De um tempo ausente

O Moinho e a Cruz é um filme sobre um quadro: Subida ao Calvário (1564), do pintor flamengo Pieter Brueghel. Dito deste modo, parece que estamos apenas a falar de uma lição de história da arte que mais sentido faria no pequeno écrã ou no museu. Mas há mais a acontecer neste trabalho que exigiu três anos ao artista, escritor e cineasta polaco-americano Lech Majewski, inspirado no livro do crítico de arte Michael Francis Gibson, e revelando ser mais do que apenas um filme sobre um quadro. O Moinho e a Cruz é uma intrigante e sedutora meditação sobre o poder da arte para transcender o quotidiano que a rodeia e lhe dá origem, construída com uma tal atenção pictorial ao detalhe que se torna, ela própria, numa obra de arte autónoma. Sem evitar didactismos pontuais, mas sabendo que há aqui muito mais em jogo do que apenas olhar para um quadro com uma atenção diferente. No limite, é aquilo que Peter Greenaway chegou perto de fazer no seu contudo excelente A Ronda da Noite (2007) cruzado com a utilização da técnica que Rohmer experimentou em A Inglesa e o Duque (2001): conjugar discretamente arte digital e imagem real para, evitando a aridez da lição académica, explicar como a Arte e a História são duas facetas de uma mesma moeda. Parece seco? Mas não é: usando uma estrutura de diálogos quase socráticos entre duas personagens (Brueghel e o seu patrono Jonghelinck, interpretados por Rutger Hauer e Michael York), Majewski convida o espectador a entrar dentro do quadro para ver para lá da superfície, para dentro da imagem. Fá-lo com uma generosidade de espírito e uma abertura demasiadas vezes ausentes do cinema entendido como de arte ou de autor; recusa-se a tratar o espectador quer como criança deslumbrada sem capacidade de compreensão quer como aspirante a intelectual que se deve esforçar para apreender. Majewski cria um quebra-cabeças meticulosa e quase imperceptivelmente montado que nos recorda como, por trás de qualquer obra de arte, existe uma realidade transfigurada e transcendida pelo olhar do artista. Ao fazê-lo, recorda-nos como o cinema se ancora no acto de, mais do que ver, observar. Com calma, com tempo, com atenção. E isso, nestes tempos em que o consumo de imagens se faz a cem à hora sem tempo para a digestão, é talvez a mais radical das fés.

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