Depois da agressão, todos os dias são uma incógnita

Diogo e André têm idade de andar na escola, escrever poesia, namorar, fazer karaté e jogar futebol. Uma agressão interrompeu-lhes a vida. Durante dois dias, o PÚBLICO acompanhou o seu internamento no Centro de Reabilitação do Norte.

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Paulo Pimenta

Paula não sabia ao certo o que se tinha passado com o filho, mas não lhe queria esconder nada. Tinha medo da revolta que ele podia sentir. E se fosse raiva? Como é que ele ia reagir ao saber que foi um pontapé de alguém que procurava confusão que o atirou para uma cadeira de rodas? A psicóloga a quem pedira ajuda deu-lhe luz verde: “Mãe, diga-lhe. Não deixe que ele lhe pergunte.” Então Paula levou o filho à beira-mar: “Estavas no sítio errado, à hora errada.”

Chama-se Diogo o filho de Paula. Pouco lhe falta para fazer 16 anos. Escreve poemas para músicas rap, desenha, fazia karaté, mas “o que mais gostava antes era a musculação”. Estava “louco” para chegar aos 16 anos e poder trocar os treinos improvisados em casa pelo ginásio. Ninguém o diria do miúdo tímido, de humor mordaz, que atira umas quantas piadas sobre o ombro enquanto a mãe lhe empurra a cadeira pelos corredores brancos e cinza do centro de reabilitação.

Diogo e a mãe levam quatro meses entre paredes de hospital. Ela fala sempre nas datas certas, 13 de Novembro: o dia em que Diogo estava no jardim em frente à escola, durante o intervalo das aulas, e foi agredido ao pontapé. Caiu, bateu com a cabeça e sofreu um traumatismo cranioencefálico. Os pais foram preparados para as mínimas hipóteses de sobrevivência. Na melhor das probabilidades levariam para casa o filho com profundas deficiências cognitivas e motoras.

Durante 30 dias, Diogo esteve em coma induzido nos cuidados intensivos do Hospital de São João, no Porto. Paula não teve descanso. Parecia que tinha no corpo as dores do filho. Os medos, um novo atrás de cada conquista, colavam-lhe o estômago às costas. “Queria respirar por ele e não podia.” Só à terceira tentativa de retirar a ventilação é que Diogo começou a respirar sozinho. Uma infecção respiratória foi um novo revés.

Ao 35.º dia, em isolamento, Diogo desceu para os pré-fabricados da pediatria. A 9 de Janeiro foi admitido no internamento do Centro de Reabilitação do Norte (CRN).

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Ele pouco se recorda. Lembra-se da lenta recuperação da consciência, de reconhecer a mãe para comoção da equipa de cuidados intensivos, de ela lhe ter lido ao ouvido um poema que ele escrevera antes de tudo isto – “(...) Todo o homem erra / Todo o homem falha / Vales mais do que o ouro / Não te troco por nada (...)”. Depois concentrou-se na recuperação: no lado esquerdo do corpo que não respondia, na falta de equilíbrio e numa rotina nova de fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional. Como a mãe, não tenta compreender, para já, o que não pode mudar.

“Ainda não consegui sentir raiva”, diz Paula, sentada na ponta da cama. “Focar-me nisso não vai fazer com que o meu filho volte atrás. Só quero justiça para que não volte a acontecer com mais nenhum.” Os olhos azuis, como a camisola que tem vestida, pousam de outro lado do quarto, na direcção da enorme janela.

- Mãe, não é bom sentir ódio. Tu foste uma grande pessoa.

- E tu ultrapassaste um caso muito grave. És um herói.

Corredores

Paula e Diogo são unha com carne. O riso deles ouve-se na outra ponta dos corredores largos, paredes com textura de tecido, do andar do internamento da pediatria – a unidade com dez camas e terapias de ambulatório começou a funcionar em Outubro de 2014, cerca de um ano depois da abertura do CRN, um investimento público inicialmente gerido pela Santa Casa da Misericórdia do Porto e, desde Novembro, integrado no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho.

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Mãe e filho vivem aqui desde que ele foi internado – ela poupa-se às viagens diárias que fez durante mais de um mês entre Paredes e o Porto, na altura em que às 7h da manhã estava à porta do São João. “Aqui temos o nosso quarto, com as nossas coisinhas.” Têm uma rotina: terapias às 9h30 ou 10h; um intervalo para lanchar; novas terapias às 11h; almoço. E de tarde novamente. Corredor para a frente, corredor para trás. Ao fim-de-semana vão a casa.

É aí que Diogo vê o pai, que trabalha fora. Foi chamado há um mês para a empresa de trabalho temporário com que costumava trabalhar e é daí que vem o rendimento da família de quatro​. Paula começara a trabalhar dois meses antes da agressão, estava o marido no fundo de desemprego. Até aí o acompanhamento do filho às terapias da Síndrome de Asperger, perturbação no extremo mais ligeiro do espectro do autismo, privaram-na de um emprego certo. Fazia uns biscates de costura. Não descontava há quase uma década. “Eu queria era acompanhar o meu filho para que ele recuperasse o máximo.” No ano passado, viu-o “finalmente bem” – integrado na nova escola, apoiado pelos amigos, que, como ele, aproveitavam a folga do bullying de escolas anteriores – e procurou ter um salário mais composto. Teve que abandonar tudo em Novembro.

Paula foi buscar esperança não sabe bem onde. Quando o Diogo estava no hospital, carregava o peso de si própria e tentava levantar o marido que virara o mundo em revolta. “Ele não se conseguia agarrar a força nenhuma. É muito difícil passar por isto – uma semana, duas, três em que nos diziam sempre: não esperem melhorias. Quando ele melhora um bocadinho, queremos sempre mais.” A filha mais velha, de 18 anos, estudante de Medicina, é “a rocha da família”.

André e os pais, Ana Maria e Marcos, fazem parte da outra família que se formou nos últimos dois meses. “Tantos dias aqui seguidos, 24 horas, ganha-se uma ligação forte.” À porta das salas da terapia da fala, numa quinta-feira de manhã do mês de Fevereiro, as mães, por cima das cabeças dos filhos, trocam dicas para lhes atenuar a acne. À tarde Paula há-de pegar no casaco de Ana Maria para lhe coser o forro. E ajudar a passar o tempo.

Outro recomeço

A família de Oliveira de Azeméis voltou da Suíça ainda não fez um ano. O desafogo financeiro de mais uma década de emigração permitiu, por fim, o regresso que a saudade já reclamava. André estava a adaptar-se ao país que deixou com quatro anos. Voltou a jogar futebol, fez novos amigos, começou a namorar. Falava em seguir, talvez, Gestão ou Economia daqui a dois anos na faculdade. E o pai “era duro” para que decidisse que rumo dar à vida. Ele trocara o desgaste da restauração pelo trabalho em casa, com calçado, onde Ana Maria ajudava quando a lide doméstica e os filhos (o mais novo tem dez anos) lhe davam folga.

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Num telefonema o mundo caiu-lhes em cima. André tinha sido agredido por um colega em frente à escola, não eram 8h30 da manhã de dia 30 de Novembro. Quando os pais chegaram ninguém tinha ideia de que o miúdo de 17 anos, deitado na ambulância dos bombeiros, tinha tido um acidente vascular cerebral (AVC) e células cerebrais privadas de oxigénio. Passou um mês em coma. E a mãe ouvia nos corredores quem reproduzisse o seu estado acataléptico: “Aquela mulher não acredita como é que o filho está.” Passaram-se semanas sem uma boa notícia.

“Quando acordou, o André era como uma criança”, conta o pai. Do Hospital Eduardo Santos Silva, em Gaia, foi referenciado para o internamento de reabilitação intensiva no CRN. Tem hemiparesia do lado direito, uma anomalia do campo visual periférico, a capacidade de comunicação e processamento comprometidas. Na fisioterapia tenta voltar a ligar os músculos uns aos outros, recordar os movimentos implicados na marcha, ganhar consciência do lugar e das funções do seu corpo. O facto de já conseguir comer, dar uns passos, compreender é a força dos pais.

Esforçam-se para evitar a frustração. “É preciso estarmos sempre aqui a puxar por eles”, acredita Marcos. “Há miúdos que se acomodam e isto passa de doença a rotina. Sem ninguém o percurso é mais difícil.”

Marcos ficava quase sempre com o filho no centro para que Ana Maria pudesse manter o mais normal possível a vida do mais novo. Este mês de Março, vão passá-lo em casa – é a pausa terapêutica para que André “se volte a lembrar do mundo real”, recarregue baterias. E é bom para os pais. Neste momento, nenhum deles tem cabeça para voltar ao trabalho, menos ainda tendo que recuperar dos clientes perdidos. “Este momento é outro recomeço da nossa vida. Ninguém sabe o que poderá ser.”

Grupo de pais

Os pais de André e de Diogo viram-nos superar os piores cenários que qualquer médico lhes dera. Mas o dia seguinte continua a ser uma incógnita. Como resultado de um traumatismo cranio encefálico (TCE), como de um AVC, há mazelas expectáveis: alterações neuromotoras, como quadros de perda parcial de funções nos membros inferiores e superiores (tetraparésia) ou de um hemisfério do corpo (hemiparesia esquerda ou direita); mudanças cognitivas, comportamentais e emocionais, da capacidade de comunicação, compreensão e fala. As disfagias, que se repercutem na dificuldade em engolir e na necessidade de dietas adaptadas, alterações no sistema digestivo e urinário também são comuns. Para cada uma destas questões há terapias direccionadas. Mas, para a maioria, só o tempo dirá quais serão permanentes.

“Nos AVC, há alguns marcos de evolução pelos quais nos podemos guiar, nomeadamente na recuperação motora”, explica Gustavo Silva Beça, fisiatra e coordenador da unidade pediátrica. “Os TCE têm um potencial de recuperação muito mais longo. Mas, para o bem e para o mal, é sempre uma incógnita.”

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As expectativas são sempre geridas por baixo. E é preciso trabalhá-las com doentes e cuidadores. “Se perguntar a um pai o que espera do internamento a resposta é quase sempre: ‘Quero que o meu filho fique bem.’ E ficar bem significa andar e falar”, observa a psicóloga Ana Rita Pacheco. “Os objectivos deles vão-se reestruturando, às vezes demasiado rápido e de forma demasiado ambiciosa.” Podem ser desfasados do prognóstico mais provável, porque “os pais ouvem o que querem ouvir”, e prejudicar os filhos. “Eles sentem a nossa pressa.”

A psicóloga procura que se valorizem as pequenas conquistas. “Sobreviveu, respira sozinho, alimenta-se, dorme. É preciso ter consciência de que nem sempre há progressão.”

É para discutir estas questões que criou o grupo de pais, que, até ao final de Fevereiro, reunia duas vezes por semana. “É o momento de catarse e, ao mesmo tempo, uma rede informal de apoio”, diz a psicóloga. Fala-se da importância do autocuidado, do regresso à vida activa, à escola, da gestão do tempo, do luto. “Não é fácil cuidar de um filho doente sem que isso tenha impacto emocional (o burnout, as depressões, as ansiedades). O grupo permite-nos também estar atentos.”

Numa das sessões, o fisioterapeuta Fábio Ferreira vem desfazer alguns preconceitos que são motivo de ansiedade para os pais. Os tempos de intervenção, por exemplo. “Não é o facto de trabalharmos mais tempo que dará mais ou melhores resultados. O tempo de repouso o desligar do ambiente de terapia, é muito importante.” Se querem ser exigentes, diz-lhes, sejam com a qualidade dos movimentos, com a postura – a distribuição simétrica do peso do corpo quando estão sentados, o alinhamento e retroversão das ancas, o relembrar do membro perdido. “Quando tentamos apressar, levamo-los a repetir erros. Só podemos começar a andar, quando todos os pormenores estiverem corrigidos. É como fazer uma casa: começamos pelos alicerces, nunca pelo telhado.” Fábio ensina aos pais várias estratégias para a adaptação à vida independente, depois do internamento.

Em casa, a exigência, o esforço e o cansaço é maior. Não há folga e estes pais tornam-se cuidadores. “Passam de um estado de protecção, de intervenção especializada, para uma terapia menos intensiva e isso assusta. Mas na maior parte das vezes, não é prejudicial. A quantidade não é sinónimo de qualidade”, sublinha Gustavo Silva Beça.

A escola não parou

Muitas das crianças e jovens que passam pelo CRN têm lesões encefálicas adquiridas – outras têm lesões medulares, paralisias cerebrais, síndromes genéticas e doenças desmielinizantes e auto-imunes. A maioria beneficia em fazer todas as terapias e tem apoio neuropsicológico. Tratam-se os défices cognitivos, consequência da lesão, e os impactos emocionais da nova condição. Há um processo de luto a fazer. “Procuramos facilitar a compreensão e consciência dos défices, gerir as expectativas, gerir o nível de colaboração nas terapias e enquadrar tudo isto emocionalmente para que não tenha um impacto negativo no futuro”, sublinha Ana Rita Pacheco. Se é possível falar abertamente sobre as emoções com adolescentes, com as crianças passa pela brincadeira, “pelas histórias e jogos simbólicos sobre, por exemplo, a perda e as diferenças em relação aos outros meninos”.

A articulação com a escola deve acompanhar todo o processo. “O regresso pode ser difícil, especialmente quando o nosso corpo de alguma forma, por lesão ou por doença, mudou. A escola, nesse período, não parou”, enquadra a psicóloga. Os terapeutas transmitem – e há escolas e creches que pedem ajuda – o que é preciso ter em atenção em contexto de sala, de teste, como o comportamento do aluno que conheciam pode não ser o mesmo. A análise moral pode ser alterada.

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Ana Rita Pacheco lembra-se de um rapaz que, em virtude das alterações comportamentais provocadas por uma lesão, intervém de forma violenta quando considera algo injusto, mesmo que o conflito seja entre dois colegas que ele não conhece. “A escola acha que ele faz de propósito e que usa a doença para ser mauzinho. Então tem que se fazer um trabalho de consciencialização e transmissão de estratégias. E puxamos muito pela colaboração dos pais, que são quem vai comandar o barco lá fora.”

Diogo recebeu fichas e livros para acompanhar, o quanto possível, a matéria que os colegas estão a ver nas aulas. Mas a vontade dele não é, para já, sair deste microcosmos de terapeutas, médicos, enfermeiros e auxiliares. “Eu preferia estar aqui até ao fim, até recuperar. E depois mostrar como são estas pessoas aqui, que sorriem e brincam. É uma coisa que as pessoas lá foram não compreendem. Nós também não compreendíamos.”

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