Penso, logo duvido
Quando finalmente a vemos, a protagonista de "Dez", a mulher sentada ao volante do carro onde todo o filme se passa, não nos surpreende. Os óculos escuros, o lenço branco descaído sobre os cabelos, o baton discreto, são traços que a colocam na alta burguesia iraniana. Se fosse uma europeia ou uma americana – e sobretudo se fosse uma não-muçulmana – também não surpreenderia a defesa do individualismo que surge constantemente no seu discurso. "Lembro-me de me dizeres um dia que não devemos ter elos nenhuns", recorda-lhe a irmã. E ela própria, mais à frente, diz à velha religiosa que é bom ela ter-se desfeito de tudo o que tinha porque "quanto menos coisas tiver que a prendam melhor para si".
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Quando finalmente a vemos, a protagonista de "Dez", a mulher sentada ao volante do carro onde todo o filme se passa, não nos surpreende. Os óculos escuros, o lenço branco descaído sobre os cabelos, o baton discreto, são traços que a colocam na alta burguesia iraniana. Se fosse uma europeia ou uma americana – e sobretudo se fosse uma não-muçulmana – também não surpreenderia a defesa do individualismo que surge constantemente no seu discurso. "Lembro-me de me dizeres um dia que não devemos ter elos nenhuns", recorda-lhe a irmã. E ela própria, mais à frente, diz à velha religiosa que é bom ela ter-se desfeito de tudo o que tinha porque "quanto menos coisas tiver que a prendam melhor para si".
Esta ânsia de liberdade faz lembrar outra personagem de Kiarostami, o homem que queria morrer em "O Sabor da Cereja". Ambos são figuras revolucionárias numa sociedade como a muçulmana, em que o invidíduo só existe integrado na "umma", na comunidade (que maior traição ao colectivo existe do que o suicídio?). "A ‘charia’ (lei) muçumana trava um combate sem tréguas contra o ego, muitas vezes identificado com o primeiro impedimento ao verdadeiro conhecimento de Deus", escreve Malek Chebel em "Le Sujet en islam". O "penso, logo existo" é assim substituído pelo "penso, logo Ele existe", explica o autor.
Mas para a mulher ao volante a própria religião levanta dúvidas. Ela diz-se confusa, não é crente mas sente o impulso de ir rezar ao mausoléu e confessa que ainda não encontrou a paz de espírito, admitindo que a procura, entre outras coisas, na religião. Dúvidas que só vêm confirmar o seu estatuto de sujeito com uma identidade que se define para além da comunidade em que está integrada.
Mas é abalado, sobretudo, pelo discurso do filho. Este acusa-a de ter trocado o pai por outro homem, acusa-a de ser egoísta e má mãe, de cozinhar sempre a mesma coisa, de só pensar nela própria. E quanto ao não pertencermos aos outros, responde-lhe à letra: "Sou só um miúdo, não posso pertencer só a mim, antes tenho que crescer."
A mãe, que tenta evitar a culpa justificando permanentemente o seu comportamento, ao ponto de exasperar o filho que já não quer ouvir os argumentos, acaba por não conseguir fugir dessa culpa – e percebe-se que a questão não está resolvida no seu espírito. Porque é que ela tenta, a certa altura, justificar o seu atraso com um problema no radiador do carro quando, pouco depois, acaba por confessar que ficou a fotografar?
Afinal, esta relação com a culpa, assim como a relação com a dúvida, acabam por ser os sinais mais fortes do seu individualismo – muito mais fortes do que o discurso do "não pertencermos a ninguém". A culpabilidade, escreve ainda Chebel, "requer a participação e a vontade da pessoa (...) porque não pode haver culpabilidade numa pessoa dependente ou subjugada". Quanto à dúvida, ela é a maior ameaça a uma religião, é o princípio da heresia. Há mesmo um adágio árabe que lembra: "A certeza não pode ceder perante a dúvida."
É por isso que a mulher iraniana independente de "Dez" é mais revolucionária pelas suas fraquezas do que pela sua suposta força. Ou, dito de outra forma, são essas fraquezas que constituem a sua força. São a culpabilidade e a dúvida que a tornam um indivíduo único, são elas que a levam a questionar as outras mulheres que passam pelo seu carro, a interrogar-se sobre o sentido da vida. E que fazem dela, em plena sociedade islâmica, uma personagem tão forte como o homem que, em "O Sabor da Cereja", andava pelas estradas de Teerão a dizer que queria morrer.
Ou como essa outra mulher que, novamente em "Dez", entra no carro para nos contar a sua desilusão de amor e que, num gesto de suprema libertação num país como o Irão, em que as mulheres têm que usar lenços e véus porque o cabelo está de alguma forma ligado ao pecado, rapa a cabeça. Um dos momentos mais fortes do filme é aquele em que abre o nó do seu lenço e o afasta para trás, mostrando a cabeça rapada. "Desde que o cortei parei logo de chorar."