1975
Um banqueiro preso depois de descoberta de uma megafraude. Uma crise económica profunda. Um país com um défice externo recorde. O desemprego a subir. Nacionalizações. Uma importante empresa tecnológica que fecha. Parece-lhe familiar? Bem-vindo ao Portugal de 1975. Por comparação, hoje, não será só a economia, mas também
a esperança que se encontra em queda. Por Clara Viana e Paulo Ferreira
a O Tejo parece estar ali à distância de um braço, há um jardim com relva e palmeiras entre prédios novos, cafés e esplanadas nos andares térreos. Ainda não há muito tempo havia fábricas em Lisboa e arredores, hoje estão lá novas urbanizações. Adélia Garcia assinala uma estrutura envidraçada que desponta na paisagem. Lá dentro está um velho forno de 12 metros. Há um museu, mas aquele forno foi realmente o que sobrou da Fábrica de Loiça de Sacavém, que chegou a ser tida como uma das melhores do ramo na Europa.À semelhança da maioria dos que residiam naquela localidade do concelho de Loures, o pai e a mãe de Adélia trabalharam lá. Ela não, mas as três fábricas por onde passou também já fecharam portas. Da primeira vez, tinha o 25 de Abril acontecido apenas há dois meses. Entre a festa e o espanto da liberdade, o primeiro grande despedimento pós-25 chegou por telex. Adélia tinha 17 anos.
Do outro lado do Tejo, em Almada, Tim andava pelos 14 e os Xutos & Pontapés, ou mesmo a música como alternativa profissional, nem um lampejo eram sequer ainda. Com 29 anos, Lídia Jorge, que era professora de Português, e ainda não se tornara escritora, estava mergulhada na enorme confusão que eram os liceus então.
Nicolau Breyner, então com 35 anos, tinha um chapéu de coco e era o "Senhor Feliz" na RTP. Aos 36 anos, Carlos do Carmo continuava a cantar por volta da meia-noite, na casa de fados do Bairro Alto de que era proprietário com a mãe, Lucília.
Mário Murteira, com 41 anos, tinha regressado ao Governo para assumir a pasta do Planeamento e Coordenação Económica, depois de ter ocupado o cargo de ministro dos Assuntos Sociais no primeiro Governo provisório. José da Silva Lopes, que tinha 43 anos, deixara a pasta das Finanças e era governador do Banco de Portugal. E José Carvalho Ferreira abandonava, aos 28 anos, o exílio em França a caminho de Portugal e de uma futura carreira universitária.
A pedido do P2, vão ser eles o nosso passaporte para o passado. Destino: o pós-revolução e 1975, o ano que a crise actual trouxe de novo às primeiras páginas porque, pela primeira vez em 34 anos, vamos ter uma recessão económica da mesma amplitude.
"Estou muito mais preocupado agora do que estava na altura. Aqueles problemas eram conjunturais e hoje estamos com problemas estruturais. Na altura tínhamos instrumentos de política económica, como a taxa de câmbio e taxa de juro [que deixámos de ter de forma autónoma com a adesão ao euro], por isso é que tínhamos uma recessão e depois recuperávamos logo. Tínhamos um défice da balança de pagamentos mas introduzíamos um programa e corrigíamos", diz Silva Lopes, que prevê que "desta vez vamos ultrapassar a taxa de desemprego de 9 por cento que tivemos na altura". A crise de 2009 assume um carácter ainda mais severo quando recuamos ainda mais. "Nunca tivemos uma crise tão longa como esta. Desde 1920 que nunca tivemos um período de oito anos com tão pouco crescimento como agora. E já passámos por alturas complicadas. O crescimento até 1950 era fraco. Só começou a ser bom a partir do fim da II Guerra."
Apesar das enormes diferenças que separam o funcionamento da economia então e agora, é impossível não reparar na semelhança de registos estatísticos.
Nesse ano, como agora, a queda da produção do país regista níveis raros, próprios de tempos únicos, a rondar os quatro por cento. O défice externo também foi elevado mas não atingiu sequer os níveis actuais. E o desemprego rondava os nove por cento.
Em 1975, "a recessão portuguesa foi mais profunda do que a dos outros países", mas Silva Lopes não deixa de ficar "pasmado" porque, "dado o estado de revolução em que estávamos e a perda das colónias", a diferença foi até muito pequena. Este foi o primeiro milagre. O outro: "A recuperação foi muito rápida. Considero que o período mais milagroso da economia portuguesa foi em 1976 e 1977. Reagimos bem, com boas medidas tomadas pelo Governo. A maneira como recebemos os retornados e tudo isso foram verdadeiros milagres. E em 1977 a economia portuguesa estava com problemas na balança de pagamentos, mas já ia por aí acima."
Desemprego, marisco e segurança
Em Março passado, o número de inscritos nos centros de emprego estava acima dos 480 mil. Em 1975 rondaria os 250 mil. Entre os desempregados de 75, figuravam ainda muitos dos trabalhadores da Applied Magnetics, uma multinacional norte-americana que em Sacavém, mais concretamente no Prior Velho, tinha produzido peças para computadores e outro material electrónico e que inaugurou por cá, antes de ser moda, o tempo das deslocalizações.
"Já não podiam explorar como queriam", comenta Adélia, que trabalhou ali quase dois anos. Turnos de sete horas seguidas, por vezes dois de uma assentada, a soldar fios eléctricos em pequenas cápsulas de plástico, tudo tão pequeno que obrigava ao uso permanente de microscópios, alinhados em grandes bancadas brancas e Adélia e outras dezenas de mulheres agarradas a eles. "Tínhamos sempre o encarregado atrás, nem a cabeça podíamos levantar."
Quando o 25 de Abril chegou, mais de metade da população empregada em Portugal ganhava, por mês, entre 1500 e 3500 escudos (7,5 a 17,5 euros). Com a revolução ainda na rua, anúncios nos jornais pediam paquetes, com "idade entre 14 e 17 anos" e "escolaridade obrigatória". "Vencimento inicial de 1495 escudos (cerca de 7,5 euros)" por mês. No Estado, por exemplo, aumentava-se um director da Direcção-Geral de Fiscalização Económica para 17.200 escudos (86 euros) e um adjunto técnico de 2.ª classe do mesmo departamento para um pouco menos de metade.
Na Applied Magnetics, o pagamento médio andava pelos dois mil escudos. Não por muito mais tempo. Em Maio de 1974, era fixado o primeiro Salário Mínimo Nacional: 3300 escudos, aumentado um ano depois para quatro mil.
Mário Murteira confirma que essa foi uma das prioridades do primeiro Governo. "A minha preocupação era social: criar o salário mínimo e condições de negociação entre sindicatos e empresas."
O impacto da medida não demorou. Carlos do Carmo lembra uma das imagens da época, consequência da melhoria de condições de vida que chegou pela mão do Salário Mínimo Nacional, recorrentemente evocada à esquerda e à direita também como sinónimo de uma mudança de paradigma: operários nas esplanadas a comer marisco.
Em contrapartida, muitas casas de fado e os restaurantes mais caros encontravam-se vazios, já que uma parte substancial da sua clientela habitual tinha fugido de Portugal. Carlos do Carmo também perdeu parte dos clientes mais ricos, mas a sua casa, o Faia, continuou a encher-se. "Sabiam que eu estava com o 25 de Abril." Era uma das novas fronteiras. Consumo mínimo 150 escudos e filas à porta, com uma nova clientela, que "começou então a ter poder aquisitivo" e que se aventurava pela primeira vez em estabelecimentos como este.
"Desenvolveram-se muito os consumos de tipo social. Passámos a ter segurança social numa escala que não tínhamos. E saúde, e educação", descreve Silva Lopes. "A redução da taxa de mortalidade infantil é das coisas mais brilhantes que temos."
Sem dúvida que se vive hoje melhor. O responsável pelas Finanças do país na altura recorre a alguns números para ilustrar: "Em 1973 gastávamos 28 por cento do ordenado com alimentação. Agora são 16 por cento e comemos muito melhor. As coisas são mais baratas em termos proporcionais, o rendimento é maior. Até comemos mais do que devíamos..."
E provando que não há fome que não dê em fartura, também há exageros. Tínhamos 100 automóveis por 1000 habitantes e agora temos 500. "É inconcebível que, juntamente com a Itália, Portugal seja o país que tem mais carros em termos proporcionais. Temos alguma saloiice, somos um país que não usa os transportes colectivos. Quando estive no BERD [Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento], verifiquei que em Londres os directores vão todos de metro. Aqui não, não há nenhum contínuo que não vá de carro."
Lídia Jorge confirma que as condições do país eram muito piores do que são hoje, mas sublinha: "O espírito é que era diametralmente oposto. As pessoas tinham desejo de muito menos coisas. Recebia-se pouco, mas havia a ideia de que finalmente tínhamos alguma coisa. O mito do Estado-providência estava pela primeira vez a ser vivido no quotidiano. Tinha-se uma ideia de segurança, de que dali para o futuro iam existir pensões, respeito pelo direito das pessoas, emprego. Uma ideia de à-vontade, enquanto hoje é exactamente o oposto."
Um telex a fechar uma fábrica
Portugal chegou tarde a este sentimento de confiança, que então era já vivido por muitos europeus e norte-americanos. Ainda não se sabia, mas chegámos à democracia no final de um ciclo, frisa José Maria Ferreira, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão e investigador do Socius. "Os 30 gloriosos anos do capitalismo", que tinham começado em 1945, no pós-guerra, estavam a chegar ao fim, explica, e com eles o "apogeu de confiança" que fora propiciado por este ciclo de "industrialização e urbanização das sociedades", baseado em adquiridos como o pleno emprego, o salário, férias pagas.
"Fazer Portugal entrar no seu tempo" - é assim que Mário Murteira define a prioridade do primeiro Governo após o 25 de Abril, em que participou. "O isolamento social e cultural era muito grande na altura."
Em 1974, na multinacional norte-americana, estava-se em greve pela bateria de direitos que funcionava como norma no Ocidente: 40 horas semanais, aumento dos dias de férias pagas, complemento da baixa por inteiro. E também contra o despedimento dos 116 operários que trabalhavam na "linha de memórias", o sector que era apresentado pela administração como o "ramo doente". Numa carta dirigida aos trabalhadores, o director-geral norte-americano, Cecil Fraser, que abandonou o país pouco depois, advertia que a consequência deste pacote "será o encerramento da empresa dentro de seis meses ou menos".
Foi menos. A 23 de Julho de 1974, chegou um telex vindo de Londres, no qual Fraser comunica aos trabalhadores a dissolução da empresa. É um nome e um momento que Francisco Lopes nunca mais esqueceu. Actualmente membro da Comissão Política do PCP, tinha na altura 18 anos e aliava os estudos no Instituto Industrial com o trabalho na Applied. "Usados e deitados fora, como peças de engrenagem". O poema entrou-lhe na pele nesse dia.
Um banqueiro preso e os contribuintes
que paguem a conta
Patrões que fecham fábricas pela calada mas também banqueiros presos por suspeita de fraude. Agora como então.O Banco Intercontinental Português, o BIP de Jorge de Brito, "caiu" na secretária de Silva Lopes em 1974, quando este era ministro das Finanças do II Governo Constitucional. "Agora falamos destas coisas, mas comparado com o que o Brito fazia...". "Estas coisas" são, como se entende, os casos BPN e BPP que nos últimos meses estão nas páginas dos jornais.
"O Brito utilizava os depósitos para os seus negócios pessoais. Tudo quanto ali se punha era para os seus negócios pessoais. Não emprestava apenas a si próprio. Emprestava também ao jardineiro, que era para ele, claro. Ele comprava de tudo: terrenos, palácios, arte... tudo. Depois, nas compensações do Banco de Portugal [o acerto dos cheques e transferências passados pelos clientes e depositados noutros bancos], o BIP estava sempre a descoberto. E o BdP aparecia-me lá quase todos os dias a dizer 'mais um descoberto do BIP'. O BdP teve que adiantar nessa altura 10 milhões de contos, que agora corresponde a mais de 100 milhões [500 milhões de euros]."
Também aqui houve uma intervenção do Estado. "Um dia, já noite, fui chamado ao gabinete do primeiro-ministro juntamente com o dr. [Salgado] Zenha (ministro da Justiça) e com o dr. Rui Vilar (ministro da Economia). Fomos lá os três e ouvimos: 'Eu quero-vos dizer que estamos a prender o Brito e o Agostinho da Silva, da Torralta'. Eles foram presos pelo Copcon. Nem sei bem se quando o Vasco Gonçalves falou connosco eles já estavam presos ou estavam a ser presos naquela altura. Isto foi por aí em Setembro de 1974", conta Silva Lopes.
Depois foi nomeada uma administração do Estado para o BIP. "Recordo-me que tive um trabalhão enorme a convencer o dr. Medina Carreira a ser um deles. Ele lá aceitou. O Banco de Portugal, como era credor do BIP, ficou com as propriedades - os quadros não, já não estava cá nada, já tinham ido para Espanha."
O caso não terminou aqui. "Eu saí do Governo e fui para governador do Banco de Portugal. Por volta de 1979 o Brito - que entretanto tinha sido solto - desenvolveu um processo para reaver os seus bens. E conseguiu, ainda hoje estou para saber como, um decreto-lei no tempo de Mota Pinto em que se dizia que ele reavia os bens se ninguém se opusesse. O BdP opôs-se, eu fui a tribunal e o juiz não deu provimento a esse caso."
Uma mão pesada que, no entanto, não durou muito tempo. "Eu saí do BdP em 1980 e passados uns tempos, já no governo da AD, ele já conseguiu reaver as coisas, não sei bem em que condições. Pessoalmente, considero que o Brito foi um dos indivíduos mais fraudulentos do país. O que se está a passar agora não é tão mau, apesar de ser grave. Mas o pobre do Alves dos Reis, ao pé do Brito... e toda a gente sabe o nome do Alves dos Reis." O BIP acabou por ser incorporado no Sotto Mayor, um banco do Estado que pagou as contas. Qualquer semelhança com o caso BPN da actualidade não é, de facto, mera coincidência.
A Constituição e o socialismo já ali
"Aos srs. deputados, eleitos como representantes do povo português, exigimos que na Constituição seja assegurado o direito ao trabalho como um direito que não pode ser negado a nenhum trabalhador." Em Julho de 1975, um ano depois de terem ficado no desemprego, os trabalhadores da Applied Magnetics são ouvidos pela recém-constituída Assembleia Constituinte. O direito ao trabalho será uma das muitas novidades consagradas na nova Constituição da República portuguesa, aprovada em 1976 pela quase totalidade dos deputados eleitos no primeiro sufrágio livre. O recorde continua por bater. Em Abril de 1975 votaram 91,7 por cento dos inscritos. E, como é regra, as urnas falaram de modo diferente do da rua. Com 37,9 por cento e 26,4 por cento, respectivamente, o PS e o então PPD foram os partidos mais votados. À distância, com 12,5 por cento, seguia-se o PCP.
Apesar dos resultados, Álvaro Cunhal insistia, em Maio: "Será preciso viver bem pouco para não ver o socialismo em Portugal."
No 1.º de Maio de 1974, Mário Soares e Álvaro Cunhal estão lado a lado, uma breve emoção entre tempestades. "O primeiro Governo provisório [em funções até Julho de 1974] era de uma candura, de uma ingenuidade, de uma esperança... Era a utopia, era uma coisa fantástica. Penso que até o Álvaro Cunhal e o Mário Soares, naquela altura, pensavam que ia ser sempre a andar. O caminho estava aberto, haveria uns problemas pelo caminho, mas o essencial estava traçado", recorda Mário Murteira sobre esse período onde todos eles tinham assento no primeiro executivo pós-revolução, liderado por Adelino da Palma Carlos.
Um ano depois, a ruptura estava consolidada. No Movimento das Forças Armadas (MFA) aprofundam-se também as divisões entre os militares mais moderados e os mais radicais, e nestes entre os que estavam próximos do PC e os que alinhavam pela extrema-esquerda.
Por essa altura, Silva Lopes estava já no Banco de Portugal. O gabinete do governador era, e lá continua, na Rua do Comércio, na Baixa pombalina de Lisboa. Da curta viagem a pé que fazia com frequência para o refeitório do banco, no Rossio, veio uma enorme preocupação. "Assustei-me em 1975. Foi o único período em que me assustei. Eu ia a pé, chegava ao Rossio e via aquilo cheio de retornados, milhares de retornados ali em pé a falar uns com os outros. Devo dizer que nessa altura tive muito medo. Não sabia como é que o país ia acomodar aquela gente toda. Mas acomodou. Foi um milagre."
À frente do edifício do Diário Notícias, que tinha como subdirector o comunista José Saramago, os socialistas multiplicam manifestações contra a "falsa informação".
Influenciados pelo léxico cubano, Governo e MFA decretam a chamada "batalha da produção". Objectivo: aumentar "drasticamente" a capacidade produtiva, de modo a tornar Portugal "um país mais próspero e com mais justiça social".
A partir dos dias de hoje, parece um mundo ao contrário: sem o apoio da Intersindical - que as considera "prejudiciais ao avanço do processo revolucionário -, as greves multiplicam-se, convocadas por sindicatos afectos ao PS ou à extrema-esquerda, enquanto os piquetes antigreve são alimentados por militantes do PCP.
Liceus incontroláveis
Nos liceus, os confrontos entre grupos adversos são constantes. O Pedro Nunes, em Lisboa, está a ser gerido por uma comissão constituída por elementos do MFA, mas a "ordem" tarda a instalar-se. Numa nota publicada na imprensa, contra os grupos maoístas que então dominavam ali, o Ministério da Educação proclama que os estudantes daquele liceu são, na maioria, filhos da "burguesia que oprimiu o povo português", para concluir assim: "O ensino é algo demasiado sério para estar entregue a pseudo-revolucionários que se divertem a fazer democracia."Lídia Jorge apanhou o 25 de Abril quando dava aulas na Beira, em Moçambique. Em 1975, estava no D. João de Castro, em Lisboa. "Foi a primeira vez que se viu nas escolas insultos escritos nas paredes, desenhos pornográficos. Os professores mais velhos passavam pelos corredores de olhos no chão. Não conseguiam olhar para as paredes, sentiam-se envergonhados. E os miúdos, de repente, perceberam que podiam fazer tudo aquilo na cara dos professores sem que eles pudessem fazer nada."
A desordem nas escolas foi geral, imensa, incontrolável, constata, uma vivência que lhe impôs esta conclusão: para funcionar, "a escola só pode ser uma instituição democrática até certa altura. Há uma hierarquia que se tem de manter".
A meio caminho entre o Leste e o Ocidente
Entre o início da Reforma Agrária e das nacionalizações, em Fevereiro e Março, e a normalização democrática pós-25 de Novembro, depois de se ter rasado a guerra civil, na história da democracia portuguesa 1975 foi o ano em que quase tudo aconteceu, por vezes em simultâneo e várias vezes em direcções contrárias.A guerra do Vietname chegara ao fim no início de Maio; confrontos entre a FNLA e o MPLA antecipavam em Angola o que viria a ser uma guerra civil devastadora na pós-independência, com início em Novembro; a Guerra Fria estava em pleno, embora com muito menos longevidade do que então se poderia prever, e sobre Portugal sucedem-se testemunhos contraditórios de e para ambos os blocos.
Dos países do Leste vêm votos de confiança no processo revolucionário, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves assegura ao então Presidente dos EUA, Gerald Ford, que Portugal "não é um cavalo de Tróia na NATO" e resume assim a sua participação na cimeira da Aliança Atlântica, realizada em Bruxelas no final de Maio: "Pedimos mais compreensão e menos apreensão."
Um dos traços que Nicolau Breyner retém da época: "Estava sempre a acontecer alguma coisa. De vez em quando havia tiros, outras vezes havia ruas por onde não se podia passar, ora era o quartel-general que estava cercado, ora eram os pára-quedistas que saíam do quartel. Lisboa era uma cidade com muita confusão na rua. Mas confesso que, apesar dos inconvenientes, era uma cidade muito engraçada, muito viva."
Não faltavam situações onde ir buscar conteúdos para um programa de humor, diz Breyner, que, na altura, estreava na RTP - preto e branco, dois canais, o segundo só com programação à noite, o primeiro com as tardes ocupadas pela Telescola - Nicolau no País das Maravilhas, cuja popularidade ficou a dever-se a um pequeno sketch de humor que tinha dentro, Senhor Feliz, Senhor Contente. O Contente era Herman José, que então "estava no ABC, tocava guitarra-baixo e tinha muita graça" e que, para o grande público, começou aqui, nesta rubrica.
O programa era gravado num café e obrigava, por isso, à presença de um carro de exteriores. O problema é que, na altura, a RTP só tinha um. "E como estava sempre a acontecer alguma coisa, o carro estava sempre a ser chamado e nós tínhamos que interromper as gravações. Mas isso até era divertido."
Apesar de ser um programa de crítica social e política, Breyner garante que não foram alvo de qualquer tentativa de ingerência. "Recebemos apenas algumas ameaças da extrema-esquerda. Mas não me assustaram, como também não me tinham assustado as ameaças da PIDE", quando era da oposição.
Mulheres na rua, homens
nas compras
Nesse ano, o Benfica arrecada o título ao Sporting e ambos ombreiam na I Divisão com clubes como o Espinho ou o Olhanense. Na Baixa de Lisboa, um comerciante aponta, desanimado, para a sua montra cheia de vestidos de noiva: "Ninguém está a casar-se". A luta pelo poder está ao rubro, mas entretanto estava já a acontecer uma revolução mais funda, que mudou Portugal para sempre e que contribui, em muito, para que Lídia Jorge diga isto daquele tempo: "Soltou-se a cor e de repente tudo brilhou".
A mudança na família foi a "maior esperança que aconteceu na altura", recorda a escritora. "A sociedade portuguesa vivia uma situação bastante retrógrada. Fui jovem, garota, naquele período. Era uma sociedade tão machista que as raparigas quando saíam à rua eram sempre confrontadas com piadas, vinham mexer-nos nas pernas, apalpões, diziam-nos coisas inomináveis. Na família o poder era patriarcal."
Em Abril de 1975, é ratificado um protocolo à Concordata de 1940, subscrita entre a Santa Sé e o Estado português, prevendo a possibilidade de dissolução dos casamentos pela Igreja. O novo Código Civil, que entrará em vigor neste ano, será dos mais avançados à época.
A explosão não esperou pela nova lei. "Quando se dá a revolução, as pessoas como que tentam ajustar contas com este quotidiano familiar. É um momento de grandes rupturas familiares, de muitos divórcios."
A escritora lembra-se também como esta mudança na família se repercutiu na rua: "Há uma desarrumação da sociedade, uma distensão nos comportamentos. As mulheres acompanham os homens nas ruas. As raparigas estão na rua. É a primeira vez que se começam a ver homens a passear os filhos em carrinhos ou a ir às compras".
Ela tinha dois filhos pequenos e seguia o que era ainda então a saga da maioria das mães portuguesas. Imagens que ainda guarda nos olhos: "Não havia, ou não estavam divulgados, os ultracongelados, nem o take-away, nem as refeições Blédine para bebés. Era tudo confeccionado em casa. As compras eram um fardo imenso. Ao fim da tarde, as mulheres jovens transformavam-se em postes ambulantes, carregando seis sacos de compras e dois ou três filhos pela mão."
As grandes superfícies ainda não tinham aparecido, mas os primeiros supermercados já aí estavam, provocando as queixas do costume da parte dos pequenos comerciantes. O eterno vereador da Câmara de Lisboa, Pedro Feist, que já então presidia à Associação de Comerciantes, traça este quadro do sector: existiam à época 220.000 pequenos comerciantes, o que representaria uma loja para cada 98 habitantes.
Entre comícios e os Genesis
Apesar da confusão reinante, Lisboa era ainda em parte o que fora antes do 25 de Abril. Comparativamente aos dias de hoje e nas palavras de Breyner: "mais pequena, talvez um bocadinho mais suja, talvez mais antiga, mais fechada, com menos divertimentos e com menos jovens na rua". Começavam a sair mais tarde do que hoje e não tanto como agora. Tim, por exemplo, só começou a ter autorização para sair à noite aos 16 anos. Aos 14, nos dias de aulas, já estava na cama às 10 horas da noite. Ainda existiam os grandes cinemas, plateia e dois balcões; nas salas continuava a explosão de filmes eróticos a par e passo com franceses da Nouvelle Vague e alguns dos grandes realizadores norte-americanos e ingleses.
Na época havia sempre um comício ou uma manifestação, onde se encontravam amigos. Os Genesis assinavam um dos momentos do ano, com um concerto memorável em Cascais. Multiplicavam-se as sessões do chamado "Canto Livre", por onde passavam Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino, Sérgio Godinho ou Zé Mário Branco. Havia poucas discotecas, alguns cabarets. Ia-se ao teatro, aos cafés, "que eram lugares centrais de socialização", além disso convivia-se em casa. "Também ainda se passeava em grupo. Saía-se de carro para o campo e aconteciam piqueniques monumentais", conta Lídia Jorge.
Em Almada, Tim andava de bicicleta com os amigos, jogava à bola, matrecos, um pouco de flippers. Ao fim-de-semana iam ao cinema e aos bailes das sociedades de recreio. "Existiam umas cinco entre Almada e a Cova da Piedade." Ao fim da tarde, estavam em casa. Era só a essa hora, diz, que havia alguma coisa para espreitar na televisão. E mesmo assim por pouco tempo.
Disponibilidade. Entre o jovem que foi e os jovens de hoje, é aqui que encontra a principal diferença. "Não têm conta as horas que passei em Almada sem fazer nada, encostado a uma parede, a ver os carros a passar, ou parecido. E aconteceu assim porque no sítio onde estava, e em muitos outros sítios, não havia nada para fazer. Não havia a sociedade de informação de hoje, não existiam computadores. Tudo era complicado, mas nós éramos umas esponjas capazes de absorver tudo o que estava disponível, que era muito pouco."
Para sua "sorte", acrescenta, Almada era uma cidade nova, que estava sempre a mudar. Bastavam umas férias fora e no regresso "havia mais três ruas para a gente ir".
Depois foi o mergulho na agitação em 1975, que começou com as Reuniões Gerais de Alunos no liceu e acabou em acelerado, quase uma década depois, a tempo inteiro na música, já depois de concluído o curso de Agronomia e quando estava para sair o disco de marca dos Xutos, Circo de Feras. "Tive tudo a que tinha direito: pertenci à geração do 25 de Abril; assisti e fiz parte da transformação da música; quando entrei para Agronomia éramos talvez 98 por cento de homens e quando saí as mulheres eram talvez 70 por cento", conclui Tim.
Por essa altura, meados dos anos 80, Lídia Jorge já tinha publicado alguns dos seus 15 livros; Carlos do Carmo trespassara o Faia e cantava para públicos mais vastos; Nicolau Breyner prosseguia a sua carreira de actor e Adélia Garcia, depois de uma passagem pela Fundição de Oeiras e por uma fábrica de estampagens em Fetais, já estava onde ainda está hoje: na Junta de Freguesia de Sacavém, fiscalização do mercado de manhã, limpezas à tarde.
Ontem e hoje
Mário Murteira diz que o que entretanto se passou "é uma história com muitos vilões". "Quando há um regime opressivo durante muito tempo e se desmorona, logo a seguir há uma grande esperança que depois a realidade não confirma. Quando surgem crises, a democracia política, só por si, não funciona. Só é válida quando é caminho para a democracia económica e social. E isto falhou, sabemos isso agora. A coesão social não foi reforçada desde então. Como é possível? Como é possível que o PS e o PCP não se entendam? E não consigo ver quais são as vantagens da acção da CGTP para os trabalhadores."Por comparação aos dias de hoje, o que aconteceu também em Portugal, e no mundo, foi o "fim da confiança", afirma José Maria Ferreira. "Muito do mundo da confiança, nos 30 gloriosos anos do capitalismo, era baseado em actos de memória, de repetição de coisas que se fizeram antes", mas o novo mundo das tecnologias da informação, do ciberespaço, pôs fim ao que conhecemos. "Hoje o mundo é de coisas que se fazem aqui e agora e são irrepetíveis. A única possibilidade perante ele é a da criação". José Maria Ferreira sustenta que passámos todos a ser "aprendentes" e que a confiança deu lugar a "uma desconfiança generalizada, porque os actores são ignorantes em todos os sectores, em todas as funções".
Estou muito mais preocupado agora do que estava na altura. Aqueles problemas eram conjunturais e hoje estamos com problemas estruturais. Na altura tínhamos instrumentos de política económica, como a taxa de câmbio e taxa de juro [que deixámos de ter de forma autónoma com a adesão ao euro], por isso é que tínhamos uma recessão e depois recuperávamos logo.
Silva Lopes, Economista
O primeiro Governo provisório [em funções até Julho de 1974] era de uma candura, de uma ingenuidade, de uma esperança... Era a utopia, era uma coisa fantástica.Mário Murteira, Economista
Já não podiam explorar como queriam. Tínhamos sempre o encarregado atrás, nem a cabeça podíamos levantar.Adélia Garcia, Ex-operária
Os 30 gloriosos anos do capitalismo", que tinham começado em 1945, no pós-guerra, estavam a chegar ao fim e com eles o "apogeu de confiança" que fora propiciado por este ciclo de "industrialização e urbanização das sociedades", baseado em adquiridos como o pleno emprego, o salário, férias pagas.José Maria Ferreira, Investigador
As pessoas tinham desejo de muito menos coisas. Recebia-se pouco, mas havia a ideia de que finalmente tínhamos alguma coisa. O mito do Estado-providência estava pela primeira vez a ser vivido no quotidiano.Lídia Jorge, Escritora
Tive tudo a que tinha direito: pertenci à geração do 25 de Abril; assisti e fiz parte da transformação da música; quando entrei para Agronomia éramos talvez 98 por cento de homens e quando saí as mulheres eram talvez 70 por centoTim, Músico
Tinha a casa cheia, porque sabiam que eu estava com o 25 de Abril" Carlos do Carmo
Fadista
Estava sempre a acontecer alguma coisa. De vez em quando havia tiros, outras vezes havia ruas por onde não se podia passarNicolau Breyner, Actor