“Uma esquerda em que cada um puxa por uma ponta não sai do sítio”

A convergência à esquerda pode ter nome de partido. É esse o principal objectivo do LIVRE, um projecto de Rui Tavares que, mais do que nas europeias, tem os olhos postos nas próximas legislativas. E no PS.

Foto
Rui Tavares promete primárias abertas no partido em formação Rui Gaudêncio

Um novo partido não contribui para dividir mais a esquerda?
Um novo partido pode contribuir para dizer algumas coisas que têm faltado no discurso à esquerda, pode contribuir para clarificar o ambiente e até ajudar a criar convergências à esquerda. Se esse novo partido tiver mecanismos de democracia interna que têm faltado noutros partidos, pode contribuir para um entendimento à esquerda. Se trouxer gente que não está na política e está frustrada porque ela não avança, está a contribuir para puxar a governação para a esquerda que é, do meu ponto de vista, o essencial desta gente que está no meio da esquerda. Uma esquerda em que está cada um a puxar por uma ponta, um bocadinho como a alavanca do Arquimedes, não sai do sítio. Como dizia Arquimedes: "dêem-me um ponto de apoio e eu levanto o mundo". E isso já temos: é uma maioria sociológica de esquerda.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Um novo partido não contribui para dividir mais a esquerda?
Um novo partido pode contribuir para dizer algumas coisas que têm faltado no discurso à esquerda, pode contribuir para clarificar o ambiente e até ajudar a criar convergências à esquerda. Se esse novo partido tiver mecanismos de democracia interna que têm faltado noutros partidos, pode contribuir para um entendimento à esquerda. Se trouxer gente que não está na política e está frustrada porque ela não avança, está a contribuir para puxar a governação para a esquerda que é, do meu ponto de vista, o essencial desta gente que está no meio da esquerda. Uma esquerda em que está cada um a puxar por uma ponta, um bocadinho como a alavanca do Arquimedes, não sai do sítio. Como dizia Arquimedes: "dêem-me um ponto de apoio e eu levanto o mundo". E isso já temos: é uma maioria sociológica de esquerda.

Esse ponto de apoio pode ser o LIVRE? Um apoio para o PS nas próximas legislativas?
Nós queremos fazer parte da família da esquerda sem ser contra ninguém. Sem acrescentar sectarismos aos sectarismos. Mas achamos que temos uma proposta e uma identidade ideológica, mesmo com poucos dias de gestação, e que nos distingue do que existe. Um dos marcos é justamente discutir a convergência à esquerda e trabalhar para construirmos uma frente progressista. O ponto de apoio tem que ser o ponto de encontro de toda a gente.

Isso ninguém conseguiu fazer até agora…
Esse é que é o risco. Nós normalizámos isso e o país está condenado. Em 2015, se ninguém consegue fazer isto à esquerda, o governo vai ser PS/PSD e alterar a Constituição. Não se diga que isto não foi avisado a tempo. E depois vamos todos chorar e fazer imensos comícios zangados com isto. E o que nunca se conseguiu fazer até determinado momento, depois faz-se. E nunca se conseguiu fazer em Portugal, mas faz-se em todo o lado do mundo. Os nossos sintomas de atraso económico e de fragilidade social também estão em alguns bloqueios políticos.

As divisões dentro do Bloco parecem ter ocorrido por causa da resistência a consensos ao centro-esquerda...
Não quero comentar divisões do BE, até porque não as conheço tão bem como as pessoas poderiam imaginar. Nunca fui militante do Bloco, fui um independente que aceitou fazer parte de uma lista num lugar que, à partida, era não elegível. Votei no BE durante muitos anos, tentei convencer muita gente a votar no Bloco, enquanto colunista e independente disse sempre em quem é que ia votar. E fi-lo porque o BE quando apareceu trazia a esperança de poder ajudar a desbloquear a esquerda. Se o BE tivesse cumprido essa promessa, provavelmente não haveria necessidade de um partido novo. E eu a certa altura teria tido a confiança e a vontade de me fazer militante do BE.

Não é contraditório esperar que esse consenso possa agora juntar o LIVRE, PS e BE?
À esquerda pode-se ter mais preferência por uma convergência ou por outra: PS e PCP, PS e BE ou BE e PCP ou os três para quem se sentem com sorte para ganhar na lotaria. Mas só o facto de se passar a fazer convergência já é um salto quântico na política portuguesa. Evidentemente que no caso de uma convergência de Governo, ela precisa de contar com o PS. Se nós tivermos uma situação em que o PS está no governo com a direita, eu sou a favor de uma convergência entre o BE e o PCP. Seria mais defensivo do que programático, mas precisaríamos disso. O que não acho possível é que neste país tenha acontecido um filme de terror para qualquer pessoa de esquerda – FMI, Passos Coelho e Paulo Portas, um programa de governo assumidamente neoliberal, uma austeridade selvagem – e nunca ninguém acordou. Não acordaram nas autárquicas. Se não tivéssemos avançado com a ideia do LIVRE, não se estaria neste momento a falar de convergência para as europeias.

Quando falou na criação de um partido, disse que se dois dos três partidos à esquerda convergissem para as europeias, não avançava.
Mantenho. O processo do LIVRE tem a ver com as pessoas que lá estão mas, para mim, se houver entendimento para uma lista conjunta às europeias e se eu puder ajudar, mesmo se a melhor forma for não atrapalhando, não estando no processo… Já me ofereceram lugares em listas, não só pelo PS.

Teve um convite do PS?
Houve mais do que um contacto informal e houve aquela declaração pública do Francisco Assis. Não houve um oferecimento formal.

Já houve contactos oficiais?
Saíram na imprensa e não foram negados pelo PS, há muitos meses… É demasiado tarde para negar. Há uma espécie de impulso de me convidar, de me sugerir o lugar tal nas listas para que deixe de dizer o que estou a dizer, que deixe de fazer o que estou a fazer. Apelo a que não me ofereçam lugares, isso não me move. Ofereçam a todos os cidadãos à esquerda abertura e possibilidade de convergência.

Está a dizer que o BE já lhe ofereceu lugar?
Não, que isso fique claro.

A quem é que está a incomodar mais para lhe oferecerem um lugar?
O que o LIVRE tem gerado é muito entusiasmo em pessoas que não estão na actividade política e nas que estão com algum incómodo. Esse incómodo deve servir de encorajamento para fazermos melhor. Se para ajudar a esse processo for importante eu dizer que não sou candidato, fá-lo-ei com o maior dos prazeres.

Não é estranho que a criação de um partido dependa da proximidade de um acto eleitoral e da convergência de outros partidos?
Este não é um partido para as Europeias. As europeias são importantes para ajudar a falar das coisas que importam em Portugal. Mas as autárquicas já eram importantes, já deveríamos ter tido este tipo de acção. Simplesmente a maior parte das pessoas que estão nestas coisas, a mim me incluo, fizeram petições, manifestos, manifestações, congressos, na esperança que os partidos que já estavam em cena evoluíssem. As europeias são importantes porque temos só 21 deputados e precisamos de ter os melhores possíveis.

Nas próximas legislativas, caso saia vencedor, acha que o PS terá mais tendência para negociar à direita ou à esquerda?
As condições que se têm cristalizado na democracia portuguesa fazem com que só possamos ter governos ancorados à direita, inclusive de bloco central. Ou no máximo de centro. Não sendo a novidade principal do LIVRE, é importante que surja um partido que, ao invés de fazer da convergência tabu, faça da convergência um objectivo.

Então será mais um teste ao PS do que ao LIVRE?
É um teste a nós todos. Essa alternativa de governação não se faz só a falar acerca dela. Faz-se discutindo conteúdos programáticos, criando grupos de trabalho ou faz-se, como noutros países, depois de um resultado eleitoral. As pessoas sentam-se à mesa sem ser sobre a pressão da política de curto prazo…

Já disse que se sente bem ideologicamente com a ala mais à esquerda do PS e com os mais moderados do Bloco.
É verdade, muita gente da ala moderada do Bloco, infelizmente, tem sido empurrada para fora. Alguns saíram, outros deixaram de ter actividade política permanente.

Está a falar de quem?
Saíram José Sá Fernandes, Daniel Oliveira, Joana Amaral Dias, a Ana Drago agora está com menos actividade.

Ela também foi empurrada?
Não, mas sei qual era a tendência de que toda esta gente fazia parte, a Política XXI. É claro que no tempo do Miguel Portas as coisas eram diferentes. A questão é que nem a ala esquerda do PS nem a ala moderada do BE são determinantes. No meio da esquerda sempre tivemos um problema.

Esse é que é o meio da esquerda?
Inclui esta gente. Como até agora não temos tido sujeito político no meio da esquerda, é fácil aos partidos pescarem à linha. Em nenhum dos três partidos – PS, PCP e BE – esta área é determinante, mas tenho a impressão que no eleitorado é. A ala esquerda no PS protesta mas não determina e no Bloco é a mesma coisa com a área moderada.

O que é que vos distingue?
Primeiro, a liberdade de uma nova era com todos os temas que têm sido pouco tratados: privacidade, protecção de dados, partilha dos conhecimentos na rede. Um discurso de liberdade que é aquilo que os antigos definiam como ser livre: é não estar dependente de um terceiro mesmo que se esteja confortável. Esta é uma lição em termos políticos. Se estivermos dependentes de um convite para uma lista, podemos estar confortáveis, mas não estamos livres. O segundo pilar é o da esquerda, das questões sociais, da igualdade e da justiça social. E aí convergimos e não divergimos dos partidos à esquerda. Mas no terceiro pilar da democracia em Portugal e europeia há grandes divergências, por exemplo em relação às primárias abertas. Quem tem o privilégio de fazer e desfazer deputados com convites ou ostracizações não quer perder esse privilégio quase feudal. Há resistência em envolver os cidadãos em processos deliberativos. O último pilar é a ecologia que não tem tido um espaço autónomo em Portugal.

Faz sentido pensar numa revisão constitucional?
Só se deve rever a Constituição quando há um largo consenso social. Se for para continuar a grande caminhada dos Direitos Humanos vale a pena. Mas no contexto político em que estamos, em que até os direitos de segunda geração estão sob ataque, toda a abertura para mudar vai ser para consolidar o subdesenvolvimento social dos últimos anos. Há um dia muito importante para o LIVRE, que será quando Portugal tiver mais dias de liberdade do que de Ditadura.

Que dia é esse?
24 de Março de 2022. Nesse dia, se ainda existirmos, faremos um grande congresso de reflexão acerca do país que temos, do que fizemos e até colocaremos em causa se ainda fazemos sentido ou não.

Que importância dá à última conferência de Mário Soares?
É um encontro muito importante. O doutor Mário Soares, felizmente, tem tentado no máximo das suas forças criar estes diálogos. Perguntou-me se aceitava ser um dos promotores e disse logo que sim. Vim de propósito para o encontro. A cada novo encontro que há a sala está mais cheia e as pessoas perguntam-se "sim, mas e agora?"

O LIVRE é a resposta?
A resposta tem de ser dada por mais gente. O que as pessoas querem ouvir num destes comícios na Aula Magna é alguém de um dos partidos dizer "nós propomos que nos sentemos à mesa, partidos e cidadãos, para começar a pensar num programa alternativo de governo". Prevejo que nesse dia a sala vem abaixo de contentamento.

Como é que isso se concretiza? António José Seguro ir a esses encontros e sentar-se à mesa com João Semedo, Catarina Martins, Rui Tavares?
No Congresso Democrático das Alternativas conseguimos fazer uma declaração de 17 páginas bastante detalhada acerca dos desafios que Portugal enfrenta. E assinou gente do PS ao MRPP.

Mas ficou por aí. No sistema político, qual a vantagem das primárias abertas, que defende?
As primárias abertas já foram alvo de um artigo do Francisco Louçã que distorceu completamente a ideia, dizendo que alguém queria impor uma lei aos partidos. A grande vantagem é que elas são voluntárias por parte dos partidos. A intenção é dar às pessoas o direito de participação na feitura de listas. E, assim, superar a política por convite que deixa os deputados presos aos tacticismos das direcções partidárias. Não é uma proposta muito diferente das listas abertas que o Bloco defendia. Se o LIVRE conseguir participar nas eleições europeias, sozinho ou em convergência, será sempre com primárias abertas.