O vírus democrático... e agora? Um Serviço Nacional de Saúde à procura de oxigénio
O nosso Serviço Nacional de Saúde foi perdendo oxigénio e, apesar da aparência democrática, avançou até à fase terminal do percurso revolucionário... E agora?
Eis o império de um vírus democrático. Ataca viajantes que, por obrigação profissional, ou por lazer, transitam regularmente entre continentes, contribuindo para a economia mas também para contágios. Atinge trabalhadores de sectores locais que se deslocam em meios de transporte colectivo terrestre, propícios a contaminação. Obriga figuras públicas a cumprir isolamento social e a declarar publicamente o seu estado de saúde. Constitui uma ameaça de vida para os sem-abrigo, idosos e outros segmentos da população particularmente vulneráveis a condições crónicas de saúde. Expõe enfermeiros, médicos, funcionários hospitalares e colaboradores do INEM. Coloca em risco os trabalhadores das farmácias e das superfícies de retalho que fornecem bens essenciais. Compromete os funcionários de serviços públicos e de atendimento bancário. Independentemente do salário, profissão, género, estado civil e residência (à excepção das zonas quase desertificadas do interior do país), todos estamos à mercê da sorte nesta roleta global de contaminação.
O coronavírus tão democraticamente contagioso veio despoletar a maior revolução no país, desde o 25 de Abril, não apenas pela profunda alteração de comportamentos e rotinas laborais e sociais que as medidas draconianas de isolamento impõem, mas também pelas consequências para a economia, até à data inestimáveis. Todas as indústrias que dependem do turismo, incluindo transportes, hotelaria, restauração e sectores complementares, assim como indústrias produtivas, pequenas empresas de serviços e o retalho em geral serão intensamente afectadas. Nunca nas últimas décadas sentimos de forma tão acutilante a necessidade de liderança política forte, de um Estado coeso e transparente, com serviços capacitados para implementar uma estratégia atempada de contenção e mitigação da doença epidémica, e do efeito de dominó em recessão económica e financeira que se antevê.
Por outro lado, tornou-se finalmente óbvio para um público que se habituou a produzir e disseminar informações através das redes sociais que o cruzamento de notícias falsas tem um impacto devastador não apenas nas escolhas políticas, mas também na sobrevivência individual e na saúde colectiva. Os meios de comunicação social institucionais e profissionalizados voltaram a assumir uma posição dianteira na condução e análise da informação emanada por instituições públicas nacionais e internacionais.
Sabemos que o coronavírus percorrerá o seu ciclo epidémico e deixará, como todas as revoluções, um lastro na sociedade. Sabemos também que, na anatomia das revoluções [1], o episódio dramático que despoleta a repentina destruição de padrões, lançando caos social, político e económico, tem uma sobrevida limitada. Seguem-se inexoravelmente etapas de “contra-revolução”. Neste caso, a mais evidente será a produção e massificação de uma vacina ou tratamento que nos permita retomar rotinas profissionais e hábitos sociais e culturais.
Mas a resposta à ameaça não é apenas clínica, como temos observado nos últimos dias; pelo contrário, começa com uma componente fundamental de organização colectiva que, por sua vez, depende de liderança, decisão política e capacitação institucional, além da cooperação individual no cumprimento de normas de saúde pública. E porque somos agentes activos e indispensáveis neste processo, chegou o momento de assumirmos a nossa voz, como cidadãos e contribuintes, pressionando uma contra-revolução institucional. A síndrome aguda de saúde pública que enfrentamos impõe drástica intervenção na saúde, tal como as alterações climáticas têm despoletado novos instrumentos de regulação ambiental.
O pânico público induzido pelas notícias sobre o caso italiano, mais concretamente sobre as escolhas dramáticas com que os profissionais de saúde do país se confrontam face ao número explosivo de casos e à escassez de recursos clínicos, desencadeia questões críticas sobre o papel do Estado na saúde. Todos sabemos que a insuficiência de recursos é a realidade diária dos profissionais que trabalham no nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), minando a capacidade de resposta, com consequências muitas vezes dramáticas para os segmentos da população que não têm capacidade financeira para recorrer a alternativas privadas. Se o coronavírus aparenta ser democrático na contaminação e, até à data, no acesso a cuidados, o mesmo não se pode dizer relativamente a outras patologias. Os mais pobres não recebem saúde com a mesma celeridade de quem tem recurso a alternativas e a espera tem impacto no percurso das patologias. Assim, vejamos:
Quanto espera um doente oncológico para iniciar radioterapia nas instituições do SNS que servem público alargado? Existem aparelhos de radioterapia suficientes para responder atempadamente às necessidades dos pacientes que recorrem a entidades do SNS em diferentes zonas do país? Qual o tempo de espera em consultas, exames complementares de diagnóstico e cirurgias? Existem dados comparativos relativamente a entidades de saúde privadas? Qual o impacto de diferenças no tempo de espera – quer na fase de diagnóstico, quer nas fases posteriores de intervenção – em relação à sobrevida livre de doença e na sobrevida global, considerando intervalos etários e distinguindo categorias de patologias?
Cada espera de consulta, de tratamento, de cirurgia implica uma escolha, i.e., a implementação de algum critério segundo o qual alguém tem prioridade sobre alguém, porque os recursos são escassos e não chegam a todos. E, todavia, o Serviço Nacional de Saúde foi criado na era da transição para a democracia para que, independentemente da idade, género, recursos financeiros, literacia, e ocupação profissional, todos tivéssemos acesso aos melhores cuidados de saúde. Mas sob o manto da rotação democrática entre alternativas políticas e ideológicas, os decisores públicos foram descurando este pilar central da relação entre Estado e a sociedade. À escassez de recursos públicos associou-se a expansão de uma indústria de gigantes que pressiona profissionais de saúde a cumprir balizas financeiras. O nosso Serviço Nacional de Saúde foi perdendo oxigénio e, apesar da aparência democrática, avançou até à fase terminal do percurso revolucionário... E agora?
[1] Crane Brinton (1938), The Anatomy of Revolution. NY: Random House, Vintage Books.