Mulher em morte cerebral vai dar à luz bebé no Porto. Vai ser “uma alegria amarga”, diz avó
A mãe da jovem cujas funções vitais estão a ser mantidas artificialmente no Hospital de S. João antecipa o nascimento do seu neto como "uma alegria amarga”. Este é o segundo caso conhecido em Portugal de uma criança que cresceu durante meses no útero de uma mulher em morte cerebral.
Uma mulher de 26 anos está, desde o final de Dezembro, em morte cerebral com as funções vitais mantidas artificialmente para que o filho possa crescer no seu útero e nascer saudável. O parto está marcado para o final desta semana no Hospital de S. João, no Porto. É um caso semelhante àquele que há quase três anos, em Junho de 2016, encheu páginas de jornais portugueses e estrangeiros, quando Lourenço Salvador nasceu no Hospital de S. José (Lisboa), 15 semanas depois de ter sido declarada a morte cerebral da sua mãe.
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Uma mulher de 26 anos está, desde o final de Dezembro, em morte cerebral com as funções vitais mantidas artificialmente para que o filho possa crescer no seu útero e nascer saudável. O parto está marcado para o final desta semana no Hospital de S. João, no Porto. É um caso semelhante àquele que há quase três anos, em Junho de 2016, encheu páginas de jornais portugueses e estrangeiros, quando Lourenço Salvador nasceu no Hospital de S. José (Lisboa), 15 semanas depois de ter sido declarada a morte cerebral da sua mãe.
Médicos e membros do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida ouvidos pelo PÚBLICO não têm dúvidas em afirmar que prolongar artificialmente as funções vitais da mãe faz sentido, desde que a família concorde, uma vez que há um valor preponderante, que é o de uma vida, a da criança.
A morte de Catarina Sequeira, assim se chama a jovem que há quase três meses está internada nos cuidados intensivos do Hospital de S. João, apanhou de surpresa todos os que a conheciam. Com asma desde o início da adolescência, Catarina habituara-se a lidar com a doença, mas uma crise aguda acabou por se revelar fatal em 20 de Dezembro passado. Desmaiou na casa de banho e já não foi possível reanimá-la. Passou pelo Hospital de Gaia, mas foi rapidamente transferida para o Hospital de S. João, que reserva qualquer informação para depois da cesariana, que deve ocorrer no final desta semana.
A mãe, Maria de Fátima Branco, confessa-se dividida. “Concordei [com a manutenção das funções vitais] no início porque nunca pensei que o processo fosse tão demorado. No hospital dizem-nos que o bebé é viável, que já fizeram exames, ressonâncias, e que não encontraram nada de muito grave, mas estamos na expectativa para ver como vai nascer. Há muitas perguntas sem resposta, muitos ‘mas’ e muitos ‘ses”, contou ao PÚBLICO. O menino vai chamar-se Salvador, por decisão do pai.
Maria de Fátima não consegue precisar quantas semanas de gestação tem a criança, mas pensa que serão entre 30 a 32. A morte cerebral foi declarada a 26 de Dezembro e a comissão de ética do hospital informou a família das vantagens e dos riscos de manter o feto a crescer no útero de Catarina. “Continuamos a ir vê-la para falar com o bebé e ajudar a estimular a parte sensorial”, relatou a avó ao jornal O Gaiense, que divulgou a história. Agora, Maria de Fátima confessa que teme o que vai acontecer na sexta-feira, se a data da cesariana se confirmar. “Vamos reviver tudo. Vai ser uma alegria amarga, quando desligarem a máquina. Por muito que me digam que ele é um bocadinho dela, a minha filha é insubstituível”, remata.
Apesar de sofrer de asma, Catarina praticou canoagem desde os 11 anos e a doença nunca a impediu de treinar e de competir em provas nacionais e internacionais com “grande persistência” ao longo de uma década, primeiro no Clube Náutico de Crestuma, depois no Douro Canoa Clube, de que foi sócia fundadora, como recorda o seu antigo treinador, José Cunha.
“Ficamos estupefactos com a sua morte”, lamenta José Cunha que descreve Catarina como uma jovem que fazia “um esforço enorme” para treinar e que apenas deixou a canoagem porque “tinha que ganhar a vida”. “Era franzina mas tinha muita resistência”, o que determinou que se dedicasse à maratona, com sucesso - ao longo da sua carreira conquistou 41 medalhas, chegava a fazer “entre 25 a 30 quilómetros”, acentua.
Para os médicos não há dúvidas
A história de Catarina não é inédita. O primeiro caso conhecido em Portugal foi o de Lourenço Salvador, nascido 15 semanas depois de a sua mãe, uma mulher de 37 anos vítima de uma hemorragia intracerebral, ter sido declarada em morte cerebral. Lourenço nasceu com 32 semanas de gestação no Hospital de S. José, o período mais longo até à data registado em Portugal de gestação de um feto por uma mãe em morte cerebral.
“É espantoso. É raríssimo em Portugal e no mundo”, destacou então o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, Luís Graça. Sobre o novo caso que aguarda por um desfecho no Hospital de S. João, Luís Graça não tem agora dúvidas em afirmar que optar por deixar crescer um feto no útero da mãe em morte cerebral faz todo o sentido. “Se podemos salvar um ser vivo, não há dúvidas nem discussões éticas a fazer-se”, defende.
Para Gonçalo Cordeiro Ferreira, que preside à Comissão Nacional de Saúde Materna, da Criança e do Adolescente e que integrava a comissão de ética que apreciou o caso de Lourenço, “cada caso é um caso com as suas peculiaridades”, pelo que “não há jurisprudência ética”. Em 2016, o Centro Hospitalar de Lisboa Central (que integra o S. José) ainda chegou a accionar um processo de protecção de “vida fetal” junto do Ministério Público, para a eventualidade de haver um conflito de interesses, mas nada disso foi necessário porque a família esteve desde o início do processo de acordo.
O médico defende que esta é uma situação que levanta não apenas questões éticas mas também técnicas. Os cuidados intensivos e de obstetrícia “têm que fazer o milagre” de reproduzir as condições e as substâncias necessárias à gestação do bebé com a mãe em suporte avançado de vida, nota, lembrando que a mãe funciona como “uma incubadora”.
“Se se pode salvar a criança, acho muito bem”, sentencia, sem reservas, Miguel Oliveira da Silva, ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). Sublinhando que há “pouquíssimos casos deste tipo no mundo” e que ninguém sabe quais serão as consequências deste processo, sobretudo a nível psicológico, o médico defende que, ponderando todos os riscos, trata-se sempre de uma criança que vai poder viver. “Há um valor maior que é a viabilização de uma criança saudável e já há precedentes que provam que o processo resulta”, acentua.
O actual presidente do CNECV, Jorge Soares, também não tem dúvidas. Há neste caso “um valor que sobreleva e que é o da vida da criança”. “Temos sobretudo que pensar que há um bem maior que é a possibilidade de gerar outra vida e que esta é das missões mais nobres”, enfatiza.