Família e classe
Por muito respeitáveis que sejam as opiniões, mais as pessoas que as ideias, o PS não se deve deter. Tendo propostas de reforma deve apresentá-las.
Certamente, reduzir em 1% do PIB a despesa farmacêutica não foi coisa pouca. Já reduzir a despesa hospitalar à boleia dos cortes de subsídios, horas extra e ordenados escasso mérito revela e além do mais é reversível. Forçar a contribuição das famílias para a saúde, em quatro anos, de 25 para 32% da despesa total, pública e privada, poderia ser tolerável, se a diferença não fosse toda, direitinha, para o sector privado e muito pouco, taxas moderadoras apenas, para o orçamento público. A prova dos nove sobre capacidade da gestão do SNS será tirada pelo próximo governo quando apurar a dimensão do que o actual governo ficou a dever a fornecedores de medicamentos e dispositivos médicos. A comparação do que se gastou em aquisição de serviços a empresas fornecedoras de mão-de-obra e a suposta poupança em pessoal do SNS serão outro elemento demonstrativo da distorção de valores praticada. Tal como o saber como estamos em matéria de compra de serviços de diagnóstico ao privado revelará, infelizmente as falhas toleradas ou aumentadas na gestão do SNS.
O que fica sem explicação é a desistência na política dos cuidados primários. Todos reconhecem nas USF uma medida de grande alcance: aumento de cobertura, maior ligação entre doente e médico, atendimento personalizado na hora, prevenção do pânico da acorrência às urgências quando não temos médico de família ou ele não está acessível, economias na prescrição de medicamentos e meios de diagnóstico, melhoria da qualidade por trabalho em equipa de médicos, enfermeiros e outros. Bem andou a Troika quando recomendou, convincente, a conclusão do programa de USF.
Parece que o governo pensa que as USF são caras, gastam mais em pessoal que o modelo convencional. Pudera, a qualidade tem preço e mesmo que os custos directos sejam superiores, haverá que contabilizar tudo o que é ganho: poupanças de medicamentos, meios de diagnóstico, de horas extra, de excesso de acorrências a hospitais e o valor do tempo, conforto e segurança para utentes. E, já agora, os ganhos de satisfação dos profissionais, intangíveis, mas não impossíveis de monetarizar. Onde estão os estudos em que o governo se baseia? Quando elas se constituíram foram apoiadas em projecções convincentes, só assim tendo sido possível a sua aprovação pelas Finanças, cujo padrão sempre foi mais imutável que as maiorias. Deve haver agora estudos de conclusão contrária, por favor, divulguem-nos!
Se o não fizerem, restam duas explicações, já que a ideológica não parece aqui aplicar-se, tamanho foi o consenso: ou o governo é canhestro, pouco arguto, lerdo, ou então revela mesquinha inveja face a uma medida dos socialistas que todos apreciavam. Nenhuma destas explicações é satisfatória. Ajudem a encontrar outra.
2. A derrota dos trabalhistas nas eleições no Reino (ainda) Unido tem suscitado interessante debate sobre onde e como se deve situar um partido do centro esquerda para ganhar eleições no rescaldo de uma crise que empobreceu a classe média e a média-baixa. O desemprego foi fatal para o aumento da pobreza. Forçou a previdência informal das famílias da classe média a ajudar parentes sem emprego, empobreceu-a de modo imprevisível, cortou, sem dó nem piedade, salários, vencimentos, pensões e aumentou até ao limite da extorsão, os impostos dos que os pagam. Tudo foi visível na redução do consumo interno e na tão gabada quebra de importações. Os beneficiados com os alívios que o governo agora apregoa pertencem à classe média alta, a que compra mais carros de turismo que viaturas de trabalho. Eis a razão pela qual os economistas que apoiam o PS se batem por impostos negativos para pobres com emprego, pensão baixa, ou desempregados e beneficiários de subsídios sociais. Não para comprarem viaturas importadas, mas para aumentarem o consumo de produtos de manufactura ou produção local, de baixo custo, indispensáveis ao seu quotidiano.
A classe média, sempre a classe média, a tal que faz ganhar e perder eleições, como se comporta? Aquela que o governo alienou e que agora tenta recuperar com base num fictício aceno de confiança. Eis a razão por que levantar bandeiras envelhecidas pelo mau uso e pelas capturas corporativas nada dirá aos que decidem o voto flutuante. O PS já demonstrou que não alinha em fantasias, tem um programa económico sólido e viável. Incumbe-lhe agora tornar os restantes programas coerentes. E o Estado Social? Boa questão. Para alguns, tudo o que cheire a modernização do SNS, da segurança social e do sistema educativo é por definição perigoso. Também não faltarão os instalados no imobilismo a demonizar a menor tentativa de reforma, como se viu no passado recente com a saúde e a educação. Por muito respeitáveis que sejam as opiniões, mais as pessoas que as ideias, o PS não se deve deter. Tendo propostas de reforma deve apresentá-las. Ganhará credibilidade e não deixará que a classe média caia na armadilha da direita unida.