O galeão San José terá o seu museu, resta saber se lá dentro estará um tesouro
O Presidente colombiano não avançou o nome do seu parceiro privado. A ser encontrada, a carga de ouro e esmeraldas com que até García Márquez sonhou promete gerar polémica - é que será preciso dividi-la.
Trezentos anos depois, o galeão San José começa a emergir ainda que, para já, não fisicamente. O Presidente da Colômbia revelou no sábado que os destroços da embarcação espanhola foram localizados e anunciou a intenção de criar um museu.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Trezentos anos depois, o galeão San José começa a emergir ainda que, para já, não fisicamente. O Presidente da Colômbia revelou no sábado que os destroços da embarcação espanhola foram localizados e anunciou a intenção de criar um museu.
Depois das “óptimas notícias” da descoberta, que partilhou em primeira mão no Twitter, o Presidente colombiano apresentou-se numa conferência de imprensa na base naval de Cartagena - a localidade de onde o San José partiu para a sua derradeira viagem em 1708 - e foi peremptório: “Sem dúvida, sem qualquer espaço para dúvidas, encontrámos, 307 anos depois de se ter afundado, o galeão San José”, anunciou Juan Manuel Santos.
Para os especialistas a descoberta é inequívoca. Na base desta certeza estão os canhões de bronze feitos especificamente para esta embarcação, uma das maiores da coroa espanhola, e que puderam ser observados através de imagens captadas por um sonar, que revelou ainda peças de cerâmica e outros artefactos.
A descoberta foi levada a cabo pelo Estado colombiano numa parceria público-privada, dirigida pelo Ministério da Cultura, com a supervisão técnica do Instituto Colombiano de Antropologia e História e a colaboração de peritos internacionais, cujas identidades as autoridades preferiram não revelar.
As operações de localização do galeão terminaram a 27 de Novembro nas proximidades de Barú, uma península entre a baía de Cartagena e as Ilhas do Rosário. O processo de escavação, intervenção e conservação deverá durar vários anos.
O museu que receberá os artefactos resgatados do San José, e cuja criação o Presidente anunciou também na conferência de imprensa, será construído em Cartagena.
Não se conhece ainda a extensão dos vestígios do galeão nem se sabe se será possível trazê-lo à superfície. Para já, pelas imagens recolhidas, o que as autoridades colombianas podem dizer é que acreditam que a sua carga se encontra preservada. Dela contarão ouro, moedas de prata, esmeraldas e, possivelmente, outras pedras preciosas. De acordo com a agência Reuters, este espólio poderá valer mais de mil milhões de euros, mas basta percorrer a imprensa internacional para perceber que este não é um número consensual - há quem fale em cinco mil milhões de euros.
Referindo-se àquele que será, provavelmente, “o mais valioso tesouro encontrado na História da humanidade”, e evocando o segredo de Estado, Juan Manuel Santos escusou-se a identificar o parceiro privado que se associou a esta operação de resgate.
Questão delicada
Os destroços do San José, tal como os de cerca de mil outras embarcações que se terão afundado naquela região ao longo dos três séculos de domínio colonial, encontram-se salvaguardados pela Convenção da UNESCO para a Protecção do Património Cultural Subaquático.
Em traços gerais, este documento de 2001, que Portugal também ratificou, defende que os galeões e outros navios naufragados que navegassem ao serviço do Estado devem ser considerados como embaixadas flutuantes, ou seja, como território do respectivo Estado. Nesse sentido, pertencem ao país de origem e não ao país em cujas águas foram encontrados. Ainda que a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) seja aparentemente clara nesta matéria, a aplicação das suas directivas é depois muito díspar. Em primeiro lugar, porque muitos países não adoptaram a Convenção e, em segundo, porque se trata de uma questão delicada, de interpretação complexa, que não pode ignorar a legislação do património de cada Estado.
Recorde-se que, em 2013, a Colômbia aprovou uma nova lei relativa ao seu património submerso que, segundo os mais críticos do documento, abriu espaço para a actividade de caçadores de tesouros. A legislação prevê que as empresas interessadas em procurar navios naufragados em águas colombianas avancem com uma parcela do financiamento e, em contrapartida, recebam uma fracção da carga descoberta segundo o critério da “repetição”. Ou seja, se for encontrado um lote de moedas de ouro o governo colombiano fica com parte delas para si e outras, desde que sejam iguais, podem ser usadas como forma de pagamento à empresa.
Jesus Garcia Calero, jornalista do diário espanhol ABC especializado em assuntos de património, lamentou num artigo que o presidente “não tenha esclarecido de que forma a equipa foi assistida por uma empresa privada”.
Calero defende que o San José, “o galeão ao qual todos os caçadores de tesouros do mundo sonharam alguma vez dar o golpe”, tem uma “história que merece se contada, mas não merece ser vendida”.
O San José fazia parte da frota do rei Filipe V usada em combate contra os ingleses durante a Guerra da Sucessão espanhola. Era, para muitos, a mais importante das embarcações da armada.
Ainda em 2013, a propósito da aprovação da nova lei colombiana, a UNESCO evocou a Convenção de 2001 para lembrar que “o património subaquático não deve ser vendido porque pertence a toda a humanidade".
A presidência colombiana, por seu lado, garante que os artefactos encontrados “fazem parte do Património Cultural da Nação, à excepção daquilo que a própria lei estabelece como não o sendo". Num comunicado oficial reitera-se que “a lei permite que se possa dispor dos elementos que não sejam considerados património”.
Que galeão é este?
Com 45 metros de comprimento, 13 de largura e capacidade para aproximadamente 70 canhões, o San José cruzou-se com a armada liderada pelo almirante inglês Charles Wager no dia 8 de Junho de 1708. Os ingleses procuravam impedir os barcos espanhóis de atravessarem o oceano com cargas preciosas, que serviriam para fincanciar o esforço de guerra franco-espanhol.
Uma cena de combate marítimo, que os registos históricos descrevem como violenta e intensa, terminou alegadamente com uma explosão no galeão espanhol, que foi ao fundo de imediato. Terão morrido 600 pessoas e ter-se-á perdido uma carga preciosa. Foi precisamente essa carga, um tesouro cuja existência está ainda por confirmar, que rodeou ao longo dos séculos o San José de uma aura mítica ímpar, matéria para a imaginação e para a criação.
Florentino Ariza, o herói de O Amor nos Tempos de Cólera, do Nobel Gabriel García Márquez, queria aprender a nadar e mergulhar o mais fundo possível para resgatar o seu tesouro e oferecê-lo à sua noiva à distância, Fermina. O próprio autor enumera no romance a dimensão do tesouro que o galeão transportaria nessa viagem que terminou em naufrágio: “No Panamá, onde carregara parte da sua fortuna: trezentos baús com prata do Peru e Vera Cruz, e cento e dez baús de pérolas, reunidas e contadas na ilha de Contadora. Durante o longo mês em que aqui permaneceu (...) carregaram o resto do tesouro destinado a tirar da pobreza o reino de Espanha: cento e dezasseis baús de esmeralda de Muzo e Somondoco e trinta milhões de moedas de ouro.”