No “Ocidente”, sexo foi durante séculos um tabu e quem o ousasse representar arriscava-se a uma feroz censura. Ao mesmo tempo, no Japão produziam-se pinturas, xilogravuras e livros onde sexo explícito era o tema principal. A arte shunga (lê-se algo como “xun-gá”) desenvolveu-se e atingiu um pico no período Edo (1600-1868) tendo depois sido suprimida e condenada ao esquecimento. Até recentemente. Um projecto de investigação da School of Oriental and African Studies (SOAS) da Universidade de Londres em colaboração com o British Museum permitiu que, pela primeira vez, se organizasse uma exposição de arte shunga. É um marco na exibição de arte asiática na Europa que convida a uma reflexão sobre as fronteiras entre arte e pornografia, ao papel do sexo no imaginário social e à relevância da arte japonesa num contexto mundial. Basta pensar no quão influentes terão sido obras shunga para autores como Picasso ou Toulouse-Lautrec, ambos possuidores de gravuras eróticas japonesas.
Shunga: Sex and Pleasure in Japanese Art reúne cerca de 170 obras de várias colecções europeias, japonesas e norte-americanas produzidas sensivelmente entre 1600 e 1900 para traçar um quadro da evolução e características da arte shunga. É aconselhado acompanhamento parental para menores.
Andrew Gerstle, Professor de Estudos Japoneses na SOAS, foi o iniciador e líder do projecto de investigação sobre shunga. O objectivo, disse ao Ípsilon, era “a publicação de obras sobre esta arte, bem como a preparação de uma exposição e catálogo”. Além de Gerstle, também Akiko Kano, investigadora na SOAS, esteve envolvida no planeamento da exposição “do início ao fim”.
Arte do prazer e do riso
O que caracteriza, sumariamente, a arte shunga? Partindo de uma descrição do sumptuoso catálogo de 536 páginas e extraordinárias reproduções iconográficas, uma típica imagem shunga “é concebida para apresentar simultaneamente tanto as expressões faciais de êxtase como os mecanismos para essas sensações – órgãos sexuais aumentados e meticulosamente representados”.
Nas gravuras tinham também grande importância os têxteis, quer os das vestes das figuras quer os da roupa de cama ou outros. Surgem também objectos alusivos ao luxo dos intervenientes, como utensílios de fumo ou de preparação de chá ou saké e mesmo livros eróticos. Além do elemento gráfico, as obras shunga continham também elementos textuais, nomeadamente legendas reproduzindo o diálogo entre os amantes escritos, muitas vezes com humor e até com onomatopeias para expressões de prazer.
O que surpreende os observadores actuais é um afastamento do realismo: os órgãos sexuais, sobretudo masculinos, são representados de forma desproporcional. Também a frequência das gravuras shunga leva os investigadores a concluir que esta arte não representava necessariamente a realidade de hábitos sexuais no Japão da época mas sim fantasias concebidas para serem apreciadas por terceiros (daí, também, a frequente representação de observadores ou outros participantes nas cenas representadas).
O conteúdo e os sujeitos das pinturas variavam. Há (muitas) imagens de sexo entre homens e mulheres, mas também se encontram de um homem com várias mulheres, de homens com homens, de humanos e espíritos e até de monges. Sexo entre dois homens era algo socialmente aceite e frequente, por exemplo, entre actores de kabuki que interpretavam papéis femininos (onnagata) e os seus patronos.
Exemplos de arte shunga eram apreciados como arte, mantidos como manuais de instrução (algumas peças seriam produzidas para ser incluídas nos “enxovais” femininos), e até transportados pelo que se acreditavam serem propriedades apotropaicas (por exemplo, para afastar fogos). Eram mesmo oferecidos como presente e a exposição ilustra bem como vários estrangeiros que visitaram o Japão, sobretudo na fase final do período Edo, receberam ou foram convidados a ver livros shunga pelos seus anfitriões.
Por vezes, gravuras eróticas foram usadas para representar estrangeiros e o que se supunha serem os seus hábitos sexuais. Há na exposição representações de holandeses e chineses – comerciantes desses países eram os únicos autorizados a negociar com o Japão durante o período Edo, estando largamente confinados à ilha de Dejima ao pé de Nagasáqui. Cenas eróticas em Nagasáqui (c. 1800-20) é um álbum de gravuras shunga executadas com pigmentos de alta qualidade e folha-de-ouro representado actos sexuais entre chineses ou holandeses e trabalhadores do sexo japonesas onde o ambiente das figuras é luxuosamente representado e mesmo “exotizado”.
A designação “shunga” deriva do chinês “chun hua”, literalmente “imagens de primavera”. Gerstle explica ao Ípsilon a ligação à China: “Os japoneses tinham uma longa tradição de arte sexual explícita mas por volta do século XVI há sinais de influência da dinastia [chinesa] Ming, onde a impressão a cores floresceu e textos eróticos foram produzidos em quantidade”. Outra influência chinesa foram “obras médicas sobre sexo e técnica sexual”. Mas esta influência, segundo o autor, não deve ser exagerada. “Shunga é muito diferente no conteúdo e no estilo”, embora, “a China seja muitas vezes vista pelos japoneses como uma fonte de legitimidade para um tema, e isto foi verdade também para a arte shunga”.
Parte da razão para a ausência de uma noção pecaminosa do sexo está, segundo um artigo do curador Tim Clark na revista de Outono do British Museum, ligada ao conjunto de crenças a que hoje chamamos Xintoísmo. Em áreas rurais do Japão havia tradições que incluíam a veneração de representações de órgãos sexuais, vistos como fonte de fertilidade e capazes de afastar o mal.
Uma das facetas mais curiosas da arte shunga é a presença frequente de aspectos humorísticos. Isto porque a arte shunga estava por vezes associada a interpretações erótico-satíricas de obras como clássicos literários (como Genji Monogatari) e peças de teatro Noh, não faltando paródias a livros educativos femininos (espécie de manuais de bom comportamento). Não será por acaso que uma outra denominação das imagens shunga era “imagens de riso” (warai-e).
Andrew Gerstle explica ao Ípsilon que “a tradição de paródia e sátira era evidente no Japão não apenas em shunga mas também noutras formas de arte e literatura.” Para Gerstle, “as paródias shunga dos manuais educativos femininos eram subversivas pois criavam um discurso no qual as mulheres deveriam ser o oposto da ortodoxia de base confucionista desses manuais. A arte shunga promovia a ideia que as mulheres deveriam interagir com homens e no mundo dos homens, que deveriam ser sexualmente activas e esperar prazer sexual”.
A dimensão satírica da arte shunga poderia também ser política: “Há outras paródias shunga que atacam mais directamente o sistema Tokugawa, fazendo piadas eróticas de figuras históricas e do teatro Noh, que era a arte ritual oficial do governo”, diz Gerstle. O professor da SOAS acrescenta no entanto que “há ainda muito trabalho de análise por fazer para compreender o quão subversiva era a arte shunga no período Edo”.
Projecto internacional sobre uma arte única
Tim Clark, chefe da secção japonesa do departamento de Ásia do British Museum e o principal curador da exposição, contou-nos que foi abordado pelo professor Gerstle em 2007. A exposição que, seis anos depois, se pode visitar no British Museum resulta de um trabalho de investigação conjunto que envolveu instituições britânicas (o museu e a SOAS) e japonesas (o International Research Center for Japanese Studies e o Art Research Centre da Universidade de Ritsumeikan, ambos em Quioto). O projecto, adianta o curador, “foi financiado pelo Leverhulme Trust, UK, e durou formalmente de 2009 a 2013”.
Como gerir a parceria entre as várias instituições? Tim Clark explica-nos que “os parceiros japoneses têm importantes colecções públicas de shunga. O professor Gerstle tomou a iniciativa de organizar workshops internacionais semestrais, e vários outros académicos interessados juntaram-se ao projecto. Eventualmente mais de trinta académicos mundiais contribuíram para o catálogo”, embora Clark tenha liderado o desenvolvimento da exposição no museu.
“O British Museum tem uma das melhores colecções de shunga fora do Japão – sendo uma das mais antigas, com início em 1865”, salienta Tim Clark, nas declarações ao Ípsilon. “Partimos da colecção do museu e pedimos emprestados várias das melhores obras de colecções públicas e privadas no Japão, Reino Unido, Europa e Estados Unidos da América.” A primeira parte do projecto de investigação passou precisamente por “fazer o levantamento das colecções de arte shunga pelo mundo, o que se revelou muito vasto”.
Segundo Clark, “não é usual que uma cultura pré-moderna tenha tantas obras que sejam tão artisticamente belas e bem trabalhadas, e também tão sexualmente explícitas.” Para o curador “isto sugere uma atitude perante o sexo substancialmente diferente do ponto de vista cultural” e a arte shunga “encoraja-nos a repensar a divisão severa que evoluiu no Ocidente entre o que classificamos, por um lado, como ‘arte’, e por outro o que condenámos como ‘obsceno’ ou ‘pornográfico’”.
Ian Buruma, investigador e autor de uma série de livros sobre o Japão, escreveu no Guardian que o Japão foi o único país do mundo onde a arte erótica foi algo mainstream. Todos os grandes artistas japoneses do período parecem tê-la praticado, basta mencionar nomes como Kitagawa Utamaro ou Katsushika Hokusai, cujas obras eróticas se podem apreciar no British Museum. Da autoria do último está um dos trabalhos mais importantes da exposição, que terá tido impacto muito para além das fronteiras artísticas do Japão. A gravura Sonho da Mulher do Pescador (1814) é uma intrigante e sensual representação de uma mulher em êxtase enquanto um polvo lhe faz sexo oral e outro a beija na boca.
Para Gerstle a relevância da arte shunga é enorme. “Muitas destas obras shunga estão entre os melhores exemplos de arte japonesa. O nível de qualidade de pintura e de xilogravura é, de facto, muito alto”, disse ao Ípsilon. “Alguns dos livros impressos mais extravagantes do mundo são de shunga. A representação do corpo, claro, é fascinante, uma vez que os artistas tentaram repetidamente inovar ao mostrar os casais abraçados”. Segundo Gerstle, “há muito na arte shunga que promove uma visão humanista do prazer mútuo entre homens e mulheres”.
Ascensão e queda
Com a reunificação do país sob a égide dos xogunato Tokugawa, o Japão iniciou um período de relativo isolamento, em que os contactos com o exterior foram controlados, período este também conhecido como Edo (nome então dado a Tóquio, capital do xogunato). É neste Japão feudal, organizado sob estritos códigos morais de matriz confucionista, que a arte shunga se desenvolve. Um contraste que os curadores notam no catálogo entre uma esfera pública fortemente regulamentada e uma esfera privada independente o suficiente para conceber e apreciar shunga.
O período Tokugawa é frequentemente associado também aos “distritos de prazer”, espaços de prostituição legal de que o mais icónico era Yoshiwara, em Tóquio. No entanto, os curadores concluem, no catálogo, que os laços entre o comércio sexual e a arte shunga não eram tão lineares como possa parecer e que a noção de sexo como um negócio era de compatibilidade duvidosa com as fantasias de shunga, onde as cortesãs eram mais representadas com os seus “amantes secretos” do que com clientes. Além disso, o objectivo da arte shunga era “sugerir o potencial do sexo em toda a sociedade”, não apenas entre aqueles que podiam frequentar os supracitados distritos. Quase podemos dizer: uma versão democrática do prazer.
Embora tenha sido ilegalizada em 1722, a arte shunga continuou a ser produzida e a circular de forma considerável. Talvez ironicamente, é com a (re)abertura do Japão ao mundo com a restauração Meiji (1868) – que voltou a colocar o imperador como autoridade máxima no Japão e abriu o caminho à extraordinária modernização do país – que a arte shunga inicia um inexorável declínio.
Sobre a situação nos anos de transição entre o final do período Tokugawa e o início do Meiji, Tim Clark explica ao Ípsilon: “Já em 1859, com a reabertura do porto de Yokohama ao comércio estrangeiro, registaram-se alguns encontros culturais fascinantes entre viajantes em negócios e diplomatas a trabalhar no Japão e os seus colegas anfitriões japoneses. Rapidamente se tornou evidente que tinham atitudes muito diferentes para com o sexo e a representação do sexo na arte”. Segundo Clark, a supressão da arte shunga acentuou-se após a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, da qual o Japão saiu vitorioso.
Algumas das peças na parte final da exposição datam precisamente da Guerra Russo-Japonesa e denotam já uma transição entre a tradição shunga e uma iconografia moderna: Em Enfermeira e Soldado (c. 1894-1905), um soldado japonês faz amor com uma enfermeira, os uniformes de ambos já bem distantes das tradições de vestuário japonesas tão exuberantemente pintadas nas gravuras do período Tokugawa; noutra outra imagem de 1904-05, um soldado japonês sodomiza um russo. O catálogo da exposição nota que, “metaforicamente, esta imagem de um soldado japonês sexualmente activo pode ser interpretada como um Japão masculino e conquistador [...], a Rússia não mais a força dominante na região mas subserviente à nova potência, o Japão”.
A última parte da exposição é dedicada à arte shunga no período contemporâneo, nomeadamente após a restauração Meiji Mas no mundo moderno do Japão a arte shunga deixou de ter lugar. Andrew Gerstle diz ao Ípsilon: “Para que o Japão fosse aceite como civilizado, o Governo japonês tentou suprimir tradições populares nativas que considerava atrasadas em relação à cultura de classe alta europeia. Isto incluía [teatro] kabuki, [pintura/gravura] ukiyo-e e música de shamisen, assim como shunga”.
Em cinquenta anos, a arte shunga passava de algo comum a algo secreto. “Desde cerca de 1900 a supressão de arte shunga tornou-se vigorosa e por altura do pós-Segunda Guerra tinha-se tornado um tabu em universidades e museus”, explica Gerstle. “É difícil perceber porque é que as autoridades japonesas eram (e ainda são) tão fortemente conta a arte shunga”, continua o académico, que levanta, no entanto, uma hipótese: “Talvez seja em parte pela ênfase no prazer sexual das mulheres”.
Tim Clark corrobora: “Durante a maior parte do século XX shunga foi tabu e só foi possível publicar obras abertamente sobre o assunto desde cerca de 1990. Até à data, nunca houve uma grande exposição de arte shunga no Japão”.
A exposição do British Museum recebeu mais de 50 mil visitas em menos de dois meses (estará em exibição até 5 de Janeiro), “mais do dobro do que era esperado”, diz-nos Clark, confirmando o igualmente impressionante sucesso da mostra junto da crítica e a ideia de que, segundo sugere uma preliminar avaliação anedóctica, “há um enorme interesse e satisfação por parte dos visitantes.”
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