De Portugal para o Mundo: balanço do Colóquio Rastos Dominicanos (1)
Eu não podia perder esta ocasião para me aproximar do mundo imenso que desconhecia.
1. Não foram poucas as pessoas que quiseram saber por que razão não tinha publicado a crónica no passado Domingo. Vou explicar, mas começando mais atrás. Continuam a perguntar-me porque acrescento, à minha assinatura, OP. É uma longa história. Podia dizer simplesmente dominicano, pois pertenço a uma Ordem religiosa, fundada no seculo XIII, em França, por S. Domingos de Gusmão. Ele, porém, não queria fundar dominicanos, mas uma Ordem de Irmãos cuja missão, na Igreja, seria a pregação que a primeira Ordem dos Pregadores – a dos Bispos – tinha abandonado. Domingos não pretendia que o reproduzissem, mas que inventassem, em todos os tempos e lugares, os modos de partilhar a palavra do Evangelho da alegria. Os membros da Ordem não vivem para reproduzir a fisionomia do seu Fundador, mas para assumir o rosto das urgências da evangelização, em cada época. Não foi por acaso que o célebre pintor Matisse o apresentou sem a figuração do rosto.
Esta missão exigiu, desde o começo, o casamento do estudo com o anúncio e a reinterpretação contínua do Evangelho. Dessa ligação nasceu a teologia em diálogo com a cultura, elaborada de forma exemplar por Santo Alberto Magno e S. Tomás de Aquino. Da mesma raiz brotou a mística do infinito desassossego do Mestre Eckhart e o ardor da reforma da Igreja, com Santa Catarina de Sena. Da pregação incarnada no tempo e lugar irrompeu uma das páginas mais belas da história da humanidade com o Sermão de António de Montesinos. O seu grito contra a exploração dos índios transformou-se numa aliança de investigações e intervenção contínua entre Bartolomeu de Las Casas, a Escola de Salamanca representada por Francisco de Vitória: por direito natural, os índios são os verdadeiros senhores das suas terras e das suas riquezas. A nenhum título, nem o Papa nem o Rei de Espanha os podem privar desse direito! [1]
Não se julgue que essa efervescência filosófica e teológica esquecia a cristologia narrativa do povo iletrado: a distribuição das cenas evangélicas, pelos mistérios do Rosário, alimentou o povo católico por todos os continentes. Em nome da liberdade – uma Igreja livre num Estado livre –, Henri Lacordaire, nos finais do século XIX, restaurou a Ordem dos Pregadores, em França. A sua lucidez teve uma fecundidade espantosa, no século XX, preparando, numa história atribulada e criativa, muitas das inovações do Vaticano II.
2. Esta rápida evocação atraiçoa a complexidade de uma longa história. Passados 800 anos e com presença em todo o mundo, a Ordem dos Pregadores, autorizada por Inocêncio III, em 1215, confirmada por Honório III, em 22 de Dezembro de 1216, e reforçada pela bula Gratiarum omnium, de 21 de Janeiro de 1217, sentiu a necessidade de fazer um balanço histórico, de tão longo percurso, feito de fidelidades e traições ao seu projecto.
Esta Ordem terá chegado a Portugal entre os anos de 1220 e 1222. Frei Luís de Sousa antecipa a presença dos primeiros pregadores em Portugal para 1217, associando-a à figura de Frei Soeiro Gomes e ao Convento de Montejunto.
Em 2016, para o estudo desses 800 anos dominicanos, uma Comissão constituída por elementos do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA) e do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) desenvolveu em três lugares, três Jornadas com três temas de fundo: História, Memória, Património; Discursos, Teologia, Espiritualidade; Espaços, Homens, Percursos [2].
3. Na passada semana, de 9 a 11, realizou-se, no Palácio Fronteira e no Convento de S. Domingos, outro Colóquio muito original: Rastos Dominicanos. De Portugal para o Mundo. 600 anos da Província Portuguesa, com 26 conferências e uma visita guiada ao Convento de S. Domingos de Benfica e à actual Igreja de Nossa Senhora do Rosário.
Eu não podia perder esta ocasião para me aproximar do mundo imenso que desconhecia.
No final, Cristina Costa Gomes, em nome do ISTA e do CEHR, fez o balanço sintético deste espantoso colóquio. Remeteu-nos, em primeiro lugar, para a sua dimensão, não só em termos de número de conferências, mas principalmente da multiplicidade de áreas temáticas abrangidas, desde a História, à Arte, à Literatura, à Espiritualidade, à Teologia, à Pedagogia e Didáctica até à Missionação e Semiótica/Textualidade.
Os conferencistas vieram de diferentes universidades do país (Lisboa, Coimbra, Porto, Évora, Minho) e de diferentes centros de investigação e academias. Trouxeram abordagens distintas, linhas de investigação recentes e em aberto, com dados inéditos e novas problemáticas.
Podemos destacar como grandes linhas temáticas do Colóquio: os Dominicanos e as fundações Dominicanas femininas durante a Idade Média; os Dominicanos no período Moderno: espiritualidade e poesia feminina e grandes vultos dominicanos da Cultura Portuguesa do Renascimento, nomeadamente Frei Fernando de Oliveira, Frei Jorge de Santiago, Frei Luís de Sottomaior e Frei Bartolomeu Ferreira; a missionação Dominicana na África do Sudeste e na Ásia. Neste campo, em particular, questionou-se a importância dos percursos pessoais de Frei João dos Santos, Frei Gaspar da Cruz, Frei Silvestre de Azevedo e Frei Miguel de Bulhões e Sousa.
A arte acrescentou-se a estes tópicos com abordagens inéditas e propostas de diálogo entre a pintura, a arquitectura e a escultura. Desde as pinturas de Luís de Morales, às fachadas das Casas Dominicanas, no contexto da arquitectura quinhentista e seiscentista, problematizou-se a articulação entre a arte e a espiritualidade coeva.
Temas contemporâneos permitiram-nos viajar por questões como a pedagogia de Teresa de Saldanha, a edição da Revista Concillium (1965-1966) e a participação dos Dominicanos Fr. Mateus Peres, Fr. Raimundo de Oliveira e Fr. Bento Domingues nesta publicação, assim como a missionação dominicana no Brasil e experiências missionárias em Moçambique e no Peru.
Estes dias de trabalho levantaram novas problemáticas sobre o que falta fazer e que não cabem nesta crónica. Terei de voltar a esse desafio.
[1] António de Montesinos, O.P.; Bartolomeu de las Casas, O.P.; Francisco de Vitória, O.P., E estes não serão homens?, Ed. Tenacitas, Coimbra, 2014
[2] António Camões Gouveia, José Nunes, OP, Paulo F. de Oliveira Fontes (Coord.), Os Dominicanos em Portugal (1216-2016), CEHR da UCP, Lisboa 2018; Actas do Colóquio (Porto, Outubro 2012), A Restauração da Província Dominicana em Portugal. Memória e Desafios, Tenacitas, Coimbra 2012.