Sol no Estoril, delírios em Lisboa
Ainda estávamos a digerir o impacto sensacional da noticia da implosão do Estoril-Sol e já a polémica se instalou, através de um posicionamento público da Ordem dos Arquitectos. Mais uma vez, e lamentavelmente, se polariza "in extremis", auto-aniquilando-se os próprios argumentos por falta de capacidade de separar o trigo do joio. Assim se transforma uma eventual boa intenção da Ordem de informar e alertar numa arrogante incapacidade que pretende "iluminar" (a partir do fortim corporativo) a sociedade perdida nas trevas e eventuais políticos bem intencionados, finalmente interessados nestas questões.Todos sabemos que o Estoril-Sol sempre constituiu, na sua mediocridade híbrida de "international style" pós-guerra e na sua paupérrima meditação derivativa de "unité d?habitation" - para não falar dos interiores -, um atentado volumétrico de implantação, em ruptura com o contexto e a envolvente natural e paisagística. Possíveis comparações com a verdadeira qualidade arquitectónica "international style" (e sobretudo a qualidade "gesamtkunstwerk" dos interiores, que merecem uma classificação patrimonial) do hotel Ritz, ou com o notável conjunto dos blocos do cruzamento da Av. de Roma com a Av. dos Estados Unidos da América (Filipe Figueiredo, José Segurado etc) só contribuem para enfraquecer os pretendidos argumentos de defesa do património do séc. XX. Aliás, o valor deste verdadeiro conjunto de "unités d?habitation" - que merecem ser classificadas numa legislação a produzir urgentemente pelo Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar) de conceito de conjunto urbano, numa perspectiva dos princípios e valores da Docomomo (órgão das Nações Unidas que tem como objectivo a preservação e a defesa dos monumentos do movimento moderno) - é confirmado pelo contexto coerente da envolvente, numa perspectiva da "Carta de Atenas" (CIAM), constituído por toda a Av. dos Estados Unidos da América. Nessa mesma perspectiva, não esquecer o Bairro das Estacas (1949-Formosinho Sanches e d?Anthouguia), que, tal como o nome indica constitui uma meditação pioneira em Portugal dos conceitos "Corbu": separação de funções, orientação de edifícios, "pilotis", "brise-soleils". E, claro, ainda os conjuntos da Av. Infante Santo (1955) ou da Av. de Brasil (1958) de Jorge Segurado.E que fazer dos inúmeros conjuntos moderno-deco (anos 30) espalhados pela cidade? E de todos os "derivados" de Cassiano Branco, à parte dos autênticos Cassiano - estes últimos apresentando uma qualidade habitacional incontestável ? E ainda de todos os conjuntos urbanos Estado Novo coerentes e unificados, desde a Alameda até Alvalade, na Sidónio Pais, na D. João V, etc?A nova direcção do Ippar vai ter muito material a classificar neste novo conceito legislador, ainda por criar, do conjunto urbano de património do séc. XX.Se pretendermos ser coerentes, ao meditarmos sobre o caso Estoril-Sol teremos também que meditar sobre a mediocridade arquitectónica do hotel Atlântico. Ou sobre o verdadeiro atentado posterior que o hotel Eden - um "arranha-céus" muito "Reboleira-Brandoa" - representa.Não, não vamos abrir esta caixa de Pandora. Em vez disso, passemos a reflectir sobre um livro-manifesto dirigido ao presente e ao futuro da cidade de Lisboa, publicado há alguns meses e da autoria do arquitecto Graça Dias. O arquitecto-autor oferece-nos duas fotomontagens. Uma propõe-nos uma Av. Marginal pontuada por diversas torres. Na outra temos oportunidade de reconhecer o Saldanha transformado numa pseudo-Times Square, abrilhantada com anúncios luminosos e torres de 50 andares.Não sei porquê, mas andamos desconfiados que este ataque de "cosmopolitite" aguda - com todos os sintomas megalopolis da cultura da congestão e da densidade urbana - resulta de uma longa exposição aos delírios de Rem Koolhaas sobre Manhattan (Delirious New York), que já tinham se manifestado numa crise "cacilheira", culminando agora numa indigestão mental aguda, ou seja, outra forma de congestão. O autor esquece-se de que os seus devaneios estarão muito mais próximos dum pesadelo "cyborg", pós-cataclismo ecológico tipo "Blade Runner", do que de uma odisseia futurista. Isto sem contar com as borgas cacilheiras que os "cyborgos" lusitanos teriam de inventar para as suas panças mecânicas. Fora as ironias, algumas das propostas para o Saldanha seriam, a concretizar-se, de tal forma graves que ultrapassam a mera retórica do manifesto, para entrarem na esfera do altamente irresponsável. As volumetrias dos existentes "Atrium" e "Monumental" seriam triplicadas até atingirem os 50 andares e uma terceira torre ocuparia o lugar dos dois notáveis edifícios Estado Novo que constituem, hoje, o último símbolo e memória da resistência à demolição do desaparecido Monumental. Além disso, vislumbra-se na fotomontagem uma quarta torre da mesma volumetria colocada no meio da Fontes Pereira de Melo, num local que só poderá ser o espaço ocupado agora pelos três edifícios (que é preciso salvar) dos números 18, 22 e 26, ao lado do agora "recuperado" palácio Sotto Mayor.Não se pretende pôr em causa o direito ao manifesto, com toda a retórica fracturante que tal exige. Mas será esta uma atitude responsável e pedagógica perante toda uma geração de jovens que folheiam mais revistas do que lêem livros, e que são manipuláveis e manipulados pelas crises Institucionais e pelas batalhas jurídicas que imperam na Faculdade de Arquitectura - ou nas verdadeiras fábricas de diplomas que constituem as universidades privadas ?Será que a prometida "fornada" de mais onze mil arquitectos quererá servir este pais desordenado e caótico? Ou irão ficar prisioneiros de um síndroma comparável aos ilustres colegas de Medicina, para os quais Portugal é Lisboa e Porto?Realmente, e numa ironia perversa, a única forma de negar que o Sheraton sempre constituiu uma aberração para o tecido urbano do séc. XIX, e é portanto a nossa torre Montparnasse, é construir em frente uma torre de 50 andares. *Historiador de arquitectura