Câmara lenta

Não, "O Grande Silêncio" é um daqueles sucessos "abrangentes" que congregam à volta todo o tipo de públicos - embora não se possa falar de um triunfo do "marketing", é impossível não pensar que o filme de Gröning está a ir ao encontro de uma necessidade de espiritualidade, de paz interior, de refúgio do stress do quotidiano que, por exemplo, os discos de canto gregoriano cumpriram há anos. Não por acaso, algum do pouco som de voz humana que se ouve em "O Grande Silêncio" são, precisamente, os cantos diários a que os monges cartuxos se entregam.

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Não, "O Grande Silêncio" é um daqueles sucessos "abrangentes" que congregam à volta todo o tipo de públicos - embora não se possa falar de um triunfo do "marketing", é impossível não pensar que o filme de Gröning está a ir ao encontro de uma necessidade de espiritualidade, de paz interior, de refúgio do stress do quotidiano que, por exemplo, os discos de canto gregoriano cumpriram há anos. Não por acaso, algum do pouco som de voz humana que se ouve em "O Grande Silêncio" são, precisamente, os cantos diários a que os monges cartuxos se entregam.

Alguns críticos têm apontado negativamente ao filme de Gröning precisamente essa função de "válvula de escape" como a justificação última de um documentário banal, maçador, pouco inventivo. No entanto, parece-nos que essas "acusações" atribuem ao projecto uma desonestidade fundadora de busca de um êxito comercial que dificilmente poderia ser antecipado. A verdade é que o despojamento ascético de "O Grande Silêncio" é o seu grande trunfo e o seu maior desafio - porque não há outra maneira de colocar o espectador no lugar destes monges que vivem isolados do mundo e se mantêm em silêncio durante todo o dia, excepto quando cantam, mas dificilmente um espectador só habituado a um cinema narrativo se deixaria seduzir abertamente por um projecto tão radicalmente despojado. O êxito de "O Grande Silêncio", então, é antes a surpresa de haver um público para um objecto como este, contemplativo, rigoroso e, sim, exigente.

Sejamos honestos: são três horas em que acompanhamos o ritmo diário da Grande Cartuxa, em que assistimos aos trabalhos manuais, às rezas, às leituras, aos cânticos, às refeições, à jardinagem, ao passar das estações, sem narrativa, sem voz- "off" - o filme é tão asceta como a vida no interior do mosteiro, visto que Gröning viveu durante seis meses com os monges, sendo o seu próprio operador de câmara e técnico de som, e há momentos em que a plasticidade da rodagem em formato digital o aproxima de um quadro, de uma obra de arte pendurada num museu. Mas é essa exigência que o torna tão fascinante, esse gesto radical que pode ser comparável ao que David Lynch fez ao assinar "Uma História Simples": impôr um ritmo nos antípodas do audiovisual contemporâneo, contrapôr à velocidade da televisão, da internet, do cinema narrativo convencional um espaço de recolhimento, um intervalo para admirarmos outros modos de entender o mundo. Como quem diz que há sempre outras maneiras de ver o mundo.

É, então, esse o maior mérito de "O Grande Silêncio": o de, dentro da lógica puramente documental que o norteia, corporizar uma "rebelião" contra a ditadura da lei de Moore. Às vezes, basta reduzir a velocidade para reencontrarmos o que não sabíamos que perdemos. Resta saber se o público português será tão sensível a isso como noutros países da Europa.