Um mural que fala por um mundo sem lei e desprotegido: os oceanos

O artista urbano português Effe pintou em Lisboa um mural integrado no The Outlaw Ocean Mural Project, um projecto do jornalista norte-americano Ian Urbina, que tem dedicado os últimos anos a escrever sobre o lado invisível dos oceanos, seja pesca ilega, trabalho escravo ou poluição.

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Um mural que fala pelos oceanos Vera Moutinho

Quando Effe recebeu uma mensagem do jornalista Ian Urbina, pela rede social Instagram, lançou-se numa pesquisa. A Effe, nome artístico de Filipe Ribeiro, de 24 anos, chegava o convite para pintar um mural numa parede de Lisboa que ilustrasse os problemas que os oceanos enfrentam.

“A minha relação com o oceano era a praia, talvez a alimentação, mas nunca foi algo que explorasse”, explica. Nasceu e cresceu no interior do Alentejo, longe do mar. “Agora percebo como é vasto e enorme.”

Foi perto do rio Tejo, em Alcântara, que Effe encontrou a parede ideal. Uma pequena “casa das máquinas” da empresa Águas de Portugal, que cedeu o espaço. “Temos a força do mar e os animais”, descreve Effe junto às paredes que pintou durante uma semana no mês de Maio. Com um percurso que passa pelo webdesign, pela ilustração e mais recentemente a tatuagem, Effe escolheu como elementos uma carpa, uma andorinha e, claro, a força do mar.

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O mural foi pintado numa casa das máquinas da Águas de Portugal, que cedeu o espaço em Alcântara Catarina Rosa/DR

“Tanto a carpa como a andorinha não são propriamente animais que estejam no meio do oceano, mas representam os animais aquáticos e voadores que convivem com todas as nossas acções,” explica.

Oceanos: um mundo sem lei

Foi através da informação que lhe chegou pela mão do jornalista norte-americano Ian Urbina que Effe mergulhou nos problemas, também eles vastos, dos oceanos: tráfico de armas, pesca ilegal, poluição, escravidão humana em navios de pesca. “É incrível como não temos capacidade de agir perante tantas coisas infortunas que lá se passam”, reconhece o artista.

Ao longo dos últimos anos, têm sido esses os temas das reportagens de Ian Urbina, muitas delas premiadas a nível internacional e que serviram de inspiração para longas-metragens de ficção ou documentários. O jornalista, que trabalhou durante quase duas décadas para o The New York Times, descobriu no mar alto um mundo invisível, como o das frotas de pesca.

“Elas permanecem em grande parte invisíveis, mais do que aviões ou camiões. Outras indústrias que transportam mercadorias são rastreadas, sobretudo em linhas internacionais. Isso não acontece com as frotas de pescas: esses tipos conseguem ser invisíveis”, conta numa videochamada a partir de Washington.

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Ian Urbina (ao centro) a bordo de um barco de pesca ao largo das Filipinas durante uma reportagem ADAM DEAN/THE NEW YORK TIMES

Em 2019, quando publicou o livro Oceano sem Lei: Jornadas pela Última Fronteira Selvagem, fundou a organização não-governamental The Outlaw Ocean Project para divulgar em várias frentes essa realidade invisível dos oceanos.

O seu trabalho continua a ser publicado em grandes meios como a revista The New Yorker, a NBC News, a revista The Atlantic ou o Washington Post, e está também traduzido e publicado em jornais um pouco por todo o mundo. Mas é através da arte que o jornalista acredita que consegue chegar mais longe - e mais profundo.

“O jornalismo tradicional entra pelos olhos e vai para o cérebro, segue esse caminho. Se pensarmos na arte, especialmente a música, entra pelos ouvidos, pelo coração e depois para o cérebro”, explica Ian urbina. “A arte é mais emocional, chegamos às pessoas de uma maneira diferente.”

Foi assim que se lançou primeiro no The Outlaw Ocean Music Project, uma derivação do projecto-mãe que criou parcerias com músicos em todo o mundo. Numa tentativa de chegar a um público mais jovem, Ian convidou artistas a comporem músicas inspiradas nas suas reportagens.

É a mesma ideia que agora dá corpo ao The Outlaw Ocean Mural Project: artistas de várias nacionalidades pintam murais que se baseiam nos temas do trabalho jornalístico de Ian Urbina. É Raphaela Morais, co-autora do projecto, que nos explica mais: “Contactamos os artistas e alguns deles também propõem colaborar connosco. O artista tem liberdade para escolher o tema com que se identifica mais. É como se fossem embaixadores do projecto”, diz.

Futuro dos oceanos discutido em Lisboa

Lançado em Março deste ano, o projecto conta já com murais no Brasil, Irlanda, Chile, EUA e, agora, Portugal. “Aquilo que escrevo é intenso, duro. Esperamos que as pessoas o leiam, mas também precisamos de rampas mais suaves que mergulhem gradualmente as pessoas no conteúdo”, acredita Ian Urbina. “Uma peça de arte é uma forma mais leve de as confrontar com as coisas más que estão a acontecer”, acrescenta.

A escolha de Lisboa para integrar o mapa de murais passou também pelo facto de a capital portuguesa estar prestes a receber, no final de Junho, a conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos que juntará representantes dos 193 Estados-membros da ONU, mas também entidades financeiras, organizações não-governamentais e elementos da sociedade civil para discutir soluções para proteger os oceanos.

“Eles vão usar a governança, tratados, acordos, livros brancos. Isso tem um papel em melhorar o estado dos oceanos e as condições de quem lá trabalha, mas não é a única forma”, realça Ian Urbina.

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O mural de Effe em Alcântara, junto ao Tejo Catarina Rosa/DR

“Os consumidores decidirem que não vão comprar algo de um certo país ou empresa até terem a certeza de que não há pesca ilegal ou escravidão envolvidos é uma pressão do lado do mercado.” É preciso pressionar os líderes mundiais, defende, a criar novas regras para conseguir tornar visível todos os crimes que o mar alto esconde.

“O mar alto é um espaço estranho. Quase como os círculos polares do Árctico ou da Antárctida, ou o espaço sideral”, conta Ian, quando lhe perguntamos o que o levou até ao oceano, para lá do que os nossos olhos alcançam. Formado em antropologia, foi quando trabalhou num navio em Singapura, antes de se tornar jornalista, que descobriu a realidade paralela de quem vive em alto mar. “Há uma tribo de pessoas invisíveis, 80% do que consumimos chega de barco, e eu nunca tinha ouvido falar deles. Fiquei fascinado”, recorda.

Em Lisboa, gostava que se efectivassem regulamentações para tornar visível esse invisível. “É um território que é de todos e não é de ninguém. Há regras, mas não há um mecanismo de policiamento que as faça cumprir”, afirma.

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