A sedução monástica de Philip Gröning

"O Grande Silêncio", de Philip Gröning, mostra que o realizador se deixou seduzir pela vida da Grande Chartreuse, próximo de Grenoble. Ali, São Bruno fundou, há pouco mais de 900 anos, a Ordem da Cartuxa, onde os monges procuram aliar a vida eremítica (cada um vive sozinho numa cela) à vida cenobítica (a experiência comunitária, com tempos em comum). "Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir", diz a frase do livro bíblico do profeta Jeremias, repetida como uma legenda.

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"O Grande Silêncio", de Philip Gröning, mostra que o realizador se deixou seduzir pela vida da Grande Chartreuse, próximo de Grenoble. Ali, São Bruno fundou, há pouco mais de 900 anos, a Ordem da Cartuxa, onde os monges procuram aliar a vida eremítica (cada um vive sozinho numa cela) à vida cenobítica (a experiência comunitária, com tempos em comum). "Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir", diz a frase do livro bíblico do profeta Jeremias, repetida como uma legenda.

Durante quase três horas (Gröning filmou 120 horas de película em seis meses de permanência na Cartuxa), o sino soa como um refrão: passam os tempos e as estações, enquanto os monges rezam, rapam o cabelo, meditam, tratam do jardim. Neva e os religiosos cortam lenha, brincam, cantam, escorregam na neve, prepararam comida. A primavera explode e os monges riem, cantam, rezam, cuidam do jardim, trabalham na carpintaria.

Essa passagem do tempo e de uma experiência que se mostra marcam decisivamente o filme. Há apenas duas interferências do realizador: a captação de cada um dos rostos, durante breves segundos, como um adágio do olhar que se repete ao longo do filme; e uma curta entrevista (só se escutam as respostas) a um monge que cegou. Philip Gröning já afirmou que quis redescobrir o lado "mais luminoso, mais puro" do catolicismo, por contraste com o triângulo pecado-culpabilidade-contrição que conhecera. As declarações do monge cego mostram a oscilação do próprio realizador: o religioso está feliz com a sua vida, diz que "Deus é infinitamente bom e ajuda", mas também agradece "todos os dias" a Deus o facto de ter cegado...

Mas os olhares que nos desafiam através da objectiva do realizador - quase todos a fixam sem pestanejar - são olhares de pessoas que vivem "quase sem medo, que não receiam a morte, que confiam em absoluto em que Deus se ocupa de tudo", como também já testemunhou o realizador. A doença e a morte estão também presentes: um dos monges mais idosos é filmado enquanto outro o trata delicadamente; quase no final do filme, vê-se o monge moribundo na cama. Tudo é captado com a mesma poesia de quem filma a natureza envolvente. O corpo - na oração, no trabalho, no divertimento, na doença - assume uma dimensão estética, ascética e transcendente, porque liberta.

A mesma transcendência e harmonia é dada aos objectos, gestos e espaços do quotidiano: a gota do lava-louça, o claustro, um avião, o automóvel que passa, os gatos, as plantas, o lavar das mãos, a mesa, o jarro, uma maçã cortada, o espaço vazio, a chuva... "A terra, o ar e o oceano são abençoados pelo Senhor", diz uma das frases-legenda do filme.

Há um problema na versão portuguesa, comum a outros filmes que abordam ao fenómeno religioso: os cantos e as orações quase não são legendados. Num filme em que a palavra escrita e falada não abunda, a palavra cantada e rezada tem uma função primordial que fica ocultada por essa ausência.

Gröning sintetiza o espírito deste convento feito cinema numa outra frase: "Eis o silêncio: deixai que o Senhor pronuncie em nós uma palavra igual a Ele."