Pesadelo encarnado
Descobri que temos um lugar na final da Taça de Portugal a disputar com o Benfica e que só dependemos de nós: o real é mais bonito que o meu pior pesadelo
Desde petiz que sou insone — as horas extra, dedico-as a actividades essenciais, como pôr-me a par dos últimos "papers" em neurociências, fumar, reler a literatura feminina sulista de finais do século XIX e início do XX, ponderando na influência que esta teve nos movimentos de libertação da mulher, acender mais um cigarro ou jogar FM.
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Desde petiz que sou insone — as horas extra, dedico-as a actividades essenciais, como pôr-me a par dos últimos "papers" em neurociências, fumar, reler a literatura feminina sulista de finais do século XIX e início do XX, ponderando na influência que esta teve nos movimentos de libertação da mulher, acender mais um cigarro ou jogar FM.
Isto quando não estou a inventar doenças infecciosas, para o meu filho ficar com a mãe e eu poder jogar FM livremente noite fora, enquanto varo croissants com chocolate e vejo pornografia "homemade" venezuelana. (Não descuro a colombiana, mas a venezuelana é mais "trashy".)
Decidido a não acabar como a Sylvia Plath, que após duas semanas sem dormir enfiou a cabeça num forno e ligou o gás (o que no meu caso é improvável, visto recusar-me a cozinhar), fui ao médico, que me passou drogas. E comecei não só a dormir como a sonhar — chegando mesmo a ter pesadelos à veterano de guerra que acorda suado a imaginar explosões de minas onde só há latidos nocturnos de um cão solitário sem médico que lhe prescreva drogas.
Um dos sonhos era a coisa mais tenebrosa que me atravessou o cérebro desde que um dia imaginei a possibilidade de Pedro Passos Coelho tornar-se Primeiro-Ministro.
Nele, mirava um Benfica-Porto que nem sequer era desta época: havia jogadores antigos misturados com os actuais — aquele rapaz com ares de empregado de café a quem chamavam Mariano Gonzalez, ou o Cebola, o único jogador que come mais croissants com chocolate do que eu (um hábito que levou o imbecil do meu filho a dizer aos berros, no meio do Pingo Doce, que eu estava grávido, enquanto apontava para a minha barriga).
E o Benfica ganhava. Não ganhava, só: goleava e com uma facilidade tremenda — num momento o Markovic entrava com a bola pela baliza adentro, Sálvio enviava Alex Sandro para a fila de transplantes de rins, e metade da equipa era expulsa perante o sorriso cínico de Maxi Pereira.
De seguida, para meu horror, estava n'A Bola TV, desenhando, com esforço hercúleo, um sorriso de cavalheiro pragmático enquanto admitia a derrota e dava os parabéns ao meu oponente (o João Malheiro, que entretanto já saiu do programa), enquanto pensava que me havia tornado transparente e o mundo inteiro podia ver o meu coração esmagado, reduzido a uma bola de carne que nem para almôndega servia.
O João atirava-me à cara todas as goleadas impostas pelos vermelhos aos azuis (“O 12 a zero”, bradava ele), enquanto encetava um discurso sobre fruta com um furor que nem a minha dietista — que tem horror a croissants de chocolate — alcança.
Acordei em posição fetal, a retorcer-me de angústia, a sussurrar "Mamã, mamã, onde estás tu, porque me abandonaste?", e do céu a minha mãe, que fazia malha, respondeu, com desprezo, "Estudasses".
Mal me pus de pé, abananado e sem saber em que ano estava, fui inteirar-me da situação. Descobri que temos um lugar na final da Taça de Portugal a disputar com o Benfica e que só dependemos de nós: o real é mais bonito que o meu pior pesadelo.
Para minha alegria temos um clube repleto de jovens promissores, nascidos nas Caxinas, habituados desde cedo à morrinha do Porto, que sentem a camisola e não usam o clube apenas como passagem para um cheque mais elevado. Temos uma Taça de Portugal para ganhar e eles, tão portistas como eu, não querem uma noite de pesadelo. Mas não vá o diabo tecê-las, hoje, por via das dúvidas, vou encher a mesinha de cabeceira de drogas.