Tem Américo Sebastião deputado? Alguém se apresenta?

O rapto e desaparecimento de um cidadão português não é uma trivialidade. Os deputados na Assembleia da República têm de ocupar-se desta questão crucial.

Trabalho há algum tempo, pelas SEDES e APDQ, para a reforma do sistema eleitoral que, respondendo a anseios da cidadania, melhore a qualidade da democracia e da representação na Assembleia da República. Essa reforma é urgente. Tarda há 21 anos, o tempo perdido desde que a Constituição abriu portas à reforma e apontou qual o caminho. Comprometido com este foco, é inevitável que olhe assim casos graves que acontecem e me deixe interpelar por eles quanto à existência ou inexistência de representação parlamentar.

O que diz a Constituição? Diz assim: “A Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses.”

Será? Vamos ver. Vamos ver se é a sério ou faz-de-conta.

Pus o pensamento em Américo Sebastião. Um caso muito triste, que se arrasta dolorosamente. Trata-se de um empresário português, raptado no Centro de Moçambique há três anos e, desde então, desaparecido. A persistência e o inconformismo da família têm sido notícia, um exemplo de humanidade e resiliência notável ao longo de anos quase solitários. A inoperância das autoridades também tem sido infelizmente notícia, por vezes misturada com mentiras ao Estado português.

Para sua vida e liberdade, Américo Sebastião precisa dos deputados de Portugal. De um ou de uma, ao menos. E a família também. Precisam, num terrível drama de vida ou de morte, de ter alguém que os represente no Estado, exerça iniciativa política, titule capacidade de influência e batalhe incansavelmente pelo esclarecimento que é indispensável: a verdade. Nos casos de risco e perigo, todos devemos ter presente que, quanto menos o Estado se chega à frente, mais a família fica exposta.

Não percebo a dúvida quanto a representar Américo Sebastião e a família. É admissível que um de nós seja raptado, com testemunhas a ver, e ninguém se interesse mais pela nossa sorte? É aceitável que, ao longo de três anos de incerteza e silêncio, nem um só deputado coloque perguntas e exerça pressão para que governo, Justiça e polícias actuem e dêem respostas?

De facto, o sistema de representação já não funciona, ao ponto de abandonar cidadãos portugueses à solidão dos seus meios diante de desafios dramáticos e de extremo perigo. Se isto não é uma ausência de Estado, já não sei o que é uma ausência de Estado.

Nas últimas eleições legislativas, havia 164.507 eleitores Fora da Europa. Destes, votaram 14.696, que elegeram dois deputados. Os votos dos registados em Moçambique estão no agregado dos países de África: votaram 666 em 9640 inscritos. Não sei se Américo Sebastião votou em Outubro de 2015, quando ainda estava livre – o rapto ocorreu em 29 de Julho de 2016. É pouco provável que tenha votado em Moçambique, fosse por ainda estar recenseado no Bombarral, sua terra natal, fosse por não ser fácil exercer o voto no interior de Sofala. Mas, votasse ou não, os seus deputados são os dois eleitos pelo círculo da emigração Fora da Europa. Devem representá-lo.

A abstenção foi elevadíssima na emigração: 88,3% no global, 91,1% Fora da Europa. Nas próximas eleições, caso se lembrem de Américo Sebastião, não podemos surpreender-nos se vier a ser ainda maior. Olhando a este caso gravíssimo, os portugueses emigrados poderão sentir isto: “Não querem saber de nós. Mesmo quando nos raptam, nem assim se interessam.”

A família Sebastião é do Bombarral, onde reside. São conhecidos, aí. O círculo de Leiria elegeu dez deputados, tendo os bombarralenses contribuído com 6538 votos. Alguns destes votos foram da família Sebastião, mas não têm deputado que os apoie e ajude. É deplorável que, em questão tão grave, façam de conta que nada sabem e não assumam a representação.

Na reforma eleitoral, metade dos deputados de Leiria seriam eleitos em círculos uninominais de peso equivalente, mantendo-se a proporcionalidade da representação política. Neste sistema, um dos dez deputados de Leiria poderia ser eleito por um círculo de proximidade, Leiria Sul, agregando os concelhos de Caldas da Rainha, Óbidos, Peniche e Bombarral. E, além da escolha deste deputado, os bombarralenses teriam ainda o peso que correspondesse à repartição global dos mandatos do círculo distrital. Esta mudança introduziria responsabilidade. A família Sebastião, em vez de andar perdida entre dez, de que nenhum se apresenta, teria um interlocutor concreto a quem dirigir-se. Esse deputado do Bombarral, motivado e comprometido, agiria para mobilizar os outros deputados, nomeadamente os dois da emigração Fora da Europa para, a nível nacional e internacional, no quadro da CPLP e noutras instâncias, fazerem o que lhes compete: lutar arduamente pela protecção de Américo Sebastião. E se não representasse bem? Na eleição seguinte, não seria reeleito. Mas isto importa menos, agora.

Na minha perspectiva, num caso destes, todos os 230 deputados – e não só os que referi – devem ser considerados deputados de Américo Sebastião. A família já visitou a Assembleia da República, creio que falando com todos os grupos. É desolador como nada é feito, nenhuma iniciativa é tomada, nada acontece. Nos debates quinzenais com o primeiro-ministro, nunca uma só pergunta foi feita sobre o caso – e deveriam sê-lo com regularidade até a verdade ser conhecida. A questão da cooperação judiciária e policial com Moçambique – que tem sido bloqueada – nunca foi examinada, quer no plano bilateral, quer no âmbito dos acordos CPLP. Não houve movimentações de diplomacia parlamentar, seja nas relações bilaterais, seja no quadro CPLP ou da UE. Nenhuma declaração política foi feita por qualquer bancada. Nenhum gesto de conforto moral e amparo político à família foi movido com solicitude. De facto, uma gravíssima ausência de Estado. Esta ausência de Estado não está no Presidente da República (que tem agido), nem tanto no governo, mas principalmente na Assembleia da República: a “assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses” não representa quem necessita e não age perante o governo e com o governo para resgate da vítima.

Em Portugal, lembraram-me no Facebook um caso assim por resolver: Maddie McCann, há 12 anos. Américo Sebastião é diferente: não desapareceu, de noite, de um quarto escuro; foi levado à vista, num posto de combustível, por homens fardados numa carrinha de marca Mahindra, de cor cinzenta, um tipo de veículo frequentemente utilizado pelas forças de segurança moçambicanas. O traço de contacto é a actuação oficial num prolongado desaparecimento. Com Maddie, multiplicaram-se as diligências de investigação, em Portugal e no estrangeiro, e as nossas autoridades fomentaram sempre aberta cooperação policial e judiciária com as autoridades britânicas. Sem problemas, nem obstáculos. Com Américo Sebastião, o Estado moçambicano pouco ou nada investiga e nada acha, ao mesmo tempo que bloqueia a cooperação policial e judiciária com Portugal. Isto, quebrando a lisura da relação Estado a Estado, é objectivamente um factor de desconfiança, a crescer. Como estariam o Reino Unido e a opinião pública britânica se as autoridades de Portugal, impotentes para saber de Maddie, impedissem a cooperação e a acção dos britânicos, escondendo-lhes o processo? Indignados! É o que se passa connosco.

O rapto e desaparecimento de um cidadão português não é uma trivialidade. Se fosse ontem, era grave. Sendo há três anos, é gravíssimo. Os deputados na Assembleia da República têm de ocupar-se desta questão crucial. É o Estado que tem o dever imperativo de agir. Este dever começa nos deputados que elegemos para nos representar.

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