Regresso a Casa
Quem vai para casa é Gilbert Valence (magnífico Michel Piccoli), actor famoso dos palcos parisienses, subitamente "derrotado" por falhas de memória. O outro é Manoel de Oliveira, cineasta inesgotável a quem a memória tem servido de feição como fonte de energias secretas. Depois do Oliveira "histórico", à volta com a retórica e mitos do Quinto Império em "Palavra e Utopia" (2000), assiste-se com surpresa e rendição ao regresso do realizador português a casa, que é o mesmo que dizer ao cinema - ao seu, e à "marca de origem" dos tempos do mudo na depuração do plano.
Luxo em tempos de cinema ausente: Oliveira nunca deixou de trabalhar, os seus filmes sucedem-se segundo uma lógica imparável que faz com que, à data de estreia do seu último filme em sala, já tenha outro concluído, e mais um em fase de preparação. Exemplo notório é que "Porto da Minha Infância", documentário realizado este ano por encomenda da Porto 2001, tenha sido exibido esta semana, em ante-estreia, no Teatro Rivoli e na Cinemateca Portuguesa.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quem vai para casa é Gilbert Valence (magnífico Michel Piccoli), actor famoso dos palcos parisienses, subitamente "derrotado" por falhas de memória. O outro é Manoel de Oliveira, cineasta inesgotável a quem a memória tem servido de feição como fonte de energias secretas. Depois do Oliveira "histórico", à volta com a retórica e mitos do Quinto Império em "Palavra e Utopia" (2000), assiste-se com surpresa e rendição ao regresso do realizador português a casa, que é o mesmo que dizer ao cinema - ao seu, e à "marca de origem" dos tempos do mudo na depuração do plano.
Luxo em tempos de cinema ausente: Oliveira nunca deixou de trabalhar, os seus filmes sucedem-se segundo uma lógica imparável que faz com que, à data de estreia do seu último filme em sala, já tenha outro concluído, e mais um em fase de preparação. Exemplo notório é que "Porto da Minha Infância", documentário realizado este ano por encomenda da Porto 2001, tenha sido exibido esta semana, em ante-estreia, no Teatro Rivoli e na Cinemateca Portuguesa.
Se se olhar para a filmografia mais recente de Manoel de Oliveira, "Vou Para Casa" pode ser encarada como uma continuidade natural de "viagem ao Princípio do Mundo" (1997), prosseguindo na veia mais límpida e intimista do realizador em "auto-reflexão". Mas onde Manoel, o realizador protagonizado por Marcello Mastroianni em "Viagem...", duplicava deliberadamente a digressão do outro Manoel (de Oliveira) sobre os lugares da sua infância e sobre a passagem do tempo (leia-se: a consciente irreversibilidade do envelhecimento e a evocação "aberta" do passado), em "Vou Para Casa" essa transferência de olhar é mais secreta, quase sussurrada.
Não é implícito que Gilbert Valence/Michel Piccoli seja mais um "alter ego" do realizador, ainda que lhe possamos apontar como eixo central a dualidade de onde parte todo o cinema de Oliveira: corpo e alma medem forças, a segunda (intangível) a tentar submeter as vontades do primeiro (concreto, físico) às suas. A lei de Oliveira estabelece-se algures na frente de batalha entre a inevitabilidade (a Lei) e o desejo (a infracção), mesmo nas suas explorações mais romanescas, recorrendo aos jogos de encenação.
Tragédia. Falou-se de "limpidez" a propósito de "Vou Para Casa". E, no entanto, é no teatro que o filme abre - antes disso, no genérico, há a música de realejo, evocação da infância e anúncio de picaresco. Os bastidores, primeiro: um comum porta-fatos como um manequim feminino amputado (prenúncio de tragédia?). Ouve-se em "off" os diálogos da peça - a dissociação som/imagem será recorrente e uma das múltiplas pistas para o filme -, vai-se ao encontro das palavras. Em palco, um rei "clownesco" (Michel Piccoli a fazer de Gilbert Valence a fazer de rei) à boa maneira de Ionesco (a peça é "O Rei Está a Morrer"), uma rainha (Catherine Deneuve), a filha (Leonor Silveira) e toda uma "entourage" de cínicos fatalistas. O plano é fixo, a acção longa: Oliveira exige atenção ao texto sobre um rei confrontado com a mortalidade ("Porque nasci se não era para sempre?").
A cena é apenas entrecortada por imagens de três homens - como três corvos negros - que aguardam o desfecho da peça nos bastidores, subtraindo à assistência os deveres de campo-contracampo com a representação teatral. É justamente dos bastidores que se ouve a ovação final, os três homens numa resignação silenciosa enquanto os actores saem e reaparecem no plano. São portadores de uma mensagem, na linha das tragédias gregas: anunciam a Gilbert que a sua mulher, filha e genro sofreram um acidente de carro. Que lhes é fatal, mas isso é dito por uma das actrizes da peça, enquanto Gilbert corre para o hospital - que é, também, Oliveira fugindo a qualquer tipo de comiseração.
Este último ponto é, aliás, elucidado pela elipse que dispensa o "pathos" fúnebre e introduz, de seguida, a acção "tempos mais tarde".
Divertimento burlesco. Abre-se a cortina, desta feita fora dos palcos: Gilbert observa o neto, Serge, da janela do seu quarto. Ou, a claridade depois da escuridão: é da relação com essa criança afectuosa, entregue aos cuidados do avô, que a reconciliação parece despontar. Mas Oliveira é exemplar na contenção: jamais recorre a isso como "muleta" melodramática ou corrupção sentimentalóide, antes segue Gilbert pelas ruas de Paris e pelas memórias do burlesco - veja-se a cena em que o actor abandona o café com o "Libération" na mão, para ser substituído por um leitor de "Le Figaro" que partilha a sua predilecção pela mesma mesa, dando origem a um "gag", mais tarde, com um terceiro leitor... do "Le Monde".
As digressões de Oliveira pelo cinema mudo correspondem às digressões da sua personagem pelo cenário de Paris, num movimento de fuga que é também de reencontro. A certa altura, Gilbert detém-se numa montra a observar a reprodução de uma quadro de Jack Vettiano, "Dança à Chuva". Toda a sequência é filmada de frente, do outro lado do vidro, de modo que, quando duas raparigas e a dona da loja abordam o actor para pedir autógrafos, a conversa decorre em "off", resistindo apenas o barulho da rua.
Regresso aos palcos: Gilbert é agora Próspero na efabulatória "Tempestade" de Shakespeare, sábio ancião, detentor de poderes mágicos declamando "somos feitos da mesma matéria que os sonhos". Será por isso que não resiste a comprar os "sapatos de luxo" que vislumbra numa montra - para dançar à chuva, como o par do quadro de Vettiano? Pelo menos, é isso que parece estar prestes a fazer quando, durante uma conversa com o agente (Antoine Chappey), são filmados os seus pés, Gilbert fazendo pose com o sapato. O agente propõe-lhe, justamente, voos mais altos para reforçar a popularidade do actor. Gilbert recusa: a televisão e as suas "histórias modernas de acção" não lhe interessam. Joyce sim. Aceita uma segunda proposta para trabalhar numa adaptação cinematográfica de "Ulisses" (coisa rara), realizada por um americano (afectado e melífluo John Malkovich, a par de Deneuve, uma das "participações amigáveis" no filme de Oliveira).
As filmagens começam dentro de três dias, o papel é modesto, a personagem mais nova, o inglês de Gilbert falível. Tentam uma primeira vez: Gilbert desliza, a memória falha.
Dia seguinte, mesma cena. Ou quase: a rodagem decorre fora de campo, Oliveira centra atenções no olhar de Malkovich-realizador, enquanto se ouve o diálogo em "off". Como o pequeno Serge, que todos os dias se esquece de levar o lanche para a escola, Gilbert não se lembra do seu texto. E retira-se com a sua própria deixa, que dá título ao filme: "Je rentre à la maison". Regressa a casa uma última vez, "vencido", sob o olhar melancólico e consciente do pequeno Serge.
No princípio como no fim: esta sequência é exactamente a mesma que abre o filme -o mesmo homem de costas (para a câmara), encarando a morte, o mesmo drama anunciado. A única diferença é que o "rei" que vociferava na peça de Ionesco é agora uma figura silenciosa, muda. Que é, também, o próprio gesto de Oliveira em relação ao seu cinema: quem pode mais, pode menos, todo o grito irrompe do silêncio. Onde pode nascer uma obra quase perfeita como "Vou Para Casa".