A sombra é também filha da luz

Durante longos anos, Stefan Zweig gozou em Portugal de uma invulgar reputação. Tanto assim que quase não havia casa com biblioteca, ou mesmo o proverbial punhado de livros, que não dispusesse de uns quantos volumes do autor de obras como Caleidoscópio, Lendas, Coração Impaciente ou até Triunfo e Infortúnio de Erasmo de Roterdão (“Meu venerado mestre”, chamou-lhe Zweig, que o considerava a “apresentação encapotada” de si próprio) e Maria Antonieta (“O destino favorece as analogias”). Contudo, e apesar dessa fortuna editorial, a atenção dispensada ao autor austríaco por parte das editoras nacionais não foi, de modo nenhum, regular, tal como não foi sistemática ou depurada a sua edição. Na verdade, houve que esperar pela década passada para surgirem edições dignas dos novos tempos, que contemplassem títulos inéditos, ou que pudessem substituir com proveito as traduções antigas. Foi o que aconteceu com os títulos então lançados pela Antígona — Confusão de Sentimentos (2004) e O Combate com o Demónio — Hölderlin, Kleist, Nietzsche (2004) — e pela Assírio & Alvim — O Mundo de Ontem: Recordações de Um Europeu (2005) e Magalhães: o Homem e o Seu Feito (2005). E volta a ser o caso da tradução de Novela de Xadrez — acompanhada de um breve estudo — que Álvaro Gonçalves fez para a Assírio & Alvim. Por seu turno, a Relógio D’Água reedita, numa série uniforme (Obras de Stefan Zweig) e em cuidada revisão, a tradicional tradução de Alice Ogando para Amok.

As duas novelas activam o dispositivo da deslocação e da distância para gerar os seus efeitos. Se, em Amok, Zweig recua às suas viagens orientais para compor uma narrativa de arrepiante revelação dos mais obscuros panoramas interiores da alma humana, em Novela de Xadrez o enquadramento ficcional da viagem por navio — presente em ambas — condu-lo ao horror nazi. (Trata-se, como é sabido, do único ponto da obra de Zweig em que essa referência é abertamente produzida.) Nos dois casos, a evasão no espaço permite uma invasão da psique das suas personagens. No entanto, e como diz aquele que é, decerto, o biógrafo de referência de Zweig, Alberto Dines: “Ao contrário de outros que buscaram a espiritualidade nos antípodas, Zweig trouxe na bagagem oriental a paixão doente, o sofrimento delirante, a corrida desvairada, tudo embutido numa exótica palavra malaia — amoq”. Nesse sentido, em Amok o exotismo é anulado em detrimento de uma constatação quase etnográfica. O termo que dá título à obra que viria a tornar-se uma das mais renomadas (se não mesmo a mais famosa) do autor é descrito como “a loucura, uma espécie de raiva humana, literalmente falando”: “A causa é, sem dúvida, o clima, esta atmosfera densa e asfixiante que oprime os nervos, como uma trovoada” (p. 37). O médico que começa por recusar-se a fazer um aborto e que, tarde de mais, tenta substituir o sinal desse primeiro impulso por um furor com tanto de amoroso como de patológico, é o sujeito ideal para esta prospecção impenitente, uma auto-análise até às últimas consequências: “Ponho-me a nu e digo: eu” (p. 19). A sua própria incumbência, enquanto narrador substituto, reflecte esta condição, que chega a explicitar-se — “Os enigmas psicológicos têm sobre mim uma espécie de poder inquietante” (p. 14). Com uma frieza que oculta o “império da febre” (p. 48), a narração do clínico revela uma obsessão imparável, que se desgoverna em torno daquela mulher que o leva a trair a dignidade profissional e a exigir como pagamento a pessoa da própria paciente, e que o conduzirá, no termo da sua narrativa, ao suicídio. Uma solução ficcional que, de resto, a novela introduz de forma subliminar mas irreprimível: menos como pista do que enquanto técnica da composição — “Quisera dormir… sonhar… e, no entanto, não me apartava desta magia, não voltava para baixo, para o meu esquife” (p. 11); “Eu não posso ficar no camarote, nesse túmulo…” (p. 15).

A própria embarcação em que decorre a narração é já um simulacro da morte, cuja pulsão habita o médico e permite formar os vínculos subreptícios da novela. De resto, o suicídio — de que o próprio autor viria a sucumbir — é um aspecto patente em diversos pontos da mundividência e da própria produção escrita de Zweig. Quando, por exemplo, se referiu aos últimos momentos de Freud, usou os seguintes termos: “Deu autorização ao médico para pôr fim à sua dor, como um herói romano”. E não são poucos os casos em que o suicídio surge como solução trágica das suas obras ficcionais. Pense-se, entre outras, em Coração Destroçado, Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher, ou neste Amok. E atente-se também no modo como descreveu a queda do autor de O Príncipe de Homburgo — “Kleist só conseguia suportar a vida na exacta medida em que a todo o momento estava preparado para dela se desfazer”. Isaac Babel foi intermediário do encontro soviético entre Stefan Zweig e Sergei Eisenstein. Antes do atabalhoado conciliábulo, Babel brindara o realizador com um relato empolgado de Amok. De tal forma que, quando ele, por fim, leu o livro, o considerou muito inferior à versão do amigo: “Pálido reflexo do verdadeiro Amok”, diria.

O jogo que, em Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher, é compulsão, fuga para a frente, desejo de morte nas mesas de jogo, torna-se, em Novela de Xadrez, uma sombria parábola sobre a opressão nazi. No tabuleiro, define-se a tensão de um passado de terror, já que é o jogo que compele a personagem à rememoração. O xadrez, “uma ciência, uma arte, oscilando entre estas categorias, como a urna de Maomé entre o Céu e a Terra” (p. 33), é a centelha que pôde salvar do mais fundo negrume a vítima do regime hediondo. O Dr. B., protagonista e segundo narrador da novela (a abdicação do narrador era um processo comum na ficção de Zweig), é uma declinação já distante do anti-herói — “Eu, um homem infeliz como sou, para quem a curiosidade pelas coisas relacionadas com a mente degenera numa espécie de paixão” (p. 35). A partir do momento em que o narrador passa a ser ele, a narração torna-se mais elástica, com saltos e abalos nos nexos lógicos e temporais — “Só muito depois, quando estava preso há já bastante tempo, me lembrei de que o seu comportamento de desleixo inicial no trabalho se transformara nos últimos meses num súbito afã” (p. 54). À tortura infligida pela Gestapo opusera o narrador, conforme revela na sua retrospectiva, uma espécie de erotismo da leitura e dos volumes impressos — “Há quatro meses que não sabia o que era ter um livro nas mãos e a simples ideia de um livro onde se podiam ver palavras enfileiradas, linhas, páginas e folhas, de um livro no qual se podiam ler, seguir, absorver no cérebro pensamentos distintos, novos, diferentes, desviantes, tinha qualquer coisa de embriagante e em simultâneo de anestesiante” (p. 64) —, vertido num ritmo composicional febril mas milimetricamente preciso; Romain Rolland, leitor atento da obra do seu amigo, sublinhou, precisamente, a importância da composição. Com impecável gestão verbal — do advérbio, por exemplo: “Este sistema do quarto de hotel estava concebido de forma diabolicamente útil e psicologicamente assassina” (p. 60) —, Zweig recria a inusitada tortura nazi aplicada à personagem. É em resultado desse mecanismo do horror que a personagem se depara com um manual de xadrez que, além de tábua de salvação perante a iminência de loucura, funciona como trave-mestra da narrativa e articula os seus ângulos só aparentemente desencontrados. A especialização xadrezista da personagem constituiu o antídoto para a tortura, a solução para o vazio — “Não há nada no mundo que produza uma semelhante pressão sobre a psique humana como o próprio nada” (p. 56) — de quem viveu “como um mergulhador numa redoma” (p. 57).

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Durante longos anos, Stefan Zweig gozou em Portugal de uma invulgar reputação. Tanto assim que quase não havia casa com biblioteca, ou mesmo o proverbial punhado de livros, que não dispusesse de uns quantos volumes do autor de obras como Caleidoscópio, Lendas, Coração Impaciente ou até Triunfo e Infortúnio de Erasmo de Roterdão (“Meu venerado mestre”, chamou-lhe Zweig, que o considerava a “apresentação encapotada” de si próprio) e Maria Antonieta (“O destino favorece as analogias”). Contudo, e apesar dessa fortuna editorial, a atenção dispensada ao autor austríaco por parte das editoras nacionais não foi, de modo nenhum, regular, tal como não foi sistemática ou depurada a sua edição. Na verdade, houve que esperar pela década passada para surgirem edições dignas dos novos tempos, que contemplassem títulos inéditos, ou que pudessem substituir com proveito as traduções antigas. Foi o que aconteceu com os títulos então lançados pela Antígona — Confusão de Sentimentos (2004) e O Combate com o Demónio — Hölderlin, Kleist, Nietzsche (2004) — e pela Assírio & Alvim — O Mundo de Ontem: Recordações de Um Europeu (2005) e Magalhães: o Homem e o Seu Feito (2005). E volta a ser o caso da tradução de Novela de Xadrez — acompanhada de um breve estudo — que Álvaro Gonçalves fez para a Assírio & Alvim. Por seu turno, a Relógio D’Água reedita, numa série uniforme (Obras de Stefan Zweig) e em cuidada revisão, a tradicional tradução de Alice Ogando para Amok.

As duas novelas activam o dispositivo da deslocação e da distância para gerar os seus efeitos. Se, em Amok, Zweig recua às suas viagens orientais para compor uma narrativa de arrepiante revelação dos mais obscuros panoramas interiores da alma humana, em Novela de Xadrez o enquadramento ficcional da viagem por navio — presente em ambas — condu-lo ao horror nazi. (Trata-se, como é sabido, do único ponto da obra de Zweig em que essa referência é abertamente produzida.) Nos dois casos, a evasão no espaço permite uma invasão da psique das suas personagens. No entanto, e como diz aquele que é, decerto, o biógrafo de referência de Zweig, Alberto Dines: “Ao contrário de outros que buscaram a espiritualidade nos antípodas, Zweig trouxe na bagagem oriental a paixão doente, o sofrimento delirante, a corrida desvairada, tudo embutido numa exótica palavra malaia — amoq”. Nesse sentido, em Amok o exotismo é anulado em detrimento de uma constatação quase etnográfica. O termo que dá título à obra que viria a tornar-se uma das mais renomadas (se não mesmo a mais famosa) do autor é descrito como “a loucura, uma espécie de raiva humana, literalmente falando”: “A causa é, sem dúvida, o clima, esta atmosfera densa e asfixiante que oprime os nervos, como uma trovoada” (p. 37). O médico que começa por recusar-se a fazer um aborto e que, tarde de mais, tenta substituir o sinal desse primeiro impulso por um furor com tanto de amoroso como de patológico, é o sujeito ideal para esta prospecção impenitente, uma auto-análise até às últimas consequências: “Ponho-me a nu e digo: eu” (p. 19). A sua própria incumbência, enquanto narrador substituto, reflecte esta condição, que chega a explicitar-se — “Os enigmas psicológicos têm sobre mim uma espécie de poder inquietante” (p. 14). Com uma frieza que oculta o “império da febre” (p. 48), a narração do clínico revela uma obsessão imparável, que se desgoverna em torno daquela mulher que o leva a trair a dignidade profissional e a exigir como pagamento a pessoa da própria paciente, e que o conduzirá, no termo da sua narrativa, ao suicídio. Uma solução ficcional que, de resto, a novela introduz de forma subliminar mas irreprimível: menos como pista do que enquanto técnica da composição — “Quisera dormir… sonhar… e, no entanto, não me apartava desta magia, não voltava para baixo, para o meu esquife” (p. 11); “Eu não posso ficar no camarote, nesse túmulo…” (p. 15).

A própria embarcação em que decorre a narração é já um simulacro da morte, cuja pulsão habita o médico e permite formar os vínculos subreptícios da novela. De resto, o suicídio — de que o próprio autor viria a sucumbir — é um aspecto patente em diversos pontos da mundividência e da própria produção escrita de Zweig. Quando, por exemplo, se referiu aos últimos momentos de Freud, usou os seguintes termos: “Deu autorização ao médico para pôr fim à sua dor, como um herói romano”. E não são poucos os casos em que o suicídio surge como solução trágica das suas obras ficcionais. Pense-se, entre outras, em Coração Destroçado, Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher, ou neste Amok. E atente-se também no modo como descreveu a queda do autor de O Príncipe de Homburgo — “Kleist só conseguia suportar a vida na exacta medida em que a todo o momento estava preparado para dela se desfazer”. Isaac Babel foi intermediário do encontro soviético entre Stefan Zweig e Sergei Eisenstein. Antes do atabalhoado conciliábulo, Babel brindara o realizador com um relato empolgado de Amok. De tal forma que, quando ele, por fim, leu o livro, o considerou muito inferior à versão do amigo: “Pálido reflexo do verdadeiro Amok”, diria.

O jogo que, em Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher, é compulsão, fuga para a frente, desejo de morte nas mesas de jogo, torna-se, em Novela de Xadrez, uma sombria parábola sobre a opressão nazi. No tabuleiro, define-se a tensão de um passado de terror, já que é o jogo que compele a personagem à rememoração. O xadrez, “uma ciência, uma arte, oscilando entre estas categorias, como a urna de Maomé entre o Céu e a Terra” (p. 33), é a centelha que pôde salvar do mais fundo negrume a vítima do regime hediondo. O Dr. B., protagonista e segundo narrador da novela (a abdicação do narrador era um processo comum na ficção de Zweig), é uma declinação já distante do anti-herói — “Eu, um homem infeliz como sou, para quem a curiosidade pelas coisas relacionadas com a mente degenera numa espécie de paixão” (p. 35). A partir do momento em que o narrador passa a ser ele, a narração torna-se mais elástica, com saltos e abalos nos nexos lógicos e temporais — “Só muito depois, quando estava preso há já bastante tempo, me lembrei de que o seu comportamento de desleixo inicial no trabalho se transformara nos últimos meses num súbito afã” (p. 54). À tortura infligida pela Gestapo opusera o narrador, conforme revela na sua retrospectiva, uma espécie de erotismo da leitura e dos volumes impressos — “Há quatro meses que não sabia o que era ter um livro nas mãos e a simples ideia de um livro onde se podiam ver palavras enfileiradas, linhas, páginas e folhas, de um livro no qual se podiam ler, seguir, absorver no cérebro pensamentos distintos, novos, diferentes, desviantes, tinha qualquer coisa de embriagante e em simultâneo de anestesiante” (p. 64) —, vertido num ritmo composicional febril mas milimetricamente preciso; Romain Rolland, leitor atento da obra do seu amigo, sublinhou, precisamente, a importância da composição. Com impecável gestão verbal — do advérbio, por exemplo: “Este sistema do quarto de hotel estava concebido de forma diabolicamente útil e psicologicamente assassina” (p. 60) —, Zweig recria a inusitada tortura nazi aplicada à personagem. É em resultado desse mecanismo do horror que a personagem se depara com um manual de xadrez que, além de tábua de salvação perante a iminência de loucura, funciona como trave-mestra da narrativa e articula os seus ângulos só aparentemente desencontrados. A especialização xadrezista da personagem constituiu o antídoto para a tortura, a solução para o vazio — “Não há nada no mundo que produza uma semelhante pressão sobre a psique humana como o próprio nada” (p. 56) — de quem viveu “como um mergulhador numa redoma” (p. 57).