Europeísmo de conveniência: a União Europeia na luta político-ideológica

As gerações de europeus de hoje têm de encontrar um novo modelo de integração. Este não pode continuar a esquivar-se da política, nem da democracia, em nome de um superior ideal europeu, demasiadas vezes instrumentalizado por europeístas de conveniência.

1. O referendo britânico levantou, novamente, a questão de saber o que é ser europeísta. Na utilização mais óbvia significa ser um apoiante da União Europeia, suportando, geralmente, todas as iniciativas para uma maior integração económica e política. Neste sentido, está próximo do federalismo. Mas o federalismo é apenas uma das possíveis formas que o europeísmo pode revestir, onde este ganha maior intensidade. É aquela que vê como favorável a fusão dos Estados-Nação europeus numa espécie de Estados Unidos da Europa. Não tem o seu monopólio. Num sentido abrangente — mais adequado para uma discussão política —, o europeísmo inclui todas as formas de pensamento favoráveis à integração europeia, pela via económica, política, ou cultural, bem como a uma nova entidade aglutinadora destes. Pode, ou não, ter como objectivo uma futura união política de tipo federal, ou uma integração económica próxima desse modelo. Há, por isso, graus e tonalidades diferentes de europeísmo (como também há graus e diferentes formas de eurocepticismo). É perfeitamente possível ser-se um europeísta convicto e um crítico duro da União Europeia, sobretudo face ao caminho de integração seguido nos últimos tempos. Para uma discussão europeia útil — sobretudo agora que a União Europeia se tornou num assunto que divide tanto a opinião pública —, não basta separar europeístas de eurocépticos. É necessário introduzir uma terceira categoria analítica, a que vou chamar os europeístas de conveniência.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

1. O referendo britânico levantou, novamente, a questão de saber o que é ser europeísta. Na utilização mais óbvia significa ser um apoiante da União Europeia, suportando, geralmente, todas as iniciativas para uma maior integração económica e política. Neste sentido, está próximo do federalismo. Mas o federalismo é apenas uma das possíveis formas que o europeísmo pode revestir, onde este ganha maior intensidade. É aquela que vê como favorável a fusão dos Estados-Nação europeus numa espécie de Estados Unidos da Europa. Não tem o seu monopólio. Num sentido abrangente — mais adequado para uma discussão política —, o europeísmo inclui todas as formas de pensamento favoráveis à integração europeia, pela via económica, política, ou cultural, bem como a uma nova entidade aglutinadora destes. Pode, ou não, ter como objectivo uma futura união política de tipo federal, ou uma integração económica próxima desse modelo. Há, por isso, graus e tonalidades diferentes de europeísmo (como também há graus e diferentes formas de eurocepticismo). É perfeitamente possível ser-se um europeísta convicto e um crítico duro da União Europeia, sobretudo face ao caminho de integração seguido nos últimos tempos. Para uma discussão europeia útil — sobretudo agora que a União Europeia se tornou num assunto que divide tanto a opinião pública —, não basta separar europeístas de eurocépticos. É necessário introduzir uma terceira categoria analítica, a que vou chamar os europeístas de conveniência.

2. Os europeístas de conveniência são um grupo vasto e heterogéneo. Não são europeístas por convicção. Esses acreditam, de forma genuína e incondicional num ideal europeu, nas suas diferentes formas, e apoiam a integração europeia / União Europeia precisamente por isso mesmo. Tal como ocorre com todas as ideologias políticas, o universo do europeísmo é bem mais preenchido por europeístas de conveniência do que por europeístas de convicção — uma escassa minoria. Quanto aos europeístas de conveniência, o que os move não são os ideais, mas interesses e a perspectiva de ganhos. (Na óptica pura dos ideais até poderão ser eurocépticos, por razões de direita ou de esquerda.) Actuam numa lógica essencialmente pragmática e / ou oportunística. O europeísmo de conveniência abrange todos os que, na classe política, vêem, para si próprios, possibilidades de ganhos de poder, ou vantagens na prossecução da sua visão político-ideológica e / ou novos lugares e perspectivas de carreira internacional nas diversas instituições europeias. Abrange, também, os grupos de interesses empresariais e profissionais para os quais fazer lobby em Bruxelas é mais compensador do que a nível nacional. Inclui, ainda, os especialistas ligados a think thanks, comités técnicos e outros organismos que proliferam ligados à tecnocracia de Bruxelas; as ONG financiadas pelo orçamento da União Europeia; e, claro, todos os que beneficiam dos programas e subsídios, desde a agricultura às universidades — para muitos dos quais é mesmo esse o seu modo de vida.

3. Como todos os ideais, o europeísmo não se materializa num vazio político, nem económico. Quando passado à prática, implica fazer escolhas concretas que tocam em interesses e potencialmente dividem. Quando essas escolhas, em que se materializa o europeísmo, se traduzem em benefícios para certos grupos, trazem-lhe, normalmente, adeptos de conveniência. Os partidos de centro-direita, que usualmente ocupam o poder, hoje são os que mais defendem a União Europeia e, sobretudo, as suas políticas económicas e monetárias. Não é por europeísmo de convicção, embora, sem qualquer dúvida, existam europeístas convictos nessa área política, tal como existem à esquerda. Estando o centro-direita mais próximo da orientação (neo)liberal da economia e o centro-esquerda mais próximo da linha Keynesiana, percebe-se bem as razões do europeísmo (de conveniência) à direita. As políticas do mercado único e da união económica e monetária prosseguidas pelas instituições europeias — mas também inscritas nos Tratados —, adequam-se, genericamente, à sua visão político-ideológica. Na prática, são um multiplicador de poder e de vantagens políticas internas.

4. Estamos perante uma condicionante estrutural criada por este modelo de integração europeia, o qual, supostamente, é apolítico (como se isso fosse possível num processo desta natureza!) Por isso, para o centro-direita, estar no governo, com esta condicionante estrutural, que limita as opções dos partidos à sua esquerda, é óptimo. Existe sintonia ideológica. Tende a beneficiar, adicionalmente, da cobertura e benevolência das instituições europeias, na interpretação das suas políticas e regras. Se estiver na oposição, também há vantagens. As políticas europeias ajudam a fazer o trabalho de oposição. Funcionam como factor de pressão adicional, dado o conflito de orientações políticas gerado pelos poderes já transferidos para as instituições europeias. Para uma discussão aberta e, tanto quanto possível neutral, importa deixar claro que isto não se aplica apenas ao centro-direita. Se estivéssemos numa situação contrária — onde a linha seguida pelas instituições europeias e Tratados fosse essencialmente Keynesiana —, teríamos, tudo indica, a situação inversa. Assistiríamos a um surto de europeísmo (de conveniência), na esquerda de poder, por similares razões; e à direita a fortes críticas imbuídas de um proporcional eurocepticismo.

5. As orientações de política económica e monetária da União Europeia geram europeístas de conveniência dentro dos Estados-Membros. Mas há outros exemplos interessantes ligados às ambições de poder dos grandes Estados-Nação. Os casos mais óbvios são a França do passado, sob a liderança do general de Gaulle, e a Alemanha de hoje, sob o governo de Angela Merkel. Em ambos os casos, sob formas diferentes, há uma instrumentalização das Comunidades / União Europeia para projectar o interesse nacional e multiplicar poder. Mas não são apenas os grandes Estados-Nação que procuram instrumentalizar a União, através de um suposto interesse geral europeu. Num outro extremo, encontram-se as ambições independentistas de pequenas nações, como a Catalunha e a Escócia, que pretendem ser Estados soberanos. Após o referendo britânico onde o eleitorado se pronunciou pela saída da União Europeia, a Escócia procurou, rapidamente, apresentar-se como um bastião de europeísmo. Os escoceses tinham votado a favor da permanência. Irão exigir outro referendo para se tornar independentes e membros da União Europeia. À primeira vista, um europeísmo exemplar. Na realidade, bem mais um europeísmo de conveniência. O nacionalismo escocês, tal como o dos catalães, procura aliados políticos externos contra a Estado do qual se quer separar. Sejamos claros: são nacionalismos apresentados, simpaticamente, como europeísmos. Em nada a beneficiam a União, só lhe trazem problemas.

6. A União Europeia queria ter o melhor de dois mundos. Por um lado, pretendia ter os poderes de soberania dos Estados, que, entretanto, lhe foram sendo transferidos pelos Tratados, em nome do interesse geral dos cidadãos europeus. Por outro lado, pretendia ficar afastada da luta político-ideológica nacional, despolitizando os assuntos. Criou-se a ilusão de que isso seria possível, e esta foi mantida durante bastante tempo. Para o efeito, surgiram mecanismos que reduzem o impacto das escolhas políticas nacionais dos eleitores, ao mínimo. Primeiro, os Tratados foram blindados com uma linguagem tecnocrática que intimida o cidadão, tornando-o dependente da mediação do especialista e / ou do político pró-europeu. Depois, foi criada uma burocracia em Bruxelas (Comissão) — desde os anos 1990 também em Frankfurt (Banco Central Europeu) —, que, na prática, não responde directamente perante os eleitores. Complementarmente, surgiu, ainda, um Tribunal (o Tribunal de Justiça da União Europeia) onde os juízes, normalmente, estão imbuídos de um convicto federalismo jurídico. Desde os primórdios das Comunidades que as suas decisões têm amplificado, e muito, o alcance da integração, pela via da jurisprudência. Ironicamente, este modelo acabou por ser traído pelos seus sucessos. Os contínuos avanços da integração criaram nova realidade, com uma presença mais visível da União Europeia, por vezes ressentida como intrusiva na soberania estadual. A crise financeira e económica de 2007/2008 fez o resto. A população despertou da sua letargia permissiva.

7. Hoje tornou-se claro, para qualquer cidadão, que a Comissão faz escolhas político-ideológicas: o valor máximo anual do défice, as metas orçamentais, as possibilidades de auxiliar bancos (Novo Banco, Banif, CGD, etc.), ou empresas em dificuldades financeiras (como, no passado, a TAP), não são meras escolhas técnicas: são políticas. Por sua vez, ter mais ou menos moeda em circulação, emprestar, ou não, dinheiro directamente aos Estados, aumentar ou diminuir as taxas de juro, optar por políticas com menos inflação, ou menos desemprego, são escolhas feitas pelo BCE que, sendo técnicas, têm também uma dimensão política. Iludida pela possibilidade de aumentar continuamente a integração e despolitizar, a União Europeia acabou por cair no meio das lutas político-ideológicas nacionais. É uma consequência do elevado grau de integração já atingido e de não criar bem-estar material em crescendo. Provavelmente, este será o novo normal. O problema é que nem Estados-Membros, nem as instituições europeias, estavam preparadas para isso. O método comunitário, inventado por Jean Monnet no pós-II Guerra Mundial, já não responde. As condições políticas e económicas do século XXI não são as dos anos 1950, nem sequer as dos anos 1990. As gerações de europeus de hoje têm de encontrar um novo modelo de integração. Este não pode continuar a esquivar-se da política, nem da democracia, em nome de um superior ideal europeu, demasiadas vezes instrumentalizado por europeístas de conveniência.

Investigador