A luta bíblica de Negro Leo
O músico Negro Leo decidiu disputar o “deus da ira” das igrejas neopentecostais no Brasil. Vai percorrer os subúrbios contra esta “chantagem do mal”
1. Entre a consoada e o dia de Natal, portanto ontem, uma das feras da nova geração de músicos no Rio de Janeiro, Negro Leo, lançou um disco chamado Meu Reino Não é Deste Mundo — vol 1. São 15 atmosferas sónicas sob ou sobre a voz dele lendo passagens da Bíblia. No fim de um ano em que o “bispo” Crivella da IURD conquistou a prefeitura do Rio de Janeiro, Leo decidiu disputar o “deus da ira” das igrejas neopentecostais. Vai percorrer os subúrbios para desmontar esta “chantagem do mal”, e daí nascerá um volume 2. Não quer ficar quieto enquanto o Brasil é ameaçado com os infernos.
2. Negro Leo entrou em 2016 a compôr um outro disco, Água Batizada, que gravou no pós-Carnaval, com algumas outras feras musicais, incluindo a mulher, Ava Rocha, mãe da sua filha de quatro anos. Ava assina algumas das letras deste álbum deslumbrante, como aquela que diz “rochas se chocam / são búfalos correndo (…) acordamos num rompante / o futuro acabou / novamente estamos sós”. Conheci-os três carnavais atrás, em 2013, quando Leo, Ava e outros cúmplices pintavam o corpo, empunhavam máscaras, antecipavam de algum modo o abismo que aí vinha, numa banda-manifesto chamada Baile Primitivo. Meses depois as ruas rebentaram, e depois o Brasil. Neste Verão de 2016, Água Batizada é a “celebração do encontro de músicos” numa “cidade derrotada”, o Rio de Janeiro, escreve o crítico Fred Coelho no texto do encarte. “Um disco para ser ouvido na mais pura concentração daquilo que carregamos como um segredo: estamos vivos e ainda podemos inventar belezas no mundo. Ainda.”
3. Depois de ouvir Água Batizada em loop, sento-me com Negro Leo num velho boteco de Botafogo. Ele chega pontual, cabelo afro com uns pós de grisalho aos 33 anos, dois colares afro-brasileiros por dentro da camisa de seda às bolinhas. Quem conhece sabe que são guias de orixá, usadas no candomblé ou na umbanda. Negro Leo, registado Leonardo Gonçalves, nascido no Maranhão, crescido num subúrbio do Rio, que um dia aterrou no baluarte das ciências sociais da universidade pública, filho de uma católica que já frequentou terreiro de umbanda, pai de uma judia (porque Ava é filha de uma judia), afro-brasileiro por natureza, acredita num Jesus Cristo libertado e libertador. Ao longo de 2016 viu perder-se “a identificação com qualquer luta” no Brasil, até à actual “falta de mobilização depois do golpe”, que tirou Dilma Rousseff da presidência. Acha que houve “um fomento neo-liberal para que se exacerbassem as diferenças” e “ com isso não se percebeu o reforço das identidades no campo evangélico”, que neste momento já representa um quarto da população. Nada aconteceu “no campo trabalhista, não houve uma greve geral”. A controversa proposta de emenda constitucional PEC 55 (que congela gastos públicos por 20 anos, incluindo educação) “foi aprovada e parece que está tudo bem”. Enquanto em volta deste boteco, no estado do Rio de Janeiro, falido, os funcionários públicos estão a receber o salário em pedaços, e se o de Novembro ainda nem começou a vir que Natal é esse?
4. Olhando os protestos de 2013 à distância, Negro Leo vê “uma geração que não teve maturidade”. É a sua geração, “pessoas que beneficiaram do governo Lula, da criação de universidades, de centros de educação, de bolsas”. Ele acredita que, sim, “tinha uma inteligência ali de fazer com que o Brasil superasse obstáculos educacionais”, e que “agora há uma pilhagem do saber desenvolvido” então. Mas também acredita que o governo Lula criou as condições dessa perda, ao fazer “concessões à governabilidade”. O avanço dos evangélicos é uma das consequências, sendo que Negro Leo não detecta uma força na esquerda capaz de “lutar contra esse leviatã”. O que aconteceu em 2016, diz, foi “também um golpe mediático, que se apropriou das ruas, fez a direita sair nelas, capturou a insatisfeição de uma esquerda ecológica” com o governo Dilma. “E agora nenhum daqueles agentes que lutaram contra o PT está pronto a enfrentar o que vai cair sobre a população brasileira. Não têm força, não têm lugar, perdem-se em lutas fragmentárias, o campesinato afro-quilombola, o indígena atingido por barragens, em área de garimpo, micro-lutas que foram sendo desenvolvidas e que fazem com que a esquerda tenha um problema de identidade.” Enquanto isso, o campo evangélico “é um lugar de adesão identitária, de recrutamento agressivo, em condições de pobreza, com interpretações descabidas da Bíblia”. Ao ponto de Negro Leo achar que “o que existe no Brasil é um judaísmo neo-pentecostal”. Dá exemplos: “Você pega as novelas [da TV Record, propriedade da IURD] e tem o Moisés, o Rei David, os templos de Salomão, o Levítico. Tenho acompanhado muito os jornais evangélicos e basicamente as citações são do Antigo Testamento. Mas existe uma coisa no Novo Testamento que é destruir a ideia de Povo Escolhido.” Uma ideia que Negro Leo vê presente até hoje “no que Israel faz com a Palestina, que não é brincadeira, é surreal”.
5. Então, o que ele se propõe fazer, neste novo projecto “anarco-gospel”, é “disputar a exegese judaica levada a cabo pelo neo-pentecostalismo, porque essa é a única forma de assegurar as liberdades individuais”, de lutar contra um papel servil das mulheres ou a perseguição dos gays. “Vou pegar os trens, pregar lá dentro.” Na tarde de Botafogo cita passagens como “Vós tendes como pai o demónio” ou “Ele era homicida desde o princípio”, para rematar: “Esse Deus do Antigo Testamento, ele matou todo o mundo. Cristo vem com outra parada, de amor. E as interpretações dos evangélicos vão acabar com o amor nessa pátria. Imagina o Brasil sem Carnaval, sem profano, sem candomblé… Alguma coisa tem que ser feita.” Contra “a escravidão que persiste neste horizonte sombrio”, o contraponto será o “deus de Jesus Cristo e Jorge Ben” que diz aos homens: “Vós sois deuses, parte e todo da divindade.”
6. Meu Reino Não é Desse Mundo não sairá assinado, porque o disco anterior mal acaba de sair, Negro Leo não o quer atrapalhar. Seleccionou os textos, montou uma banda de jovens músicos, gravou, publicou; mas não tenciona reproduzir o disco nos trens da periferia. O plano é embarcar neles apenas com um outro músico, que levará um gravador. “Aí serei eu fazendo pregação, e a partir daí é que vou fazer o volume 2. Se um dia alguém perguntar “qual foi a tua contribuição nesse momento de marasmo total?”, a minha contribuição é disputar essa exegese.”
7. Mas da próxima talvez eu já não o possa mais achar nesse boteco, nessa cidade. Porque a falência soprou os concertos, paralisou quem vive de tocar ao vivo. Negro Leo e Ava Rocha estão de partida para São Paulo, onde a cena é maior, há mais oportunidades. E não são os únicos a deixar o Rio de Janeiro. “É a primeira vez que vejo um êxodo tão grande de artistas.”