Uma alegre campanha televisiva
A produção televisiva nacional no centenário de Eça de Queirós foi brilhante e fez inteira justiça ao maior romancista português do século XIX.Na RTP1, a série "À Procura de Eça" marcou uma nova fase no real desenvolvimento da produção de teledocumentários. Foram notáveis os episódios sobre a breve passagem de Eça nos Estados Unidos e a sua longa vivência em Paris.O telefilme "A Capital!", realizado por Artur Ramos, estabeleceu um precedente para a produção histórica neste género televisivo. A entrega do elenco a uma única companhia (Cornucópia) compensou a redução das cenas exteriores com o apuro e unidade da representação.Mas, na série ficcional "Fradique Mendes", realizada por Edgar Pêra, a RTP1 excedeu-se: celebrada por toda a crítica, vendida já para canais do exigente mercado anglo-saxónico, a série é não só uma revolucionária adaptação do mais inovador texto queirosiano, como faz uma auto-reflexão sobre os próprios géneros narrativos audiovisuais e na sua relação com a escrita.Na RTP2, os teledocumentários enquadraram o escritor de forma exaustiva, completando-se mutuamente. Dos 12 apresentados, destacaram-se "Eça na Geração de 70", "O que Estava em Jogo no Casino", "Eça e Ramalho", "Os Vencidos do Ultimato", "As Cachas de Eça Jornalista", "Os Maias e as Sagas Familiares Europeias", "Eça no Divã", mas principalmente a surpresa que foi o programa sobre José Maria Eça de Queirós, o filho-revisor de Eça ("O Filho do Pai"). Destaque ainda para "Paris, Tormes", título que remeteu deliciosamente para o de "Paris, Texas". O programa conseguiu visualizar a prosa de Eça, lida por Luís Miguel Cintra, nas imagens esplendorosas dos dois lugares de "A Cidade e as Serras".O ciclo "Eça no Cinema, no Teatro e na Televisão" (duas semanas de serões na RTP2) teve um valor documental excepcional, não do ponto de vista literário, mas das artes de palco e dos ecrãs. A única mancha, mas justificável, no conjunto excepcional de produções da RTP, foi o atraso nas adaptações destinadas ao público juvenil de quatro dos contos de Eça, com estreia prometida para a época natalícia na RTP2: "O Tesouro", "Frei Genebro", "Civilização" e - para a consoada - "Suave Milagre".De ficção a SIC apresentou atempadamente a série da TV Globo baseada em "Os Maias". Na informação, Esta Semana foi original a debater o ensino de obras literárias no secundário, com uma Margarida Marante mais empenhada do que o habitual. Já o outro debate ("Só mudaram as moscas?") quase resvalou para o populismo na comparação dos políticos de agora com os do tempo de Eça. A menor atenção da SIC ao centenário foi compensada pela SIC Notícias. Cândida Pinto voltou aos cenários de guerra para uma emocionante reportagem com os jovens timorenses na escola de Baucau estudando o português através de "A Catástrofe" e Cláudia Borges foi original no seu ficheiro clínico sobre o fascínio que a obra de Eça exerceu sobre a classe médica.O melhor programa do canal foi, todavia, a produção da TV Globo sobre a contínua presença de Eça na sociedade brasileira, caso único que ficou explicado de forma divertida mas profunda. Polémico, o outro trabalho da Globo - sobre Eça e Machado de Assis - deixou por cá a impressão de que sobrevalorizava o escritor brasileiro (seria superior à sua ironia), mas as opiniões de especialistas dos dois lados do Atlântico revelaram que a equipa foi irrepreensível na pesquisa e equilíbrio. Não é de mais referir as entrevistas feitas por Maria João Avillez, Bárbara Guimarães, Baptista-Bastos e até Cáceres Monteiro à ampla comunidade queirosiana portuguesa. De Londres, João Adelino Faria enviou uma boa reportagem sobre as novas traduções de Eça para inglês e o renovado interesse pelo autor no mercado anglo-saxónico.Da TVI não se esperava muito e por isso mesmo surpreendeu positivamente uma série de apontamentos queirosianos que acrescentaram o sempre longo Jornal Nacional. No estilo ligeiro do canal, as reportagens tiveram interesse e situaram Eça na actualidade: "Hiper-Eça", sobre as vendas da obra queirosiana nas grandes superfícies; "À Mesa com Eça" acompanhava os "snobs gourmets" que, em torno do Grémio Literário, recriam para seu próprio gozo os pratos mencionados nos romances do escritor; "Eça Mutilado" procurava entender, por uma vertente freudiana simplificada, a atracção criminosa pelos dedos da fantasia de pedra que Eça segurava gostosamente no seu monumento lisboeta (entretanto substituído por outro de bronze); "E Eça, hein?" mostrava a ignorância de "conhecidos" e estrelas da TV sobre a obra queirosiana: Pedro Miguel Ramos, por exemplo, disse que o seu livro preferido de Eça era o "Amor de Perdição". Numa salutar concorrência do mercado privado de TV em torno do escritor, a SIC preferiu, como é seu hábito, o lado positivo de políticos e "conhecidos", perguntando-lhes qual o personagem de Eça com que mais se identificam. Se no caso de Odete Santos foi um pouco exagerada a leitura do ódio de classe da criada do Primo Basílio, já Agustina Bessa-Luís, ao escolher também Juliana, por ser ela a mais forte personagem de Eça, chamou a si o único astro que lhe interessava deste universo lisboeta.Foi notável o "fair play" de Jorge Sampaio e de Durão Barroso ao compararem-se ambos ao Pacheco da "Correspondência de Fradique Mendes". Manuel Maria Carrilho, com a sua cultura enciclopédica, escolheu seis personagens. De José Sócrates era óbvio que se identificasse, como identificou, com o Carlos da Maia, assim como dos políticos de centro-direita não se esperava outra coisa que não fosse compararem-se ao Zé Fernandes ou ao regenerado Fidalgo da Torre. Divertido, José Pacheco Pereira invocou Jacinto, relacionando os Campos Elísios com a burocrática Bruxelas e Tormes com a Marmeleira. A TVI voltou ainda a surpreender com a recriação tabloidesca de duas dezenas de personagens queirosianas por actores de Olhos de Água, em vinhetas incluídas no Jornal Nacional, sendo compreensível e sem motivo para o paroquial alarme gerado, o facto de Bárbara Guimarães, desligada do canal, se ter recusado a fazer de Maria Eduarda... Este excepcional conjunto de programas e apontamentos fizeram de Eça uma figura nacional para todos os que ainda não o conheciam ou liam, criando uma mitologia em torno do escritor que só Camões e Pessoa tinham até agora neste país de falsa memória. Em dia de balanço apetece escrever palavras que nunca escrevi: televisão portuguesa, parabéns!