Rui Zink, professor e escritor, 49 anos

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Rui Zink Daniel Rocha

Comecei a dar aulas no liceu em 1983 e na Faculdade em 1987. Tinha candura. Deixava tudo nas aulas. Às vezes encontro alunos que se lembram de performances que eu fazia: uma vez atirei os livros todos para o chão e comecei a dobrá-los e disse que os livros são para usar e riscar, devem ser respeitados, mas não endeusados.

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Comecei a dar aulas no liceu em 1983 e na Faculdade em 1987. Tinha candura. Deixava tudo nas aulas. Às vezes encontro alunos que se lembram de performances que eu fazia: uma vez atirei os livros todos para o chão e comecei a dobrá-los e disse que os livros são para usar e riscar, devem ser respeitados, mas não endeusados.

Hoje poupo-me, não me lembraria de fazer isto. Sou um professor muito mais convencional, o que não é bom nem mau. Já tenho o dobro da idade dos meus alunos. Quando comecei estava muito próximo. Tenho noção de que hoje há uma distância. Eles vêem-me noutro patamar.

Chateia-me, ao chegar aos 49, verificar que o PÚBLICO não fez a crítica ao meu livro Anibaleitor. Acho ofensivo. Tenho direito a ter essa crítica, mesmo que seja negativa. O livro é magnífico. E o PÚBLICO foi um dos poucos jornais que não falaram do livro. A minha reacção é uma marca da idade. Entristece-me reparar que tenho valor de mercado para ser entrevistado para tretas como esta ou ser reconhecido pelo taxista que me leva ao aeroporto e se lembra da Noite da Má Língua, na SIC, mas depois não fazem uma única crítica aos meus livros.

Devo estar dentro dos 10,3 por cento de humanos mais solidários com outros humanos. Passo a vida a ajudar quem nunca me ajudaria. E passo a vida a dar o meu trabalho a gente que depois não lhe atribui assim tanto valor. Há pouca gente que ofereça tanto o fruto do seu trabalho como a malta artista – e ainda nos chamam calões.

Chateia-me, também, os meus próprios problemas de saúde. Aos 49 anos, não ganharam importância simbólica, ganharam importância real. Já não consigo beber tanta cerveja quanto bebia. Aos 48 anos estive muito doente, com dores insuportáveis, tive a antevisão da minha velhice e só me vinha à cabeça um verso: “Chove na minha casa”. Sei que cada vez vai chover mais.

Não devo ficar surpreendido com isso. É surpreendente e trágico um rapaz de 13 anos saber que tem leucemia, mas não um homem de 50 anos. Sinto a saudável arrogância de achar que já tenho uma obra feita e isso põe-me mais sereno. Mas fico sempre na dúvida: será que a velha mágica vai funcionar, será que vou escrever outra e outra vez?

Uma das coisas mais sérias nesta idade é que os amigos começam a morrer e a ter problemas de saúde. Tenho uma mãe com 83 anos, tenho familiares doentes, amigos muito próximos que desapareceram. É uma idade que me comprime um pouco. Ir mais a funerais do que a casamentos mata-nos um bocadinho.

O efeito secundário disto é uma depressão branca. Acho que a maior parte das pessoas da minha idade estão nessa fase. Parece que esse termo existe, mas eu cunhei-o nesta acepção: aquela depressão que não se sabe que se tem, quando é para pôr uma carta no correio e passados três meses ainda não seguiu, quando temos um telefonema simples para fazer e adiamos, quando nos custa acordar de manhã e organizar o dia. As pessoas da minha idade estão propensas a isso. A partir dos 40 é preciso uma vigilância diária para evitar engordar e evitar ficar deprimido. Hoje estou atento. Sei que estou periclitante. Sei que não sou imortal. Eis uma coisa que não sabemos aos 20 anos.

Não sinto que pertença a uma geração, não mais do que a um clube de futebol. Mas tenho um património em comum com os meus inimigos da minha geração. Olhamos uns para os outros e sabemos que temos em comum o património da contingência. O termos vivido em circunstâncias que outros não viveram. Já nenhum de nós acha que é super-herói, já não somos aquele jovem pugilista que só tem dez vitórias e zero derrotas. Já fomos ao chão. Somos mais aceitadores uns dos outros, não levamos as coisas tão a sério.

Aliás, por falar em pertença a uma geração, conto uma história: há uns tempos fui ao casamento de um ex-aluno e às duas da manhã foi engraçado ver que aquela gente, uns 15 anos mais nova do que, de repente começou a dançar ao som da música do Dartacão. Há a geração Dartacão. A minha é mais a geração Daktari, uma série americana do fim dos anos 60.

A minha infância foi passada nos anos 70, no bairro da Pena, o mesmo onde nasceu a Amália. Lembro-me de ver as peixeiras descalças a subir a calçada. Lembro-me de só uma pessoa ter carro lá no bairro. Brincava na rua, os meus filhos não brincam na rua. Os meus filhos vão lembrar-se daqui a uns anos da vida de condomínio, eu lembro-me da vida de rua. Ter vivido nesse bairro foi mais importante do que assistir ao 25 de Abril. Claro que o 25 de Abril foi importante, os anos 80 foram importantes, hoje choro quando oiço as Doce. É isso: chamaria, antes, à minha geração a “geração bem bom”. Não me parece que tenhamos tido azar. Todas as gerações são abençoadas, se tiverem noção disso. Agora temos a geração dos recibos verdes. Mas na casa deles ainda não chove.

Depoimento recolhido por Bruno Horta