Pobreza, igualdade de oportunidades e justiça social
Com a crise que Portugal atravessa tem-se posto em causa o Estado social em Portugal. Argumenta-se que este é muito oneroso, que é um desincentivo ao trabalho e que põe em causa a competitividade internacional das empresas devido aos elevados custos salariais que acarreta. Defende-se assim que deveríamos caminhar no sentido de um Estado assistencialista. Temos no entanto que ter consciência que as escolhas que fizermos neste domínio terão impactos profundos no combate à pobreza em Portugal.
O debate entre o Estado social, o Estado assistencialista e a pobreza não é novo. De facto, já na Revolução Industrial a pobreza era vista por muitos intelectuais como necessária ao crescimento económico, uma vez que, ao assegurar salários baixos, promovia a competitividade internacional. Para além disso, argumentava-se que o Estado não deveria ter qualquer obrigação na diminuição da pobreza, uma vez que caberia a cada um a responsabilidade de a ultrapassar. Estas ideias são a base do que hoje designamos por mercantilismo, e são pedra angular dos Estados assistencialistas (ou liberais, como também são conhecidos).
No século XIX, com os chamados utilitaristas, assistiu-se a uma mudança de paradigma. Para estes, o bem-estar de um país mede-se como a soma do bem-estar de todos os indivíduos dessa sociedade. Como tal, o bem-estar de uma sociedade será mais baixo quando uma grande parte da população vive na pobreza. Por outro lado, para os utilitaristas, a economia não pode ser só vista do lado da oferta, ou seja ter salários baixos para aumentar a competitividade. O consumo tem também importância uma vez que, quanto maior a procura doméstica, maior será a produção local. Isto é uma das bases da economia dos países escandinavos que, apesar de serem países pouco populosos, têm grandes mercados internos devido a uma combinação de salários elevados e uma compressão salarial que diminui as desigualdades entre os salários de topo e os mais baixos.
A pobreza como questão meramente económica começou a alterar-se na segunda metade do século XX. John Rawls e outros deram voz a uma crescente preocupação com uma sociedade da abundância onde ainda uma grande parte da população nem as necessidades básicas consegue satisfazer. Neste sentido, Rawls argumenta que enquanto só as elites tiverem acesso a melhor educação, emprego e saúde, as desigualdades sociais não mais se irão esbater. Segundo estas novas correntes, caberia pois ao Estado garantir a igualdade de oportunidades para promover a justiça social. Estas ideias estão na base dos Estados sociais modernos.
Mais recentemente esta visão têm sido alvo de contestação, e temos assistido, como o caso de Portugal demonstra, a um regresso das concepções mercantilistas. No entanto, a evidência empírica contradiz os argumentos por detrás destes ataques.
Primeiro, como os estudos de Martin Ravallion demonstram, a pobreza reduz o crescimento económico, porque um factor central para este é o capital humano. Ora, um indivíduo pobre não tem meios para investir em capital humano. Como tal, sociedades com muita pobreza têm menos capital humano. Mas hoje em dia, mais que ser competitivo nos salários, tem que se ser competitivo a produzir ideias, e sem capital humano não há ideias.
Segundo, não há também evidência de que as despesas sociais afectem o crescimento económico e a produtividade de um país (ver os estudos de Anthony Atkinson e Peter Lindert). Aliás, ao contrário do que muitos querem fazer crer, nem todos os Estados sociais têm tido uma má performance económica (e.g.: países escandinavos). No entanto, um aspecto que tem diferenciado os Estados sociais e os liberais é que os primeiros têm apresentado melhores resultados em termos sociais. Portugal, por seu lado, tem sido excepcional no sentido em que os resultados sociais têm sido tão maus como nos países liberais e a performance económica tem sido pior do que nos Estados sociais ou liberais.
No que diz respeito à performance económica de Portugal não é necessário mais evidência do que a prolongada crise económica que temos vindo a atravessar. Em termos de resultados sociais, basta referir que Portugal é um dos países da Europa com maior risco de pobreza e exclusão social (25% da população), com maiores desigualdades económicas (os 20% mais ricos têm rendimentos 5,7 vezes superiores aos dos mais pobres), com menor eficácia das políticas sociais (em Portugal as transferências sociais atenuam a pobreza em 24,5% enquanto a média na Europa é de 27%) e com menor mobilidade social entre classes (a disparidade entre os rendimentos de um indivíduo do sexo masculino cujo pai tenha atingido o ensino superior e de outro cujo progenitor não tenha ido além do 3.º ciclo do ensino básico situa-se nos 66,9%, o valor mais elevado da OCDE). Tudo isto demonstra que em Portugal não existe igualdade de oportunidades.
Para além disso a privatização das funções sociais do Estado pode não vir a melhorar os indicadores socioeconómicos de Portugal, antes pelo contrário. Por exemplo, os EUA são como Estado assistencialista o país do mundo com maior nível de caridade privada. No entanto, esta ajuda privada é bastante ineficiente pois pouco contribui para reduzir a pobreza nesse país. De facto antes das ajudas sociais, os EUA têm uma taxa de pobreza relativa de 17,2%, que é reduzida para 15,1% depois das ajudas sociais. Compare-se com a Suécia onde antes das ajudas sociais a taxa de pobreza relativa é de 14,8%, passando para 4,8% depois dessas ajudas.
O que isto demonstra é que se o Estado deseja incluir os privados nas funções sociais cabe a este garantir a universalidade das ajudas sociais, estabelecer metas que os privados têm que cumprir, e fiscalizar as prestações sociais pelos privados. Ou seja, o risco tem que ficar com os privados e os benefícios com o público. Doutro modo, só assistiremos a uma repetição do que tivemos com muitas parcerias público-privadas.
Em suma, na nossa sociedade moderna em que o capital humano é o mais importante para o crescimento económico, não nos podemos dar ao luxo de deixar cair uma grande parte da população no fosso da pobreza. Se o Estado social falhou em Portugal, não foi por culpa do Estado social em si, como outros países o comprovam, mas porque em Portugal não existe igualdade de oportunidades. Sem igualdade de oportunidades não haverá justiça social, e a pobreza será um beco sem saída. Norwegian School of Economics (SNF/NHH)