Entre os pescadores que chamavam "mar" ao Tejo
Abandonadas nos anos 1970, as aldeias dos pescadores do Tejo estão agora a ganhar vida. Um projecto para candidatar a cultura avieira a património nacional e da UNESCO está em curso desde 2005. Em 2013, lugares como o Patacão serão mais do que ruínas com uma bela vista para o rio - e muitas histórias.
A vida no Patacão fazia-se quase sempre no rio. Homem e mulher, lado a lado, ele a lançar as redes, ela a remar e a vender o peixe que apanhavam nas ruas de Alpiarça, de porta em porta, quando a manhã no mercado não deixava a cesta vazia. Em casa, se a tinham, havia muito pouco de tudo, menos filhos. A vida que levavam nas margens do Tejo era, apesar de tudo, mais fácil do que a que deixavam nos areais de Vieira de Leiria, de Ílhavo ou da Murtosa, onde o mar não poupa quase nada nem ninguém.
Há registos das migrações destes pescadores que ficaram conhecidos como avieiros desde 1833, embora as vagas mais intensas sejam as das décadas de 1860 e 1950. Alves Redol, que lhes dedicou um dos seus mais emocionados romances (Avieiros, hoje disponível na Caminho), chamava-lhes "ciganos do rio". Para o escrever, o neo-realista viveu entre os pescadores na década de 1930, ficou a conhecer de perto as suas rotinas, as artes do rio e do namoro nestas comunidades fechadas, muito pobres e profundamente religiosas, embora nunca tivessem padre a que pudessem chamar seu. "Tinham vindo da Praia da Vieira e faziam vida à parte", escreveu Redol, depois de passar uma temporada em casa de Manuel Lobo na aldeia da Palhota, no Cartaxo, hoje ainda habitada. "Nómadas do rio, como os ciganos na terra", os avieiros impressionaram o escritor, que contou a sua história a partir dos bailaricos do Celeiro, da fuga de Olinda da Barca para os braços de Tóino da Vala e das peripécias à volta do Zé Caramilo. "Se confessar que este romance me aterrorizou, depois de me deslumbrar, digo a verdade inteira", admite no prefácio de Avieiros, em 1967.
"Mais do que uma obra de ficção, Avieiros é uma crónica da vida desta gente, sempre muito dura, sofrida", diz Ricardo Hipólito, engenheiro agrónomo com alma de antropólogo, que há anos estuda estas comunidades piscatórias a propósito de uma monografia que ainda não tem data de saída. Quer ouvir "os mais velhos" e a partir deles reconstituir uma actividade de que hoje já pouco resta. Hipólito faz parte de um grupo de voluntários que, uma vez por mês, se dedica à limpeza do Patacão, a cinco quilómetros de Alpiarça, que deverá vir a ser recuperada, assim como outra aldeia avieira abandonada: a de Faias e Cucos (Almeirim). "Isto é gente de trabalho, muitos netos e bisnetos dos pescadores do rio", diz João Serrano, coordenador do projecto de candidatura da cultura avieira a património imaterial nacional e da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), em preparação desde 2005. "Vamos buscá-los às escolas, aos ranchos, às colectividades."
Muitas vezes o que leva ali os voluntários são os laços familiares. E depois uns vêm atrás dos outros. Foi assim com Nuno Branha, 29 anos, neto de Iria Fragata Grilo, hoje com 84, pescadora e última habitante da aldeia do Tôco, ali bem perto, hoje abandonada. Nuno nunca fez vida do rio - o seu pai também não - mas também não quer virar as costas à história dos avós nem às suas memórias de infância, quando brincava "à rédea solta" com os primos nas margens do Tejo.
"Os meus avós fizeram questão de que os filhos tivessem outra vida, menos dura", diz à Pública, de vassoura na mão, enquanto limpa uma casa que não faz ideia a quem pertenceu. "Eu sou como o meu pai, que só pesca para fazer caldeirada para os amigos. Faço vida na agricultura. Já trabalhei numa fábrica e não volto para lá. Faz-me falta o cheiro da terra, da lama, das árvores que caem para o rio."
O Tejo é "mar"
Cá fora, redes de pesca, armadilhas, caixotes com garrafas, ancinhos enferrujados e até uma espingarda vão-se amontoando sobre o tapadão, um dique com mais de seis quilómetros de extensão que faz parte do sistema de contenção de águas do Tejo, num esforço tantas vezes inglório para proteger os animais e as plantações que cobrem a planície. O objectivo, explica João Serrano, é deixar as casas vazias, libertá-las da vegetação que as engole e recuperar os objectos que possam vir a ser musealizados, como a grande arca de folha que hoje está vazia mas que pode bem ter guardado um enxoval.
"Tínhamos muito pouco mas éramos muito alegres", diz Celestina Lopes Moreira, 74 anos e décadas de rio. Deixou de viver no Patacão há 30 anos mas passa por lá muitas vezes. Boa parte das suas memórias está presa àquela terra, àquelas casas de madeira assentes em estacas por causa das cheias (as estacas variam entre os 20 centímetros e os dois metros, explica Ricardo Hipólito, dependendo da topografia do terreno).
A casa que comprou com o marido, Manuel, cinco anos depois de se casarem, está destruída. O salgueiro que plantou no ano em que nasceu o filho mais velho, José, caiu para cima da barraca - é este o nome que dão às pequenas casas de madeira com 16 metros quadrados, dois quartos e uma sala que também serve de cozinha, parecidas com os palheiros da costa de Aveiro, de onde vinham os primeiros migrantes. A árvore com 50 anos tem as raízes à mostra e não tarda muito que o casal esteja de volta dela, de motosserra na mão para aproveitar a lenha. Ricardo Hipólito conhece-os bem e sabe que estes Lopes Moreira, como os avieiros em geral, aprenderam a não desperdiçar nada. "Não há cá sentimentalismos em relação à árvore que plantaram quando o Zé nasceu. Isto é gente pragmática." As palavras de Celestina, com as mãos enfiadas nos bolsos da bata e os olhos postos em Manuel, 89 anos, confirmam-no: "Não tenho pena de ver a árvore cair. Da casa até tenho alguma, mas hoje vivemos melhor. Passámos muito aqui, com as cheias do rio, sempre com o coração nas mãos quando as ondas cresciam e a água galgava tudo."
Manuel ainda vai ao rio, só para "fazer o gosto", e teve energia para, recentemente, construir uma bateira - nome genérico dos barcos que usam os avieiros, embora haja designações mais específicas, consoante o tamanho e a zona do rio onde se pesca (caçadeiras, saveiros, azinhagueiros) - no seu quintal em Alpiarça. A embarcação era o centro da vida destes pescadores que, muitas vezes, não se limitavam a viver do rio, mas no rio. Foi assim com os Lopes Moreira. "Fazia-se de tudo no barco", diz Celestina. "Até filhos..." Manuel olha para ela e sorri. Estão casados há 50 anos. "Entre nós não há cá segredos. É assim para quem trabalhou toda a vida no mar." Para eles, o Tejo sempre foi "o mar", explica Ricardo Hipólito. "É assim que lhe chamam. Nas águas de maré, em Salvaterra, a pesca do sável fazia-se com companhas, como no mar a sério."
Entre os avieiros, homem e mulher estão sempre juntos, dentro e fora do rio, o que não acontece com os pescadores da Nazaré, diz Hipólito, que fez dezenas de entrevistas a membros destas comunidades e aos seus descendentes. "Na Nazaré as mulheres ficam na areia da praia, vão à praça vender, aqui vão remar, formam com o marido uma equipa que dura a vida toda. E ainda tratam das finanças do casal e dos filhos."
Na casa dos pais de João Lobo, pescador de 52 anos que deixou a agricultura há 13 para regressar ao rio, o casal ainda pesca, apesar de já estar perto dos 80. "A minha mãe ainda vai ao rio com o meu pai. É um caso sério para entrar e para sair do barco. Mas eu não o quero lá sozinho... Pode variar", diz Lobo, homem da lampreia, que geralmente tem a seu lado o filho Tiago, de 25. "O mar está-lhes entranhado. Nunca fizeram outra coisa. E nunca se separaram. Não se conhecem um sem o outro."
A organização social destas comunidades é um dos aspectos que Ricardo Hipólito e outros investigadores que aceitaram participar no projecto de candidatura da cultura avieira a património imaterial estão a estudar. Preparar o dossier com que se vai defender este património significa, para João Serrano, professor do Instituto Politécnico de Santarém (IPS) - que coordena os trabalhos -, envolver dezenas de estudiosos e entidades que trabalham no terreno, desde as simples colectividades, como o clube desportivo Os Águias, de Alpiarça, às paróquias e às câmaras municipais.
Foi com o estudo da religião dos avieiros que o projecto começou, em 2005, dois anos antes de assinado o protocolo com o IPS. Entre 2007 e 2009, em regime de voluntariado, sublinha Serrano, começaram a diversificar-se as áreas de investigação. Hoje já há trabalhos concluídos, prontos para publicação, e mais de 40 em curso. "Para salvaguardar é preciso conhecer", diz Hipólito. A casa, as artes da pesca, os barcos, a gastronomia, a fala, o traje, as danças e o cancioneiro popular são outros dos temas abordados.
Com base na investigação, o projecto tem por objectivo, além da classificação deste património, a criação de uma nova rota turística apoiada na reabilitação de duas aldeias hoje abandonadas (Patacão e Faias e Cucos) em articulação com outras que ainda se mantêm em actividade: a da Póvoa de Santa Iria (Vila Franca de Xira), Porto da Palha (Azambuja), Palhota (Cartaxo), Escaroupim (Salvaterra de Magos) e Caneiras (Santarém). Recorrendo a fundos do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) desde 2009 - seis milhões de euros para investir na revitalização das aldeias até ao próximo ano -, o projecto, explica Serrano, passará pela reconversão destes assentamentos avieiros em pólos de atracção para o turismo de natureza.
"O Politécnico está a delinear uma estratégia de aproveitamento em articulação com outras entidades do consórcio. E esse projecto pode passar, por exemplo, pelo arrendamento das casas recuperadas. Ainda não está nada decidido", diz o coordenador, que espera lançar a candidatura a património nacional em Junho de 2013. O consórcio a que se refere inclui 40 instituições, entre autarquias, associações, universidades e 20 empresas privadas. A Universidade de Aveiro, por exemplo, está a estudar o ADN mitocondrial destas comunidades que, de tão fechadas, levavam muitas vezes a casamentos entre primos direitos, com os problemas de consanguinidade que daí advinham.
As doenças destes pescadores também estão a ser abordadas. "Estes homens e estas mulheres têm uma relação umbilical com o rio. Quando têm de passar a viver longe do Tejo surgem muitas vezes depressões, alcoolismo, ansiedade. E depois há o reumatismo de quem passou uma vida dentro de água, ao frio. Há relatos de famílias de 11 ou 12 pessoas que viviam no barco. As mães atavam os filhos às suas próprias roupas, durante a noite, para impedir que caíssem ao rio. São registos dramáticos. Hoje é-nos difícil imaginar como vivia esta gente." A bateira, barco com cerca de sete metros, funcionava como T3, diz Ricardo Hipólito, apontando para uma que ainda se encontra junto às casas do Patacão. "O barco tinha mastro, mas não tinha cabine alguma. O espaço era dividido em três: um para os arrumos da pesca, outro para cozinhar e outro ainda para dormir."
Até os golfinhos voltam
João Lobo nasceu em chão firme, em Salvaterra, mas com três dias já vivia no barco. "Ainda não tinha uma semana e tomava banho no Tejo", diz com o orgulho de quem já passou muito e hoje tem mais para dar aos filhos do que recebeu dos seus pais. "Vivi na bateira até aos 12, altura em que os meus pais compraram uma barraca na Palhota por cinco contos. Foi uma festa." Foi a ver o pai, que ainda hoje é o primeiro a aparelhar as redes quando começa a época da lampreia (entre Janeiro e Maio), que aprendeu a pescar. Filho e neto de avieiros, sabe que Redol viveu na aldeia do pai. Casou aos 18 anos com uma das filhas dos Mendes da Torrinha, como seria de esperar, e durante anos trabalhou na agricultura. O rio não dava porque estava muito poluído, explica. "O peixe abalava e o que se apanhava não dava para pagar as contas."
Hoje o cenário é diferente - é o campo que não garante o sustento. Ao Tejo, com as águas mais limpas, voltou a lampreia, o sável, a enguia, o barbo e a carpa (a boga ainda rareia). E voltou também João Lobo. Em 2009, o filho Tiago, que até aí trabalhou nas obras e como motorista, passou a ir com ele. "Se o pai é pescador, porque é que ele não há-de ser também? Qual é a vergonha?", pergunta o Lobo-pai, que lhe deu o barco. Hoje vivem essencialmente da lampreia. "A Vala de Alpiarça continua a ser o grande ponto de poluição do rio", diz Tiago. "O Tejo não é perigoso, mas às vezes volta, com a chuva e o frio... Há dias mais duros." O irmão mais velho está no Luxemburgo, mas também pescava.
Para os Lobo, a maior parte da pesca faz-se quando "a luz vira": de madrugada e ao anoitecer. Podem estar cinco ou seis horas seguidas no rio, parte do tempo nas frisas (margens) à espera de vez para fazer o lance (chegam a lançar 400 metros de rede). "O rio está dividido em quintais", explica Hipólito. "Tudo é feito segundo regras muito precisas para que os pescadores não se atrapalhem uns aos outros." São também eles que sabem cortar a vegetação junto ao Tejo, primeira linha de defesa em caso de cheias. É isso que João Lobo, o filho e os amigos estão a fazer junto ao Patacão. Mais tarde, sentado à grande mesa comprida com sopa da pedra d"O Forno e vinho da Adega Cooperativa de Alpiarça, há-de falar deste regresso ao rio. "O desemprego cá fora é muito e é por isso que miúdos como o Tiago têm um barco", diz, "mesmo que as namoradas não queiram saber do rio". Hoje os barcos têm motor e as condições são outras.
"O regresso ao rio não está ainda documentado", esclarece João Serrano. "É um fenómeno recente que resulta do desemprego elevado e do facto de as águas estarem menos poluídas. Até os golfinhos estão de volta ao Tejo, embora ainda não cheguem para disputar o peixe com os avieiros, como acontecia no início do século XX, quando os pescadores os matavam a tiro."
Manuel Lopes Moreira lembra-se de haver golfinhos no rio. É uma das suas memórias boas, a juntar às peripécias com o vinho e a Guarda Nacional Republicana (GNR). Entre as longas estacas das barracas palafitas do Patacão, é ainda possível encontrar pequenos lagares e cortes para os animais. Os proprietários, que lhes arrendavam o terreno a um valor simbólico que muitas vezes não chegavam a pagar, não gostavam que tivessem gado porque isso significava, tal como uma casa construída em alvenaria, que os pescadores estavam ali para ficar.
"Os grandes proprietários das margens do Tejo não queriam que estes assentamentos fossem permanentes e, por isso, só autorizavam construção em madeira", diz o agrónomo que está a escrever a monografia sobre os avieiros. "Os feitores andavam sempre em cima deles e muitas vezes mandavam lá a GNR para os assustar por causa do rabiscão." Hipólito explica: andar ao rabisco significa apanhar a uva ou a azeitona depois de a colheita ter sido feita pelo seu legítimo proprietário; o rabiscão acontecia sempre que os avieiros iam à vinha ou ao olival antes dos donos.
"Isto para ter vinho não é preciso ter uva", diz Manuel Lopes Moreira, sorrindo. Muitas vezes, quando o feitor mandava a guarda às aldeias avieiras, os homens enterravam as pipas de vinho, com uma caninha oca para deixar entrar o ar e não perturbar o processo de fermentação. Manuel também pisava uva e Celestina criava galinhas, enquanto tratava dos filhos. A sua casa, como as outras da aldeia, era pintada por dentro com cores garridas - verdes, rosas e azuis abertos, eléctricos - e as divisões não tinham porta, apenas cortinas de chita.
Iria Fragata Grilo, a avó de Nuno Branha, sente saudades da sua casa do Tôco. Quando os filhos e os netos a proibiram de ir ao rio, em 2003, sentiu muito, lembra o neto. "A minha avó ainda hoje fala em voltar a casa, só para passar os dias", diz. "Mas quando ela lá estava era uma preocupação. Fazia-se noite e ela na Vala, sozinha. Enquanto não apanhasse o que achava que devia apanhar, não voltava."
No Patacão, as casas construídas de costas para o rio - coisa estranha, já que era do Tejo que vinha o perigo - estão agora vazias. A desertificação das aldeias como esta, em que os pescadores estavam habituados a emprestar as barracas a jovens casais para a noite de núpcias, deu-se sobretudo no pós-25 de Abril, lembra hoje João Serrano, entre salgueiros, freixos e laranjeiras carregadas de garças-boieiras. "Às vezes fecho os olhos e imagino como seria isto cheio de vida, com a criação entre as casas, os miúdos a correr, descalços, as mulheres a cozinhar na rua." Esta vida não vai voltar às aldeias do Tejo. Mas virá outra.
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