Por trás da porta amarela, há um homem com problemas psicológicos

O homem da casa deixou de ser quem era. Perdeu a mulher, perdeu os filhos, terá perdido os pais. Os psiquiatras não têm dúvidas de que tem de receber ajuda. Mas dita a lei que só com o seu próprio consentimento pode ser internado. Para melhorar, terá de piorar muito.

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Sarah L. Voisin/The Washington Post

Ninguém sabe o que ele está a fazer. Ninguém sabe em que é que pensa, o que come ou como sobrevive. Em dois anos, desde que a sua mulher em pânico levou os dois filhos e o deixou ali sozinho, nunca falou com ninguém mais do que alguns minutos. Não deixou ninguém passar da porta, que fortificou com uma nova fechadura, um bocado de plástico a tapar o vidro e contraplacado por baixo, que pintou de um amarelo quase fluorescente. Tem sempre as cortinas da sala corridas.

O homem da casa — que tem 42 anos, já chegou a ganhar um salário de seis dígitos trabalhando para o Capitol Hill e era um marido e pai dedicado — diz aos pais que não está doente. Tanto quanto sabem, deixou de tomar os medicamentos psiquiátricos que lhe foram receitados depois de ter contado à polícia que Deus falava através do seu filho de três anos. Abandonou o emprego e deixou de pagar as contas. A família não sabe o que fazer.

A mãe deixa-lhe sacos de compras à porta de casa. A ex-mulher envia-lhe sms e as suas respostas são cada vez mais preocupantes, como quando se refere aos filhos como os seus Sóis [em inglês, sons, filhos, tem o mesmo som que suns, sóis]. O pai deixa-lhe sempre uma versão da mesma mensagem telefónica — “Olá, fala o pai. Avisa-me quando quiseres sair e falar. Amamos-te. Preocupamo-nos contigo” — à qual ele nunca responde.

Antigamente, o homem da família teria lidado com uma situação destas internando-o compulsivamente numa instituição psiquiátrica. Durante décadas, era uma coisa rotineira e simples: se um médico concordasse que o paciente sofria de um distúrbio mental, ele poderia ser internado mesmo contra a sua vontade.

O problema é que esta era uma prática com poucas garantias de segurança e, durante uma grande parte do século XX, todo o tipo de pessoas desenquadradas — desde mulheres que pensavam pela sua cabeça até homossexuais, minorias e crianças rebeldes — acabavam fechadas em hospitais onde os abusos eram frequentes e as condições frequentemente precárias.

Por isso, o sistema mudou. Um dos catalisadores foi a decisão do Supremo Tribunal americano de 1975, que restringiu o internamento compulsivo às situações em que a pessoa se tornara “um perigo para si própria ou para outras”, uma frase que agora aparece de uma forma ou de outra nas leis estaduais por todo o país. [A lei portuguesa, por exemplo, determina que o internamento compulsivo é possível só nos casos de um “portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial”.]

Mas 40 anos depois de essa prática ser instituída, há quem questione se as preocupações da sociedade pelos direitos constitucionais das pessoas com doenças mentais não terão levado ao seu abandono. Num momento em que um quarto da população sem-abrigo sofre de graves doenças mentais, quando o número de prisioneiros com doenças mentais é mais alto que nunca e quando os massacres são frequentemente seguidos de histórias de que o atirador ouvia vozes, há pessoas que começam a fazer perguntas, incluindo os familiares do homem da casa. As suas preocupações aumentam a cada dia que passa. Uma vez que ele não acha que está doente, o tratamento voluntário não é uma opção. A não ser que ele ameace ferir-se, ou ferir outra pessoa, ou que esteja de tal forma doente que não consiga manter-se vivo, não pode ser considerado perigoso, particularmente em Maryland, onde as leis de internamento são das mais apertadas do país.

Pegar nos filhos e ir embora

Apesar de haver dias em que ele se veste de amarelo-vivo dos pés à cabeça, ou todo de branco, incluindo sandálias que pintou com um spray, parece bem arranjado e saudável, por isso é pouco provável que encaixe em qualquer definição legal de perigo.

Ao 730.º dia sozinho em casa, continuava a aparar a relva do quintal. As poucas vezes que abria a porta amarela para recolher mercearias ou dinheiro da sua mãe preocupada, aquilo que ela conseguia ver da sala parecia limpo e vazio — as fotos de família tinham sido tiradas das paredes.

A ex-mulher — que por razões de privacidade é identificada apenas pelo seu primeiro nome, Jennifer — recorda a última vez que esteve na casa, antes de partir. A mobília estava arranjada e limpa. Os aparelhos eléctricos, TV e computadores, a trabalhar. Os quartos dos rapazes estavam com as camas feitas e a cozinha cheia de comida para uma família de cinco.
Esse foi o dia em que decidiu que o comportamento do marido se tinha tornado tão assustador que ela não tinha outro remédio senão pegar nos filhos e ir-se embora. E agora, 755 dias depois, Jennifer está numa cidade de New England, onde vive, observando à distância os rapazes a falar com o pai por Skype.

Ele senta-se numa cadeira, que ela reconhece, dizendo “meus filhos, meus filhos”, enquanto os rapazes brincam à frente do ecrã de computador. Tem a cabeça inclinada para o lado, meio sorriso na cara. Está mais magro, pensa ela. Noutro dia, ele mandou-lhe uma mensagem escrita. “Sol skyp”, escreve. Manda-lhe um símbolo de uma bola amarela. Ela desejaria que o ex-marido, que ainda ama, pudesse ser internado compulsivamente num hospital psiquiátrico até que os médicos conseguissem perceber o que se passa, até que os medicamentos tivessem efeito e que ele pudesse voltar a ser a pessoa com quem ela se casou.

Mas, uma vez que ela não pode interná-lo, faz a única coisa que acha possível. Seguindo o que ficou estabelecido pelo acordo de divórcio, está a vender a casa, esperando que isso leve o ex-marido para um cenário suficientemente desesperado que o faça encaixar numa situação de internamento compulsivo. Apercebeu-se de que, para que ele melhore, ela e a família dele têm de o deixar piorar. “Ele ficará sem casa...”, diz. “E temos simplesmente de deixar que isso aconteça.”

Há três anos que ela o tem visto a deteriorar-se, num processo que acha que começou na noite em que ele se recusou a partilhar um copo de vinho — um ritual deles desde que tinham comprado a casa e começado a vida juntos. Em vez disso, ele quis ir para o computador. Começou a visitar sites sobre teorias da conspiração. Começou a dizer que ia para a prisão e a tirar as baterias dos telemóveis. Jennifer disse a si própria que ele andava stressado e tentou que fosse a um psicólogo, mas ele não quis.

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Michele McDonald/The Washington Post

Até que um dia chegou uma encomenda e ele disse-lhe que levasse os miúdos lá para fora. Ela ficou a vê-lo colocar uma máscara de gás e a usar ferramentas compridas para abrir o pacote, que tinha um rádio desmontado que ele encomendara.

Ele construiu uma cruz de 2,5 metros e espetou-a numa árvore no quintal da frente. Começou a vestir-se só de amarelo ou só de branco. Quando visitavam um familiar que tinha uma arma com cinco balas exposta na parede, dizia que as balas eram o sinal de que a sua família, de cinco membros, ia ser morta. Jennifer não parava de o tentar convencer a ir a um psicólogo, mas não havia mais nada que pudesse fazer para que ele recebesse tratamento, até ao dia em que ele desapareceu com os rapazes.

Nesse dia, Jennifer chamou a polícia, que o localizou em Atlanta, e a quem ele disse que ele e os filhos iam ser mortos e que um bando de pássaros o mandou levar os rapazes para sul. Ela e o sogro arranjaram uma equipa de crise móvel — trabalhadores de saúde mental e polícias treinados para situações destas — para que os levassem para Maryland, e, ainda que ele continuasse a recusar-se a ir ao médico, a polícia poderia invocar o princípio do “perigo para si próprio ou outros” devido à viagem errática, as suas ilusões de que ia ser morto e a uma pequena faca encontrada na sua posse.
Foi a vez em que ele se encaixou no quadro do tratamento compulsivo. Foi levado para as urgências algemado, até que entraram em cena uma série de regulamentações em defesa dos seus direitos civis. Um médico tinha seis horas para garantir que ele era perigoso. Em 30 horas, tinha de se arranjar uma cama num hospital psiquiátrico ou então libertá-lo.
Uma vez admitido, foi-lhe nomeado um advogado e foi marcada uma audiência com um juiz que iria decidir se ele era ainda suficientemente perigoso que tivesse de ficar hospitalizado. E mesmo nessa altura ele teria de aceitar ser medicado.

À espera que fique pior

Ao fim de algum tempo os médicos acharam que estava melhor. Ele admitiu “erros de avaliação”, de acordo com os seus registos clínicos, e admitiu que os seus pensamentos sobre a família ser morta não se “baseavam na realidade”. Vinte e quatro dias depois, os médicos concluíram que “já não era suicida ou homicida”. Já não correspondia ao critério de internamento compulsivo e por isso foi libertado.

De volta a casa, deixou a medicação. Tornou-se zangado e ausente, amaldiçoando a mulher e a família por o terem internado. Depois, mandou a Jennifer um email referindo-se a ela na terceira pessoa — “Ela farta-se de mentir”, começava assim — o que, segundo disse um psicólogo, era sinal do pensamento dissociativo que antecede um potencial surto de psicopatia. Jennifer foi-se embora.

Ele seguiu-a. Foi bater à porta dos pais dela a meio da noite. Ela chamou a polícia, que verificou que ele estava a violar uma ordem de protecção que ela tinha obtido e prendeu-o — o que para Jennifer foi a sua última hipótese de ele receber ajuda.

Ela afirma que durante a sessão de tribunal implorou ao juiz que ordenasse um tratamento psicológico, mas uma avaliação psiquiátrica concluiu que ele tinha apenas delírios e que não era perigoso, o que limitava aquilo que o juiz poderia fazer. Foi libertado ao fim de quatro dias. Voltou para casa e pintou a porta de amarelo.

Jennifer preencheu os papéis do divórcio em New England, onde o juiz do caso ordenou ao marido que fosse novamente alvo de uma avaliação psiquiátrica, depois de este ter tentado representar-se a si próprio. Dessa vez, foi detectada a presença de perturbação esquizoafectiva [com alterações de humor conjugadas com sintomas de fase activa da esquizofrenia e ideias delirantes ou alucinações], levando o juiz a declará-lo incapaz e a nomear dois conselheiros legais.
Jennifer achou que a decisão poderia levar a mais um internamento forçado, mas um amigo dela que é juiz em Maryland avisou-a de que não seria o suficiente. “Toda a gente diz que ele se pode tornar perigoso”, afirma ela. “Mas não que ele é perigoso.”

Ela apercebeu-se de que não bastou o juiz do divórcio ter decidido “por provas claras e convincentes” que o seu marido “sofre de uma profunda doença mental que o torna incapaz de tomar conta dos filhos ou de passar tempo com eles a não ser numa situação vigiada”. Não bastou ela ter notificado a escola dos rapazes de que tinha de chamar a polícia caso ele aparecesse. Ou que ela sonhe que ele a mate — o que a faz estremecer porque ele nunca foi violento, mas continua a ser um receio suficientemente visceral para a deixar sobressaltada ao ver um SUV preto a entrar numa bomba de gasolina no lado oposto ao escritório, como aconteceu um dia. “É igualzinho ao dele”, disse ela a olhar de esguelha para o carro. Quando vê um sem-abrigo a passar pelo escritório, pensa que poderia ser também o seu ex-marido e às vezes chora só de o ver.

Mas nada disto foi suficiente, por isso ela está à espera de que ele fique pior, para que se torne perigoso, para que receba alguma ajuda. Ela imagina o que pode acontecer. “Talvez se ele parasse de comer e desmaiasse — essa seria a solução ideal”, diz ela. “Talvez se ele roubasse comida e fosse apanhado e estivesse de tal forma confuso que a polícia reparasse.” “Ou que ele se tentasse matar e não conseguisse”, continua. “Oh, meu Deus”, diz, apercebendo-se de quão terrível isso pode soar.

Tem de parar tudo, não foi isso que disse o médico?

Ao 768.º dia, a mãe do homem da casa, Kay, conduz até lá para visitar o seu único filho. Ela tem-se mantido em contacto com um psiquiatra que uma vez o avaliou e que lhe dá conselhos sobre o que fazer, e uma das coisas que ultimamente ele lhe tem dito é que deixe de lá ir sozinha. Mas ela vai.

Também ela desejaria que o filho fosse internado numa instituição psiquiátrica de algum tipo, mas uma vez que isso não é possível envia-lhe mensagens a avisá-lo de que vai lá entregar-lhe comida. “Ino.I”, escreve ele de volta. Outra das coisas que o psiquiatra diz a Kay é que ela tem de deixar de lhe levar comida, deixar de lhe pagar o carro e tirar-lhe o seu cartão de crédito. Diz-lhe que ela está a permitir o comportamento delirante do filho e que qualquer apoio deveria vir com a condição de ele ir ao médico. Caso contrário, afirma o psiquiatra, ela deveria cortar e deixá-lo piorar.
Outras vezes ele escreve “I no I”.

Ela decide não ir lá a casa. Em vez disso, telefona à filha, que é irmã do homem da casa, e ao fim de alguns dias discutem o que fazer. “Tem de parar tudo, não foi isso que disse o médico?”, diz a filha suavemente. “Sim”, responde a mãe.
Parece pálida. Tem emagrecido. “A ideia dele é que ele não terá qualquer incentivo em falar connosco enquanto for sustentado”, diz a filha. “O meu medo é que o estejamos a encurralar e que ele se sinta desesperado”, responde a mãe. Depois, lembra-se do que afirmou o médico sobre isso. “Ele disse: ‘Não sabe isso porque nunca tentou’.”

Kay tem 66 anos e adiou indefinidamente a sua reforma porque não sabe até quando tem de sustentar o filho. “Eu acho que deveríamos usar isso para negociar com ele”, diz a filha. “Dizemos-lhe que a nossa ajuda dependerá de ele ir ao médico.” “Talvez”, responde a mãe. “Acho que seria mais fácil se o víssemos”, adianta a filha.

A última vez que a mãe o viu foi há várias semanas, quando lhe levou comida e ele veio cá fora. Era de noite, e não a deixou entrar, por isso sentaram-se na varanda. Ela tentou falar-lhe, mas para ele todas as palavras dela tinham duplo significado. Quando ela disse “olá” [hi], ele respondeu “não estou pedrado” [high]. Quando ela lhe disse que não era isso que ela queria dizer, ele ripostou: “Achas que sou estúpido?”

Ela disse-lhe que ela e o pai — divorciaram-se quando ele era adolescente — eram maus pais. Ele pareceu-lhe zangado, depois perdido, e depois quase lúcido. Olhou para o céu e disse: “Não gostavas que pudéssemos ser simplesmente uma família outra vez?” Falava em ser “livre”. Disse que a família estava a tentar matá-lo.

O psiquiatra disse a Kay para não interpretar essa conversa como algo contra ela. É a doença. Mas ela acha sempre que há alguma verdade no que o filho diz, por muito confuso que pareça. E uma das coisas que ele lhe disse é que nunca mais voltará a um hospital. Ela acha que ele preferia morrer.

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Durante o seu tratamento compulsivo, visitou-o praticamente todos os 24 dias. Ainda lamenta a forma como aconteceu, as algemas no meio da rua. Lamenta ele ter estado numa ala fechado com pacientes que ela achava que eram sem-abrigo e um homem mais velho que um dia andava para ali nu, o que seguramente tinha constrangido o filho. Ela temeu que ele se sentisse diminuído. Prometeu-lhe nessa altura que nunca faria nada que o pudesse levar para ali novamente. Só agora, quase três anos depois, ela sabe que ele precisa de ajuda e que cortar o seu apoio financeiro poderá ser a única forma de atingir esse fim. “Eu, pessoalmente, se visse o quão mal ele estava, seria mais fácil ser firme, saber que o que estamos a fazer é para seu próprio bem”, diz a filha. “Sinto que ele está próximo das fases finais e só vamos fazê-lo sofrer por um período curto, é mais fácil. Se ele não estiver próximo do fim, e se o vamos fazer sofrer durante mais tempo, será pior.” “Quando dizes ‘perto do fim’, queres dizer perto do ponto em que — ?”, pergunta a mãe. “Em que ele está próximo do seu ponto mais baixo”, é tudo o que responde a filha, tentando não perturbar muito a mãe. “Simplesmente cortamos e obrigamo-lo a chegar a esse ponto mais depressa.”

Elas continuavam a conversar, a mãe inquieta, a filha a incentivá-la carinhosamente, resolvendo que lhe vão dizer que não haverá mais dinheiro sem cooperação. É o que a mãe faz alguns dias depois. E deixa-lhe 100 dólares pelo seu aniversário e 200 pelo Natal e mais sacos de compras na varanda, até o filho lhe dizer que se ela voltar ele arranjará uma ordem de restrição. Dias depois, ele manda-lhe uma mensagem. “IIIIIIIIII.”

Olá, é o pai, estou aqui fora

Passados nove dias, ao 802.º dia, o seu pai, Charles, de 69 anos, passa por lá. Como toda a gente, está preocupado. É quinta-feira à noite. Fica surpreendido por o ver fora de casa e dentro do carro, estacionado à entrada do bairro. Parece estar a montar um aparelho de GPS.

Charles buzina, estaciona e dirige-se até ele. Bate na janela, e quando ele a desce, vê o filho pela primeira vez em muitos meses, meses em que se sentava à porta da sua casa, à espera de que ele viesse cá fora, deixando-lhe mensagens — “Olá, é o pai, estou aqui fora.”

Está magro, pensa o pai, mas aprumado e limpo. Há pilhas de cobertores no banco traseiro do carro e em cima do tejadilho há uma caixa de madeira. Charles pergunta ao filho como tem passado e o filho limita-se a olhar fixamente. Charles diz-lhe que precisam de falar sobre uma alternativa de vida porque estão a vender a casa e conta-lhe os seus próprios problemas de saúde. Diz-lhe que não vai andar por ali para sempre. “Todos nos preocupamos. Eu preocupo-me. Estou sempre a pensar em ti”, recorda-se Charles de lhe ter dito. Tal como se recorda da resposta do filho. “Não quero saber”, diz-lhe, e ameaça chamar a polícia se o pai não se for embora. Diz não ter medo da polícia e arranca.

E agora Charles desce a encosta até à casa do filho, para ver o que consegue descobrir. “Não é bizarro?”, diz, olhando para a porta amarela. Repara num “x” pintado com um spray na porta da garagem, ou talvez seja o número 7. Fica a olhar para isso. “Todos os meus filhos nasceram no dia 7, talvez tenha que ver com isso.”

Sai do carro e olha para o quintal com as folhas caídas no chão. “Isto não é nada dele”, diz. Tenta abrir a porta da frente, mas está trancada. Tenta espreitar para dentro da sala, mas as cortinas estão corridas. Tenta abrir a cerca de madeira, mas também está fechada. Abana-a. Vai-se embora. Jennifer telefona e têm a mesma conversa de sempre, que termina da mesma forma de sempre. “Estamos de mãos atadas”, diz ele. “O que podemos fazer?” Esta é uma das perguntas que ele lança, mas há outras.

Quando surgem as notícias de que um homem tinha matado a tiro 12 pessoas em Washington Navy Yard, ele interrogou-se: “Terá sido o meu filho?” Quando lê um artigo sobre um corpo que foi retirado do cais, fica preocupado: “Será que é ele?” Se o seu filho não recebe ajuda, como é que as coisas irão terminar?

Durante dois anos, escreveu ao governador, ao senador, ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos, a todos os que lhe ocorreram, procurando ajuda. “Estamos perdidos, sem saber como ajudar o nosso filho que vive sozinho e não podemos fazer nada por causa das actuais leis de saúde mental”, escreveu numa carta. “À luz de recentes acontecimentos trágicos com doentes mentais envolvidos em situações dramáticas, queremos ajudar a impedir que algo ocorra com o nosso filho”, escreveu numa outra. “Assim que as suas poupanças se esgotarem... tornar-se-á mais uma pessoa sem nome, sem abrigo, vagueando pelas ruas ou na cadeia”, diz noutra ainda. “Por favor, ajude-nos!”, terminavam todas elas.
Dois dias depois de o pai o ter visto, o homem da casa desaparece. 

Jennifer está ao telefone com Kay, a contar-lhe que ele lhe deixou uma mensagem no telefone durante a noite, dizendo-lhe como tinha pena dela por os seus pensamentos estarem a ser controlados. Contou que tinha ido para outro estado e que tinha “um plano”. Por isso, Kay conduz de novo até casa dele. Está escuro e, enquanto desce a colina que vai ter ao seu beco, passa por casas iluminadas com luzes de Natal, até chegar à dele, que está às escuras. Aponta os faróis para a garagem. Há folhas secas amontoadas contra a porta. “Parece que ele não tirou nada da garagem”, diz ela. Tenta espreitar pelas janelas do primeiro piso, mas as cortinas estão fechadas. Olha para as janelas do segundo andar, que está escuro. Bate com o dedo indicador no volante e sai do carro. Caminha pela parte lateral do quintal até ao portão de madeira e espreita para as traseiras, para a cerca de estacas, para o pátio empedrado, para a relva coberta por folhas de meses.

“Ele construiu sozinho toda esta cerca”, diz ela. “Ele construiu tudo isto.” Vai até ao outro lado da casa. “Oh!”, exclama ao ver uma luz numa das janelas da cave. Atravessa as folhas, inclina-se na cerca e tenta olhar lá para dentro, mas não consegue. Volta a olhar para as traseiras. “A relva era linda”, diz. Repara que há uma luz acesa na casa de banho do segundo andar e pergunta-se se ele estará lá dentro. Volta a olhar para o quintal e continua a falar sobre quem era o seu filho — uma pessoa bonita, sensível e amável que adorava a família, que lhe mandava cartões pelo Dia da Mãe, que ela frequentemente relê.

As pessoas dizem-lhe que tem de tomar conta de si própria, ir a grupos de apoio a famílias, e uma vez foi a um encontro. O tema era a aceitação, que era a última coisa que ela queria contemplar, e não voltou lá. Quer acreditar que ele pode recuperar com a ajuda certa e, se isso continuar a ser possível, quer acreditar que a sua devoção possa de alguma forma chegar a ele. E, se isso não acontecer, espera que ele possa ser feliz no seu próprio mundo, numa vida nova, mesmo que isso signifique que ela nunca mais o verá. Volta para o carro e passa novamente pelas iluminações de Natal. Fala de como o filho adorava o Natal. Diz que as luzes a põem doente.

É o meu filho, prendam-no

Duas semanas depois, um vizinho telefona a Jennifer. O ex-marido voltou para casa. Voltou com um carro diferente. Dias depois disso, o vizinho volta a ligar: ele partiu. E depois mais uma chamada: voltou, desta vez com o seu próprio carro.
E agora o vizinho telefona a Jennifer para lhe dizer que o carro do ex-marido não está na rua onde sempre o estaciona, mas dentro da garagem. Em pânico, Jannifer liga à cunhada e esta liga ao pai e pede-lhe que vá lá naquele instante.
Por isso, ao 849.º dia, Charles parte, pensando num vizinho que se suicidou na garagem, com o carro a funcionar, sucumbindo aos fumos e pensando também com alguma culpa em como as coisas chegaram onde chegaram.
No dia do internamento forçado do filho, foi Charles quem disse à polícia: “É o meu filho, prendam-no.” E foi Charles quem ouviu a resposta dele: “Só podes estar a gozar. Não há nada de mal.”

E mesmo que ele soubesse quão doente o filho estava e quanto ele precisava de ajuda, Charles só conseguia pensar em quão terrível aquilo era enquanto o filho estava a ser algemado. Era terrível vê-lo no hospital, também, que para Charles é uma “terra de zombies”. Mas a coisa mais terrível de todas era ver o filho a decair sem qualquer tratamento médico — vê-lo perder a mulher, perder os filhos — e não ser capaz de fazer nada quanto a isso a não ser esperar que ele piore e, agora, ir até sua casa para ver que coisa horrível pode ter acontecido.

Ele está sempre a ler histórias sobre como as pessoas não “prestam atenção aos sinais” depois de uma tragédia que envolve alguém com uma doença mental, mas aqui está ele, sem deixar escapar os sinais. Todos vêem os sinais, só que não há nada que possam fazer quanto a isso. Chega a casa do filho, não há carro à porta. Bate à porta amarela. Não há resposta. Volta ao carro e deixa uma mensagem. “Olá, é o pai, estou aqui à frente.” É a mensagem que deixa sempre, mas desta vez a porta amarela abre-se. O filho aparece, frágil e desgrenhado. Está com auscultadores brancos, com calções e camisa amarrotados. Grita para que o pai fique onde está. Grita “não gosto de ti!” e “não quero continuar a dar cabo da tua vida!” O pai grita também: “Quero ajudar-te!” O filho diz que precisa de sete mil dólares e começa a ofender o pai, que acaba por se ir embora. “Como é que devemos reagir?”, pergunta mais tarde. “Esperam que o deixemos sozinho? Devemos deixá-lo bater no fundo? Dar-lhe dinheiro? É isso que está correcto? Não sei.”

Ao 851.º dia, Charles tenta mais outra coisa. Conduz até Annapolis, onde há um grupo que tenta mudar a actual lei do internamento compulsivo. Entre as alterações que tornariam a lei mais fácil, há uma que pretende mudar a formulação de uma pessoa que “constitua” um perigo para si ou para outras para “é muito provável que, caso não seja hospitalizada, venha a constituir” um perigo. Numa sala de audiências apinhada, o comité ouve uma advogada que se opõe ao projecto-lei, argumentando que a formulação iria “permitir deter sem-abrigo”, bem como outras pessoas que são incapazes de cuidar de si próprias por razões económicas. Diz que a lei iria exigir a reabertura dos hospitais psiquiátricos e fazer regressar o estado aos “dias mais negros”. 

Outro dos opositores argumenta que o aumento das hospitalizações custaria pelo menos 40 milhões de dólares. Uma antiga doente presta um depoimento a contar como se sentiu “humilhada e impotente” durante o seu internamento compulsivo. Depois, os senadores ouvem um psiquiatra que apoia o projecto-lei a afirmar que as alterações apenas se aplicariam a um espectro muito restrito de pessoas que sofrem de “sintomas psicóticos evidentes que qualquer pessoa poderia reconhecer”. Ouvem também familiares que apoiam as alterações, descrevendo o que acontece quando não conseguem hospitalizar os seus entes queridos. Uma mulher de 92 anos revela as suas últimas memórias do marido: de joelhos, implorando ao filho que fosse a um psiquiatra dois dias antes de ele se suicidar. Um pai descreve como foi incapaz de hospitalizar o seu filho adulto nos dias antes de ele tentar envenenar a mãe e de como ele foi viver para debaixo de uma ponte. Um marido recorda os dias em que recebeu a notícia de que a sua mulher há muito desaparecida tinha ido para a Europa, tinha nadado no Mediterrâneo e morrido com hipotermia. Depois, um pai testemunhou sobre o seu filho de 42 anos, que há 851 dias vivia sozinho numa casa, “desligado da sociedade”, e que começou a “desaparecer durante semanas seguidas sem dar nenhuma pista a quem quer que fosse sobre o que estaria a pensar”. “A sua doença apoderou-se da sua maneira de pensar, sentir e agir e apoderou-se da sua liberdade pessoal”, diz. “Esperar por tratamento hospitalar não faz bem a ninguém. Todos sofrem.”

O pai vai para casa e nada muda. O projecto-lei não é aprovado. O filho parece pior. Fala com o padre. Confirma no jornal os nomes quando acontece alguma coisa terrível.

Ele foi-se embora, certo?

Ao 889.º dia, chega a notícia de que o filho voltou a desaparecer. E agora Jennifer está à frente da porta amarela. Tem as mãos a tremer. Tem as suas velhas chaves e tenta entrar lá dentro pela primeira vez desde que se foi embora. Faz girar a chave na fechadura e esta roda. Tenta três chaves diferentes na segunda fechadura, mas ele mudou-a. Ela e uma amiga que veio acompanhá-la saltam o portão trancado e dirigem-e à porta de vidro, que não abre.

No pátio, vê a armação da bicicleta de montanha do ex-marido pintada de branco e toca nela. Atravessa o quintal e dá um pontapé numa pequena pilha de carvão na relva seca. O vizinho que lhe tem relatado os desenvolvimentos aparece.
“Quase não te reconheci, estás tão magra”, diz ele, abraçando-a. “Ele foi-se embora, certo?” “Ele foi-se embora”, responde ela.

Dias antes, ela tinha vigiado as conversas dele com os rapazes pelo Skype. Ele parecia estar numa espécie de sombra.
“Acho melhor virmos por aqui”, diz a amiga, movendo-se na direcção da janela da cave. “Pode ter colocado alguma coisa na porta da frente.”

A amiga começa a partir o vidro com um tijolo. Jennifer entra pela janela arrombada. “Desculpe, está alguém aí?”
Escorrega, cai na lavandaria e pela primeira vez em mais de dois anos está dentro de casa. Acende uma luz. “Uau!”
A máquina de lavar e secar estão cobertas de tinta amarela. Os rótulos de dois frascos de detergente estão cobertos de adesivo amarelo. Sobe ao andar de cima, para a entrada. “Por favor, tirem os sapatos”, lê num aviso escrito à mão colado na parede. Dirige-se para a sala, onde os objectos da sua antiga vida estão empilhados. “Meu Deus.”

Lá está a cadeira de couro, virada ao contrário. Lá está o sofá, com todas as almofadas arrancadas. Por cima da lareira, está um ninho de fios e placas de circuitos eléctricos, uma máquina de limpeza de alta pressão meio desfeita e as camas dos rapazes desmontadas. Há uma caixa com penas de pássaro cinzentas e castanhas e uma lata de isqueiros de carvão. Há um grande cesto encarnado, que ela abre. Está cheio de fotografias de família que foram retiradas das paredes e das prateleiras. A um canto, está uma mesinha com mais fotografias dos rapazes e uma de uma menina, que ela agarra durante uns segundos — “Quem é esta?”, interroga, analisando-a — e que depois volta a pousar.

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Caixotes com os pertences que estavam dentro da casa que foi posta à venda após o divórcio Stephanie McCrummen/The Washington Post

Atravessa a sala de jantar, onde uma mesa está pintada de amarelo e com instruções sobre tratamento de árvores de fruto, cebolas, espargos e uvas. Entra na cozinha, onde estão pequenas plantas verdes colocadas em pacotes de sumo de laranja ao lado da porta de vidro de correr. Há uma caneca que diz “Adoro o meu pai”, só que “Pai” tem um quadrado de papel branco a tapar, e outra com fita amarela a cobrir “A vida é bela”. Abre um armário, que está vazio, à excepção de latas de aveia e alguns frutos secos. Um frasco de detergente por cima do lava-loiças tem o rótulo arrancado. O fogão tem cartão a tapar os bicos. Num balcão, estão 20 comprimidos cor de laranja pálido meio desfeitos num papel de cozinha gorduroso, e ao lado dos comprimidos há mais fotos dos rapazes e uma da actriz Keira Knightley com a cabeça cautelosamente contornada e com uma fita amarela por trás. Volta à entrada, onde abre um armário. No chão estão chinelos pintados de branco e pendurado um casaco com o símbolo da Nike coberto de fita adesiva.

Ela sobe ao andar de cima. Mais plantas em pacotes. Mais mobília desmontada e pilhas de roupas. Num quarto, foi recortado um quadrado no tecto e há fita amarela pendurada. Regressa lá abaixo, volta à cave onde costumavam partilhar o seu copo de vinho e onde agora há pilhas de sacos do lixo que ela abre. São as roupas dos rapazes. Brinquedos. Há sete caixotes de cartão vazios com rótulos de um painel solar comprado recentemente, comprimidos sinergéticos de nutrição e botas de trabalho. Há uma caixa vazia de um inversor de potência ajustável.

Abre um armário que tem apenas duas coisas. “Huh”, diz, retirando uma lata de Coca-Cola que ela manteve por razões sentimentais, e uma garrafa de sherry que era o seu presente de casamento favorito. “Vês”, diz ela. “Ele sabe que estas duas coisas significam muito para mim. Ele não é mau.” Ela sai lá para fora e vai à garagem, onde há mais caixas com fios, mais rótulos arrancados, mais fita amarela e caixas de cartão que começa a abrir. Tira as suas roupas de faculdade, a sua mochila agora pintada de amarelo. “Meu deus”, exclama, puxando o seu vestido de noiva. Volta a pôr tudo lá dentro e fecha a caixa. Dá mais umas voltas pela casa, volta a analisar as canecas, os comprimidos desfeitos, as sandálias brancas, as plantas, as penas, o amarelo.

Atravessa o quintal e fica especada no jardim que ele plantou para ela, agora com ervas daninhas e castanho de tão seco e que se afunda num pequeno vale de relva. “Isto era incrível para deslizar”, diz ela. Cruza os braços e chora.
Nessa noite, não dorme. Na manhã seguinte, volta com uma carrinha para retirar o que quer guardar e vários amigos e vizinhos passam por lá para ajudar. “Ele começou a retirar amostras de ADN aos rapazes”, conta ela quando lhe começaram a fazer perguntas. “Pintou um X amarelo na porta da garagem e depois pintou a porta de amarelo.” “Deviam ver as traseiras, o meu marido arranjou-as mesmo bem quando era uma pessoa saudável, feliz.” “Há dois anos que ele está sozinho.” “Estou tão triste”, sussurra a um amigo.

Chega um agente imobiliário para discutir a venda da casa. “Falámos com um juiz”, diz-lhe ela. “Ele disse que enquanto ele não for perigoso não há nada que possamos fazer.” E foi isso que a família dele acabou finalmente por aceitar.
A mãe dele liga ao psiquiatra para saber se há mais alguma coisa que possam fazer, e ele diz que não. O psiquiatra diz que a pessoa com quem agora se preocupa mais é com ela. Ela continua a permitir ao filho o acesso ao seu cartão de crédito, mas não volta à casa. Diz que não a quer ver como está. O pai também não vai lá. Deixa de lhe mandar mensagens. A sua tensão arterial está a aumentar.

Ao 895.º dia, Jennifer acaba de carregar a carrinha, parte apressadamente para a casa uma última vez, decidindo-se a não ficar lá nem mais uma noite. Ao 896.º dia, a casa com a porta amarela é esvaziada. O homem que lá estava deixa de comunicar com a família, com excepção das mensagens escritas que manda à ex-mulher para combinar os telefonemas aos filhos, que se tornam cada vez menos frequentes. A família que o ama, que faria qualquer coisa por ele, deixa de tentar convencê-lo a procurar ajuda. Queriam que ele fosse internado compulsivamente. Ele não pode ser internado compulsivamente. O homem da casa está agora fora de casa e num lugar qualquer, por sua conta.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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