Não pode ficar pedra sobre pedra
Pela enésima vez, está nas mãos dos políticos uma solução tecnicamente validada para mudar esta cíclica calamidade que se abate pelo país. É o momento em que se pode mudar o rumo da História. Como? Despejando conhecimento — e não dinheiro e legislação, como tem sido habitual — em cima do problema.
O que agora se pede no relatório da comissão que analisou os fogos de Pedrógão é que praticamente não fique pedra sobre pedra, embora de formal gradual. E isso só é possível quando os critérios usados para designar as lideranças ou escolher os operacionais forem as capacidades, o saber apreendido e acumulado, e não o mero título, favor ou progressão natural de carreira. Esta é a pedra de toque de todo o novo sistema que se propõe. Mas vai-se muito mais longe: desde um novo modelo de gestão do combate à defesa das aldeias, passando pela prevenção, há um longo caminho a percorrer, haja coragem política para o iniciar.
Como ponto de partida, há factos incontornáveis: estamos num cenário de alterações climáticas e os incêndios florestais são uma consequência evidente que ainda se vai agravar mais.
Outro dado é o abandono no interior — nas aldeias vive apenas uma população envelhecida, com hábitos (como as queimadas) difíceis de contrariar e que só irá gerir a floresta se esta lhe der rendimento. Também por isso, o país está pejado de monoculturas que se tornam paióis de pólvora, não por si, mas porque ninguém as gere e a carga combustível que albergam é astronómica.
Finalmente, e esta é uma das razões que explica o tão elevado número de vítimas, o país é um exemplo paradigmático de desordenamento do território. Por todo o lado se autoriza a construção de casas em “teia de aranha”, floresta adentro, multiplicando os interfaces urbano-rurais que assim se tornam impossíveis de proteger.
Defender pessoas e bens sem abandonar a floresta
Os meios existentes têm como prioridade a defesa de pessoas e bens, o que na maioria das vezes leva a que as chamas sigam soltas floresta fora até irem ameaçar a povoação vizinha. Uma bola de neve que tem tido resultados desastrosos. Por isso, a comissão técnica propõe que no Sistema Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais se dividam estas duas competências: a gestão dos fogos e a protecção contra os incêndios.
No caso da protecção, estão as acções de educação e sensibilização e o combate nos interfaces urbano-florestais, onde se privilegia a actuação das organizações locais dado o conhecimento que têm do terreno. Aqui se incluem também as redes de protecção aos aglomerados urbanos e o apoio às populações em caso de evacuação ou procura de abrigos.
Já a gestão de fogos rurais é uma estrutura altamente técnica destinada a combater as chamas na floresta. Inclui a prevenção, isto é, a construção de faixas de gestão dos combustíveis, quer através do fogo controlado, quer através da pastorícia orientada e maquinaria. Também aqui tem uma importância crucial a gestão das queimadas, que devem ser vigiadas.
A coordenação deste sistema tem de ser muito especializada, com operacionais em dedicação exclusiva, juntando prevenção e combate, e sob comando único. Conhecer o comportamento do fogo, saber interpretar os dados da meteorologia, conseguir “ler” o terreno de forma a saber onde posicionar os meios e como atacar as chamas é aqui crucial.
O seu funcionamento deve ser avaliado para se perceber o que correu bem ou mal. Terá de ser transversal, envolvendo vários ministérios, as autarquias e as forças locais. Para isso, e como serão várias agências a trabalhar para o mesmo fim, a comissão técnica é clara ao dizer que o que valerão são as competências, isto é, a capacidade para usar conhecimentos e aptidões, e não os títulos ou hierarquias.
Defender as aldeias escolhendo pontos de abrigo
A dispersão das edificações pelo meio rural e o abandono da agricultura que, de algum modo, servia de “muralha” contra a progressão das chamas, tem deixado os aglomerados urbanos à mercê dos incêndios. A gestão de combustíveis em volta das zonas urbanas tem sido uma miragem, quer porque é muito caro fazê-lo e estas são populações sem grandes meios, quer porque o proprietário é absentista, quer porque as câmaras não fiscalizam a aplicação desta obrigação.
Só que, mesmo que outros substituíssem os absentistas, a falta de manutenção conduziria em pouco tempo a nova acumulação de combustíveis, perdendo-se o investimento. Assim, a comissão propõe que, com base no que se sabe sobre as zonas onde há maior risco de incêndio, se escolham locais para pôr em prática Zonas de Protecção à Aldeia.
As intervenções devem ser feitas por técnicos com formação nas áreas dos incêndios florestais e da protecção civil, com o apoio da população e instituições locais. O desconhecimento dos donos dos terrenos — o conhecido cadastro — tem sido apontado como um entrave mas, para a comissão, o interesse público sobrepõe-se e o comité de gestão criado para gerir estas zonas-tampão deverá poder substituir-se aos proprietários. Caso estes apareçam, querendo recuperar a gestão do seu terreno, terão de pagar o investimento feito ao comité de gestão e obedecer ao que foi decidido fazer naqueles locais.
E o que se deve fazer? A simples limpeza de combustíveis é cara e obriga a manutenções constantes. Assim, a comissão propõe que nestes solos, em volta das habitações, se plantem espécies de baixa inflamabilidade e que dêem retorno financeiro. É o caso dos pomares e dos frutos secos, como o medronheiro, o castanheiro, a nogueira, a aveleira ou o pistácio, entre outros.
Além disto, dentro dos aglomerados urbanos devem ser destruídos os edifícios devolutos que se transformam em focos de progressão do fogo. Os habitantes devem saber como se proteger, e muitas vezes as suas casas, devidamente isoladas com toalhas encharcadas, são os locais mais seguros. Porém, devem ser identificados locais seguros dentro das aldeias — muitas vezes a capela ou a junta de freguesia — para onde os habitantes devem ser encaminhados por duas ou três pessoas previamente identificadas e que receberam informação sobre as medidas a tomar. A evacuação, diz a comissão, só deve ocorrer em casos extremos.
E como se defende a floresta?
Os peritos são claros ao afirmar que as monoculturas de eucalipto e pinheiro são um problema. Porém, a mera substituição destas espécies por outras mais resistentes ao fogo de pouco servirá se se continuar a não fazer a gestão dos combustíveis. Para substituir estas plantações, terá de haver um controlo efectivo dos matos até que as outras espécies assumam uma estrutura que os tornem menos susceptíveis às chamas. O que demora tempo e exige investimento.
Para tentar resolver a situação, criando-se uma floresta mista, mais resiliente, há que pensar o que se quer para a floresta no país e pô-lo em prática. Mas, para convencer os proprietários a plantar espécies de que só beneficiarão os seus netos, há que criar mecanismos de compensação das perdas de rendimento que teriam.
Uma agência transversal para um problema nacional
Para melhorar a eficácia do sistema, ou se reformulava tudo ou se transforma o que existe progressivamente. Por uma questão de maximização de recursos, a comissão sugere a segunda hipótese. As estruturas existentes mantêm-se mas é criada uma nova entidade, transversal e hierarquicamente superior, que monitorize e assegure que as falhas do sistema agora identificadas são colmatas.
Esta Agência para a Gestão Integrada de Fogos avaliaria políticas, planeamento e finanças e introduziria conhecimento e estratégias. Teria competência sobre os três pilares: a prevenção estrutural, ou seja, a defesa da floresta que hoje é competência do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas; a prevenção operacional, que depende da GNR; e o combate, sobre a alçada da Autoridade Nacional de Protecção Civil. Estaria na dependência da Presidência do Conselho de Ministros e seria constituída por especialistas escolhidos por concurso público. Teria equipas distritais.