"O Odor do Sangue", que é o primeiro filme de Martone a estrear comercialmente em Portugal, está um pouco longe disso - ou pelo menos afigura-se complicada a sua integração na dinâmica acima referida (o lugar até é Roma, não Nápoles). Com data de 2004, trata-se de uma adaptação literária (um romance de Goffredo Parise, que escreveu para Fellini "Le Tentazioni del Dottor Antonio" no filme de sketches "Boccacio 70") que aborda uma crise matrimonial da meia-idade. Michele Placido e Fanny Ardant são os protagonistas. Casados há presumivelmente "n" anos, a relação tornou-se "des-sexualizada", cada um tem liberdade para ter os parceiros que quiser, e o ponto em que o filme os apanha é altura em que um grão de areia se vem introduzir nesta engrenagem conjugal, aparentemente pacífica: Placido, que tem uma namorada mais nova, começa a ficar perturbado com o fascínio que Ardant demonstra por um suposto novo namorado, muito mais jovem do que ela.
Uma das apostas do filme é fazer passar essa relação, ou o que quer o espectador quer Placido (assim constituido em "ponto de vista") sabe sobre ela, exclusivamente pela palavra e pelos relatos de Ardant - mesmo quando se vê alguma coisa, nunca é seguro (e aliás, é bastante certo) que não passe da ilustração mental feita por Placido daquilo que a mulher lhe conta. Abre-se assim um "abismo", por onde escorrega a personagem de Placido, que nunca sabe definir bem os sentimentos que lhe são suscitados pelas histórias de Ardant. Espaço, também, para todas as ambiguidades, para a total vacilação entre real e imaginado; mas, sem que o filme perca alguma vez a sua dimensão mais intrigante, o "dispositivo" é mais interessante do que a sua consumação, como se o filme tendesse mais para o aclaramento da ambiguidade (o amante de Ardant existe mesmo?) do que para o seu adensar. Há qualquer coisa no próprio registo (entre uma teatralidade "casual" e uma impressão de naturalismo, ambos obviamente estudados) que parece ter medo de fundir os seus termos e de os levar às últimas consequências. Fá-lo uma vez, num plano breve e discreto (Placido e Ardant perante o "buraco" de uma escada em caracol), quase em "mise-en-abîme" - como se "O Odor do Sangue" fosse um "Vertigo" ao contrário, em que um homem fantasiasse não a mulher perfeita, mas o amante perfeito da mulher. Mas é como dissemos: as premissas são mais entusiasmantes do que o que Martone faz com elas. Não impede que seja um filme a ver, intrigante na sua capacidade de desafiar o espectador.