A menina que não queria sair do baloiço

Egocêntrica e omnipotente, essa menina não vai aprender a lidar com a frustração, a ultrapassar as dificuldades, a respeitar os outros e a interagir com os seus pares.

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"Esta menina vai crescer com uma altivez autocentrada e uma indiferença soberana perante o mundo que a rodeia" Skitterphoto/pexels
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Há muito, muito pouco tempo, num reino muito perto de nós, havia uma menina que não queria sair do baloiço. Essa menina estava há muito, muito tempo no baloiço, num parque infantil público, demonstrando uma indiferença soberana perante a fila de crianças que aguardavam a sua vez. Por seu lado, a mãe dessa menina legitimava a indiferença soberana da sua filha com uma atitude de cegueira seletiva perante a fila que se formava junto ao baloiço.

Cansada de tanto esperar, a mãe de uma menina que estava na fila solicitou à mãe da menina que ocupava o baloiço que desse a vez a outra criança, uma vez que já estava há muito tempo a aguardar. A situação já não estaria muito certa se a mãe, recuperando momentaneamente da sua cegueira seletiva, dissesse à filha para sair do baloiço, porque, na verdade, deveria ter tomado essa iniciativa sem que tivesse de lhe ser chamada a atenção.

Mas a resposta da mãe da menina do baloiço é que deixou a mãe da menina que esperava pela sua vez perplexa. O que a primeira mãe disse foi literalmente que a sua filha iria andar no baloiço durante o tempo que quisesse, porque, se a tirasse do baloiço, ela iria chorar. A segunda mãe retorquiu que, nesse caso, era a sua filha, por sinal mais pequenina, que iria chorar, porque estava a ser privada de andar de baloiço.

A primeira mãe não se deixou impressionar. Respondeu à segunda que se a sua filha chorasse era problema dela, porque em sua casa a menina do baloiço nunca chorava. Perante esta afirmação no mínimo pouco empática, a segunda mãe recordou à primeira que não estava em sua casa, mas sim num espaço público e que, num espaço público, todos têm direito de andar de baloiço.

Passando da atitude de cegueira seletiva, a primeira mãe assumiu a postura de surdez seletiva e, literalmente, fez ouvidos moucos às vozes que se insurgiam perante a legitimação da indiferença soberana demonstrada pela menina do baloiço. Confrontada pela cegueira e surdez reiterada demonstrada pela primeira mãe, a segunda solicitou-lhe, com firmeza, a cedência do baloiço.

Contrariada, a primeira mãe começou a trocar umas palavras em voz baixa com a sua filha… Mas o certo é que nada acontecia. A menina continuava a baloiçar-se tranquilamente, de cá para lá e de lá para cá, reforçando a sua inabalável indiferença soberana, desta feita também para com as palavras da sua mãe. Já enervada, a segunda mãe voltou a pressionar a primeira para que a filha saísse do baloiço. A resposta dada pela primeira mãe foi altamente interpelante: “Não vê que eu estou a tentar, mas não consigo?”

Não sei como acabou esta história, mas não preciso de saber mais para me sentir extremamente inquieta. E aquilo que me preocupa não é tanto a menina que esperava para andar de baloiço. Embora seja triste que essa aprendizagem seja realizada em idade tão precoce, a menina que aguardava a sua vez ficou a saber que o mundo nem sempre é um lugar justo. Mas observou a sua mãe a defender valores essenciais, como o respeito pelo próximo, a partilha com os outros e a universalidade da justiça.

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Já da menina que não cedia a vez no baloiço tenho muita pena. Esta menina vai crescer com uma altivez autocentrada e uma indiferença soberana perante o mundo que a rodeia, legitimada pela sua mãe que, pelos vistos, nem autoridade tem sobre a filha para a convencer a sair do baloiço. Egocêntrica e omnipotente, essa menina não vai aprender a lidar com a frustração, a ultrapassar as dificuldades, a respeitar os outros e a interagir com os seus pares.

Mas sobre estas questões do egocentrismo e da omnipotência infantil, induzidos por determinados estilos (des)educativos, já escrevi diversas vezes. Neste artigo, a minha preocupação está direcionada para o futuro. Primeiro, interrogo-me como será a menina do baloiço quando chegar à idade adulta. Segundo, quando me apercebo de que histórias como esta não constituem casos isolados, a minha apreensão torna-se mais abrangente: que sociedade estamos a criar, povoada por crianças que, na devida altura, não aprenderam a dar a vez no baloiço?

No mesmo dia em que me contaram a história da menina do baloiço, relataram-me o episódio de uma estagiária que enviou um currículo para a direção de uma empresa, com o objetivo de se candidatar a uma vaga profissional. Contactada telefonicamente — uma vez que não tinha dado resposta ao email a solicitar marcação da entrevista —, esclareceu que não tinha respondido porque não tinha tido tempo, e contrapôs, de forma pouco amável e flexível, as duas únicas alturas em que estava disponível para ser entrevistada.

Parece que estas duas histórias, aparentemente, não têm nada a ver uma com a outra. Mas tenho fortes suspeitas de que estejam intimamente relacionadas. Estou em crer que esta estagiária que ora se candidata a um emprego, impondo previamente tais condições, outrora deve ter sido uma menina que não saiu do baloiço. O resultado está à vista. E está longe de ser auspicioso.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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