A Igreja pode recuperar o "padre vermelho" que dasafiou Jardim
O seu julgamento foi adiado há cerca de dois meses, depois de 30 anos de luta. O novo bispo do Funchal tem dado sinais de que a Igreja pode vir a reabilitá-lo
a Martins Júnior, conhecido na Madeira como o "padre vermelho", voltou recentemente à actualidade com a Igreja católica a dar sinais de o querer reabilitar. Martins Júnior declara-se vítima de uma "coabitação indigna entre o poder político e o poder religioso" vivida durante 30 anos. Do púlpito da igreja para a barra do tribunal, depois de ter perdido a imunidade parlamentar ao deixar de ser deputado, o julgamento do padre Martins Júnior, suspenso das suas funções por razões políticas há três décadas, foi adiado há dois meses.A sua história confunde-se com a história política da ilha e é reveladora da subordinação da Igreja ao poder político hoje. Martins Júnior não teme as palavras duras e quando refere o seu julgamento classifica-o como "a reedição da Inquisição". "Mas neste caso com a entrega ao poder civil do julgamento daquilo que é exclusivamente do foro religioso", diz o padre progressista, grande opositor do poder de Alberto João Jardim, presidente do Governo Regional da Madeira.
O padre não entende a demanda de jurisdição civil sobre matéria religiosa, quando nunca foi ouvido ou julgado por um tribunal eclesiástico. Suspenso do exercício do munus sacerdotal desde Julho de 1977, o padre continuou a celebrar a missa e outros actos litúrgicos na Ribeira Seca, em Machico. Apesar de ter sido destituído de pároco desta comunidade, em Novembro de 1974, nunca a abandonou, por imposição da população, que também resistiu à ocupação do templo pela polícia, ordenada pelo Governo Regional em 1985.
A suspensão do padre Martins foi decretada, sem instrução de processo, pelo bispo Francisco Santana, mal acabara de entrar na diocese do Funchal, para que fora nomeado poucos dias antes da Revolução de Abril. Ao novo prelado, antigo assistente de Henrique Tenreiro, ministro de Salazar, não agradavam as actividades políticas de Martins Júnior, nomeadamente a sua participação na comissão administrativa da Câmara de Machico a que, mais tarde, viria a presidir.
Bispo lidera política
De um anticomunismo primário que nunca escondeu, Francisco Santana impulsionou a fundação do PPD na ilha, incumbindo dessa tarefa Alberto João Jardim, por indicação de seu tio e protector, Agostinho Cardoso, o homem forte do antigo regime no arquipélago. Ao então professor do ensino secundário - apresentado pelo bispo, de paróquia em paróquia, como director do Jornal da Madeira (JM), nomeado em Outubro de 1974, e futuro presidente do Governo - coube a "santa" missão de transformar este órgão propriedade da diocese em oráculo da cruzada política contra Lisboa. "Um socialismo marxista, onde se escondem habilmente os agentes do comunismo internacional, pretende assaltar o nosso arquipélago da Madeira para o colonizar", proclamou o bispo em 1975.
Francisco Santana elegeu como uma das suas primeiras frentes de combate a neutralização dos padres progressistas do Pombal, que, com ligações ao movimento de operários católicos, pretendiam uma nova ordem no interior da Igreja regional. "Temos ali o quartel-general da revolução", apontou Jardim. Poucos dias depois, em Novembro de 1975, uma bomba-relógio destruiu a casa e os padres que escaparam ao atentado, imediatamente relacionado pela esquerda com aquela denúncia do futuro governante, viram-se forçados a abandonar a ilha. "A Flama pôs lá uma bomba, o problema é com a Flama, não é comigo", desculpou-se Jardim. Era o início de uma série de atentados que termina em Março de 1978, quando este chega a Presidente do Governo, afastando Ornelas Camacho a meio do mandato.
O bispo - decisivo na implantação do PPD - continua a liderar a política regional, transformando celebrações litúrgicas em manifestações autonomistas pró-separatistas. Com Jardim, que entretanto salta da direcção do JM para a presidência do Governo Regional, o bispo concebe a bandeira da região, decalcada da da Flama, apenas com a substituição das quinas lusitanas pela cruz de Cristo. Santana morre em Março de 1982 sem resolver o diferendo com Martins Júnior. "Um padre dirigente político (...) é um falsário do Evangelho", disse sobre o caso.
Troca de papéis
Com a substituição do falecido bispo por D. Teodoro Faria, em 1982, altera-se o relacionamento pessoal e institucional entre o presidente do Governo e o chefe da diocese. É Jardim quem começa a ditar as regras do jogo, condicionando a Igreja com a atribuição de subsídios para a construção de novos templos e, através de suprimentos financeiros, passando a deter a quase totalidade do capital do JM, que passa de órgão diocesano a porta-voz do Governo/PSD. Nesta troca de papéis, o governante chega a dirigir-se aos fiéis no púlpito da nova igreja da Ribeira Grande.
Contra esta subordinação da Igreja ao poder regional, o "grupo dos dez" padres novos escreveu, em Agosto de 1992, o manifesto Mais democracia, Melhor Democracia. A dispersão dos padres signatários pelas mais distantes paróquias da ilha, ordenada pelo bispo promovido a lugar de destaque no protocolo regional, não impediu que outros manifestos surgissem a pedir "uma clara e urgente ruptura da Igreja em relação ao Governo regional".
Tentar a separação
Mantido suspenso por aquele bispo, Martins Júnior foi um dos alvos predilectos de Jardim e do seu Governo, que discriminou financeiramente a Câmara de Machico enquanto o padre foi presidente e retirou-lhe em 1992 a imunidade de deputado, então eleito pela UDP, para responder em tribunal. Foi absolvido no processo, movido pelo PSD por declarações proferidas no parlamento a exigir esclarecimentos sobre o desaparecimento de valiosíssimas peças de prata, cedidas pelo Museu das Cruzes, no decurso da instalação da Assembleia da Madeira, a cargo de deputados sociais-democratas.
Por atingir o limite de idade canónico, Teodoro Faria pediu a resignação do cargo que desempenhou durante 25 anos, mas continua a participar em actos oficiais, ao lado de Jardim. Foi substituído em Maio de 2007 por D. António Cavaco Carrilho, que, ao entrar na diocese, deu um sinal claro de que não pretende interferir nas questões políticas. Demarcando-se da acção dos seus antecessores, admitiu ser possível a cooperação "em tudo aquilo" que seja feito "para o bem comum", mas "mantendo sempre a isenção e a autonomia".
A propósito do julgamento de Martins Júnior, o prelado salvaguardou que, desde a sua chegada, iniciou "um caminho de diálogo e aproximação, tendo em vista a reconciliação e a integração plena [do padre] na comunhão da Igreja diocesana".
"O caminho a prosseguir até à concretização deste objectivo tem vindo a ser estudado por especialistas de direito canónico, para que tudo se processe de acordo com as determinações da Igreja e o espírito evangélico que as inspiram", pode ler-se no recente comunicado da diocese.
Alberto João Jardim teve sempre o padre Martins Júnior como um dos seus alvos predilectos ao longo dos anos