O violento desaparecer da confiança

A violência pode ser física, como quando alguém carrega numa manifestação sobre nós, ou sentida simbolicamente, quando as palavras ou as decisões de alguém nos atingem nas nossas mentes ou no nosso dia-a-dia pela diminuição do amparo social.

A violência em que mergulhámos na Europa nos últimos três anos, desde que a austeridade foi generalizada como política de Estado, é essencialmente desse último tipo, é simbólica.

No entanto, esta violência é essencialmente dirigida para os mais desfavorecidos e para as classes médias, poupando a ela os muito ricos e os ultra-ricos.

O sociólogo Anthony Giddens referia, há 14 anos atrás, numa conferência realizada na Fundação Gulbenkian em Lisboa, que vivíamos numa época que necessitava de radicalismos, de cortes com o passado.

Giddens argumentava que numa sociedade aberta, onde a  informação é global – e eu acrescentaria onde a informação circula em rede – os cidadãos partilham o mesmo ambiente informativo dos seus governos e a proximidade destrói a confiança.

Ou melhor, a proximidade coloca à vista desarmada as antigas e viciadas formas de legitimação política. Isto porque, ainda nas palavras de Giddens, grande parte da política das democracias assenta em acordos de bastidores, simbolismos tradicionais, redes de interesses com origem em diferentes grupos de pertença e o uso de recursos do Estado para premiar indivíduos pelo seu apoio eleitoral.

A resposta dos partidos políticos a essa perda de confiança, trazida pela maior proximidade entre eleitos e eleitores, não poderia ter sido encarada com a leveza com que o foi ao longo dos últimos 14 anos em Portugal e na Europa.

E o insustentável preço dessa leveza é hoje reflectido nas apreciações de falta de confiança dos cidadãos sobre as instituições políticas e sobre os políticos europeus.

Essas estratégias de leveza aparentaram funcionar, política e economicamente, durante alguns anos, até que em 2007/2008, fruto da conjugação de incapacidade de fazer política democrática e substituição do Estado por novos actores privados, a finança implodiu e a economia teve de ser sacrificada para salvar a causa da crise – isto é, o próprio sistema financeiro.

As escolhas e a experimentação activa dos actores políticos à esquerda e à direita produziu na Europa uma paisagem financeira sem regulação e que nos colocou, já por vários momentos, à beira da capitulação económica.

Uma paisagem financeira, que foi culturalmente baseada na confiança da maioria dos cidadãos na melhoria de vida baseada no acesso ao crédito de consumo, na redução da sua propensão para poupar e na expectativa de crescimento económico ancorado nos mercados bolsistas. O Estado, as suas instituições e os políticos, tanto à esquerda como à direita, aceitaram esta via como boa, como única e inevitável.

O óbvio contraponto, ou mesmo condição necessária, foi também que, culturalmente, a confiança fosse sendo retirada ao Estado e à sua capacidade de resolver problemas, bem como, se introduzisse a crença generalizada na incapacidade dos políticos nacionais em lidar com o que lhes era externo, os mercados globais.

A política foi ganhando assim uma aura, não de representação do poder delegado pelos cidadãos, mas apenas de gestão do resto que precisava de ser gerido. Sendo esse resto entendido como tudo aquilo que não estivesse já na esfera financeira, ou aquilo que fosse ainda necessário integrar nessa esfera. Ou seja, tudo o que na dimensão económica pública pudesse ser rentável, privatizável, financializável ou contratualizado em parcerias público/privadas.

Quando o sistema financeiro Europeu esteve à borda do colapso em 2008, foram os próprios ideólogos e praticantes do Estado mínimo que pediram o socorro do Estado, como única entidade capaz de mobilizar activos financeiros capazes de impedir o fim do mundo como o conhecíamos. Mas, após ano e meio de investimentos públicos nacionais e europeus para salvar o sistema financeiro, chegou-se à conclusão que tal não era suficiente. Foi, então, necessário acelerar a transferência de activos financeiros, actuais e futuros, do sistema de propriedade e gestão pública para a dimensão financeira, e fazê-lo acompanhar de parte substantiva da propriedade e rendas privadas particulares dos cidadãos, isto é, aquilo a que se convencionou designar por política de austeridade, com diferentes graus de aplicabilidade conforme o país europeu.

A austeridade na Europa traduziu-se, assim, em tentar salvar a confiança no sector financeiro à custa da destruição de todas as outras formas de confiança individual ou organizacional.

O problema reside em que, se perdemos a confiança no sistema político, nos governos, nos partidos, na dimensão administrativa e burocrática europeia e se o substituímos por uma crescente confiança nos mercados e, agora, percebemos que não só não devemos confiar no sistema bancário europeu (basta pensar no escândalo Libor), como também não podemos confiar nos que nos pedem para confiar na sua avaliação dos mercados, pois as agencias de rating falharam na recente avaliação da ESMA, então em quem devemos confiar?

A prática de observação, e a dimensão histórica, dizem-nos que, quando não confiamos mais nas instituições, buscamos confiar em pessoas. Mas se os políticos são hoje geralmente mal apreciados (o que é um erro porque não há nem mais nem menos pessoas honestas na política do que no mundo dos negócios), será que podemos confiar nos que sabem gerir os seus negócios, os ultra-ricos, para nos ajudarem a gerir as nossas vidas?

Provavelmente não, pois os ultra-ricos são aparentemente a última etapa, numa série longa de embates, a ser atingida pela desconfiança. E a razão é aparentemente simples, pois nas nossas sociedades a ideia da existência de gestores brilhantes e eficazes convive com a percepção de que, enquanto a maioria da população perde riqueza, em paralelo assiste-se ao surgimento de mais desigualdades e do aumento do número de ultra-ricos tanto em riqueza acumulada quanto em número, quer em Portugal quer na Europa.

A desconfiança da sociedade torna-se endémica face aos ultra-ricos quando damos conta que a riqueza não se cria apenas com oportunidade, esforço e boas ideias. Para a criação de riqueza o acesso ao crédito é sempre um elemento fundamental. Ora, numa época de escassez de crédito na Europa, por via da necessidade de canalizar activos para recapitalizar a banca, o crédito flui essencialmente para aqueles que detém a confiança do sistema financeiro. Ou seja, para os que têm ideias, esforço e a oportunidade, porque fazem parte do próprio sistema financeiro. Fazem parte daquele porque detêm parte do mesmo, ou porque estando no Estado garantem o aval do sistema financeiro através da mesma lógica de política democrática de favores mútuos que Giddens criticava em Lisboa em 1999.

A esta lógica, os sociólogos Michel e Monique Pinçon denominam a “ Violência dos Ricos”. Uma lógica que produz uma democracia assente numa aristocracia do dinheiro. Uma nova aristocracia financeira, de prática oligárquica e que, para assegurar o seu poder, controla culturalmente, e por vezes activamente, o essencial das forças políticas à esquerda e à direita, através de um pensamento assente na trindade: livre circulação de capitais, menos Estado e cada um por si.

O violento desaparecer da confiança, introduzido pelo novo século e produzido pelas suas novas elites, é assim o produto de um capitalismo irresponsável e da, até agora, ainda impotente busca da responsabilização deste tipo de capitalismo.

O autor é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.

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