dos especialistas e que de uma forma muito breve e simples se resume a este facto: esta prioridade pode ajudar a “evitar milhares de mortes no pós-operatório” relacionadas com a covid-19. Algo entre as 115 mil (na estimativa mais optimista) e as 20 mil mortes, mais precisamente.
“À escala global, os investigadores estimam que a vacinação no pré-operatório de doentes electivos possa impedir 58.687 mortes relacionadas com covid-19 no período de um ano”, refere o comunicado de imprensa sobre o trabalho da equipa internacional de investigadores CovidSurg Collaborative, liderada por especialistas da Universidade de Birmingham. E este é apenas o cálculo a meio caminho quanto ao impacto desta medida, que poderia representar no “melhor cenário” mais de 115 mil mortes evitadas e no “pior cenário” mais de 20 mil mortes.
O estudo publicado no BJS (que inclui o British Journal of Surgery e o European Journal of Surgery) resulta da análise de dados de 141.582 doentes de 1667 hospitais em 116 países, naquele que anunciam ser “o maior estudo internacional de cirurgia do mundo alguma vez realizado”. Portugal também participou neste esforço internacional com dados de um total de 2722 doentes de 23 hospitais do país.
Antes de avançar para os métodos de cálculo que levaram os investigadores até ao número estimado de mortes que a prioridade de vacinação no pré-operatório poderia evitar, apresentamos alguns dos argumentos para a realização deste exercício feito pelos peritos. No comunicado sobre o estudo, o investigador principal, Aneel Bhangu, da Universidade de Birmingham, dá o pontapé de saída: “A vacinação pré-operatória pode permitir um reinício mais seguro da cirurgia programada, ao reduzir significativamente o risco de complicações pós-operatórias e impedir dezenas de milhares de mortes relacionadas com covid-19. Muitos países, particularmente de baixo e médio rendimento, não terão acesso fácil a vacinas contra a covid-19 durante vários anos. Embora o fornecimento de vacinas seja limitado, os governos estão a dar prioridade na vacinação a grupos com risco de mortalidade por covid-19 mais elevado. O nosso trabalho pode ajudar a tomar estas decisões de modo informado.” A vacinação dirigida a estes doentes, avisam ainda os autores do trabalho, pode diminuir as complicações pulmonares no pós-operatório – reduzindo a utilização de cuidados intensivos e os custos gerais de saúde.
Joana Simões, médica interna de Cirurgia Geral no Hospital Garcia de Orta, em Lisboa, e uma das investigadoras no grupo de coordenação dos estudos CovidSurg, reforça a importância deste trabalho: “Realizar cirurgias da forma mais segura possível é uma prioridade nacional e global. Mais de 15.000 cirurgiões e anestesistas, de 116 países, juntaram-se para contribuir para este estudo, tornando-o a maior colaboração científica de sempre.” A médica portuguesa deixa ainda um claro apelo a todos os governos: “É crucial que os decisores políticos utilizem os dados que recolhemos para apoiar um recomeço mais seguro da cirurgia programada após esta última vaga; deve ser dada prioridade à vacinação covid para doentes a aguardar a cirurgia programada.”
Vinte e oito milhões de cirurgias adiadas
Os dados reunidos pelos peritos que assinam este estudo dizem que durante a primeira vaga da pandemia terão sido adiadas 70% das cirurgias electivas agendadas, ou seja, algo que se traduz em 28 milhões de procedimentos adiados ou cancelados. Os autores admitem que a agenda da cirurgia pode já ter começado a recuperar destes efeitos em muitos países, mas o impacto nesta área vai continuar em 2021, sobretudo em países que atravessem novas vagas da covid-19.
Na base desta recomendação em jeito de alerta está o conhecimento e experiência dos cirurgiões de todo o mundo. Entre outros dados, estes especialistas já sabem que “entre 0,6% e 1,6% dos doentes desenvolvem infecção covid-19 após cirurgia programada” e que estes doentes “têm um risco quatro a oito vezes superior de morte nos 30 dias seguintes à cirurgia”. Para termos noção do impacto, fica ainda um exemplo concreto: em “tempos normais”, os doentes com 70 ou mais anos submetidos a uma cirurgia oncológica teriam, uma taxa de mortalidade de 2,8%. Agora, avisam os especialistas, sabe-se que “essa taxa aumenta para 18,6%, se desenvolverem infecção covid-19”.
Mas isso não chega para argumentar a favor da prioridade na vacinação, uma vez que o aumento da probabilidade da infecção por SARS-CoV-2 (que causa covid-19) é algo que afecta toda a população. É com base nos riscos acrescidos que as pessoas que vão ser operadas correm que se considera que “a vacinação pré-operatória de doentes cirúrgicos previne um maior número de mortes relacionadas com covid-19 do que a vacinação da população em geral”.
No artigo, os autores descrevem o método usado para o cálculo do número necessário a vacinar (algo que resumem à sigla NNV) para impedir uma morte relacionada com a covid-19 num ano. “Os NNV foram baseados nas taxas de mortalidade pós-operatórias do SARS-CoV-2 num estudo de coorte internacional (doentes cirúrgicos) e nos dados comunitários de incidência do SARS-CoV-2 e de mortalidade de casos (população geral).”
Risco acrescido em maiores de 70 e em caso de cirurgia oncológica
Assim, se fosse necessário escolher neste grupo de pessoas os que correm um maior risco seriam chamados “os maiores de 70 anos e aqueles submetidos a cirurgia oncológica”. Para mostrar o impacto desta decisão na prioridade de vacinação, apresenta-se mais um exemplo dos cálculos dos peritos: “Enquanto 1840 pessoas com 70 ou mais anos na população em geral precisam de ser vacinadas para salvar uma vida por ano, este valor é de apenas 351 em doentes com 70 ou mais anos submetidos a cirurgia oncológica.” Nos exemplos aqui referidos, são usados os valores de referência apresentados pelos investigadores para o resultado que fica entre o pior e o melhor cenário.
Numa análise mais fina, os resultados deste estudo concluem ainda que para impedir uma morte no mesmo grupo etário mas noutro tipo de cirurgia não oncológica, seria necessário vacinar 733 doentes à espera de uma operação. Nos outros grupos etários, conclui-se que entre os 18 e os 49 anos teríamos de vacinar mais de 196 mil pessoas na população em geral para impedir uma morte relacionada com covid-19, enquanto nos doentes com a mesma idade e que esperam por uma cirurgia bastaria vacinar entre cerca de 4 mil pessoas (para cirurgia oncológica) e 18 mil pessoas (para outro tipo de cirurgia).
Por fim, no grupo dos 50 a 69 anos, a diferença faz-se entre as cerca de 13 mil pessoas da população em geral que seria necessário vacinar para evitar uma morte por covid-19 e, no grupo com cirurgias marcadas, apenas 1621 pessoas (cirurgia programada não oncológica) e 559 (cirurgia programada oncológica). Voltamos, por isso, à principal conclusão deste trabalho: “Isto significa que, com o mesmo número de vacinas, podemos salvar mais vidas, se for dada prioridade aos doentes a aguardar cirurgia programada.”