Os socialistas europeus, de Renzi a Costa
Também António Costa vai precisar de pensar “europeu” e de ajudar a encontrar uma fórmula que dê sentido à social-democracia na era da globalização.
Não precisaram de muito tempo para anunciar que estão dispostos a apoiá-lo. Mas tudo indicava que se vão limitar a trocar esse apoio por outros cargos que estão também em disputa: presidente do Conselho Europeu (e do Conselho do euro), Alto representante para a Política Externa, presidentes do Eurogrupo e do Parlamento Europeu. Quanto ao resto, ou seja, à ideia de uma plataforma política destinada a pôr mais enfase no crescimento do que nas regras do défice, não terá havido o entendimento necessário, que se chegou a prever. Já assistimos a outras tentativas no mesmo sentido que não deram em nada. François Hollande já se rendeu (mais ou menos) à chanceler. O que poderia haver de novo nesta minicimeira socialista parece que acabou por não pesar o suficiente. Sigmar Gabriel, o líder do SPD e vice-chanceler do alemão, tinha avançado a ideia de retirar do deve e haver orçamental o dinheiro necessário para levar a cabo algumas reformas. A chanceler já veio dizer que não, como era por demais previsível. Ninguém voltou a ouvir falar nela. A entrada em cena de Matteo Renzi também prometia alguma coisa de novo. O novo líder italiano, legitimado por uma notável vitória nas europeias, insiste em que precisa de mais tempo para corrigir os desequilíbrios financeiros e pôr em marcha as reformas. Mas ontem, estranhamente (ou talvez não), foi o próprio Hollande quem tentou convencê-lo a ser mais moderado nas suas exigências.
2. Em suma, para além das escolhas dos novos cargos (cuja importância, como se tem visto, é bastante relativa, dada a concentração de poder em Berlim) não se previam ontem grandes decisões dos socialistas. O que não nos deve impedir de prestar atenção a uma nova geração de líderes de centro-esquerda mais abertos ao mundo em que vivemos. Renzi é uma lufada de ar fresco. É um jovem que não interiorizou as velhas manhas do centro-esquerda italiano. Que não tem vergonha de proclamar a sua preferência pela forma como Tony Blair lançou a “terceira via” como forma de responder à globalização (nos dias que correm é preciso uma grande coragem politica para o fazer). Que se apresenta como a face de uma social-democracia que pode ser “cool”. Que conta com um inesperado apoio dos italianos (como se viu nas eleições europeias), apesar de Beppe Grillo e de Berlusconi. Ontem, o Monde dava-lhe destaque de primeira página. A Itália tem alguns trunfos que as outras economias do Sul não têm. Além de uma base industrial ainda invejável, sabe comportar-se no jogo político europeu como a “squadra azzurra”, ou seja, parece que está em campo sem saber bem o que anda a fazer, baralha o adversário e inesperadamente marca um golo para, no fim, ganhar o campeonato. Mas isso não o dispensa, nem a ele nem a Manuel Valls (uma escolha de Hollande que vai no mesmo sentido), nem a outros líderes europeus de centro-esquerda de encontrar um novo programa que consiga integrar a globalização económica e a emergência de um quadro competitivo mundial muitíssimo mais exigente. Caso contrário, continuará a ser a extrema-direita a capitalizar o descontentamento dos que são mais afectados pelas mudanças mundiais.
3. Tudo isto nos pode remeter para Lisboa, onde já só falta levar a António José Seguro um desenho que lhe explique que o seu tempo acabou. Já muita gente tinha percebido que não tinha condições para liderar o PS. A forma como encarou o desafio de Costa foi a prova definitiva. Um líder diria, pura e simplesmente, “vamos a isso”. Precisamente aquilo que ele teima em não dizer, invocando os estatutos a torto e a direito, enquanto os seus próximos se dedicam a uma campanha contra Costa que de decente ou de político não tem nada. Por mais que o secretário-geral socialista eleve o tom de voz e faça cara de mau, não consegue mudar a ideia que as pessoas têm dele. O seu passado e o seu caminho para a liderança nunca saíram para a luz do dia. Nunca enfrentou um combate político a sério. Escudou-se no aparelho e nos estatutos. Quando se viu desafiado, mandou os seus próximos acusar Costa de traição, apresentando-o como vítima (o que não é propriamente a matéria de que se fazem os líderes) ou de ser o novo Sócrates. O problema é que isso já não colhe. Deixar o PS a desgastar-se numa luta interna sem qualquer propósito é um preço que não lhe será perdoado.
Costa fez o que tinha a fazer. Com a “derrota” das europeias, sabia que tinha o dever de se candidatar, sob pena de ficar com um problema de consciência para o resto da vida. Pode ganhar ou perder, que sobreviverá bem consigo próprio. Mas, de alguma maneira, já é o rosto da liderança do PS para as legislativas de 2015 e é já em função disso que a coligação que nos governa está a adaptar a sua agenda. Isto não é traição. É a vida normal de um partido político com responsabilidade de governo. Soares teve de lutar por duas vezes pelo PS em condições muito difíceis, utilizando todas as armas políticas de que dispunha: contra Manuel Serra e contra o ex-secretariado (Guterres, Constâncio, Sampaio, ou seja, a geração de luxo do PS) para manter a liderança. Venceu congressos com pouco mais de 60 por cento dos votos. Muitas vezes, teve de forçara entrada nas sedes concelhias do PS para se fazer ouvir. Sampaio viu Guterres tirar-lhe o tapete com imensa calma, porque achava que podia ser um líder melhor. A política e não os estatutos era a questão central. Aliás, ninguém pode verdadeiramente liderar o PS a partir de estatutos que ele próprio forjou para garantir a sua sobrevivência, e, muito menos, ninguém pode ser líder do PS relegando para o estatuto de inimigo o anterior primeiro-ministro socialista e dizendo, sem se rir, que Mário Soares é um militante como outro qualquer.
É penoso que o país tenha de assistir a isto. Mas não haverá grandes dúvidas quanto aos resultados. Os holofotes já se viraram para Costa, por boas e por más razões. Tudo lhe vai ser exigido, quando ele não poderá fazer tudo. Mas a sua presença vai mudar as regras do jogo político e vai tornar o debate um pouco mais respirável. Tem a força suficiente para não precisar de falar alto e, sobretudo, para conseguir estabelecer compromissos. É, de resto, essa força que lhe permite construir pontes para muitos lados sem perder as suas convicções. Não vale a pena pedir-lhe um longo programa com 100 medidas e 50 reformas porque não é isso, hoje, o essencial. O que se quer dele é que apresente um discurso que seja ao mesmo tempo realista e mobilizador, que tenha uma visão de médio prazo para o país e que vá buscar onde deve as contribuições políticas de que precisa. Tem vida para lá da vitória ou da derrota. E isso também lhe dá uma grande liberdade de espírito que, obviamente, não agrada particularmente a muitos socialistas. Também ele vai precisar de pensar “europeu” e de ajudar a encontrar uma fórmula que dê sentido à social-democracia na era da globalização. Não é o “messias” como agora lhe chamam para poder cobrar mais tarde a ausência de milagres. Mas consegue chegar às pessoas e pode mobilizar, se quiser, o que há de mais moderno e mais aberto da sociedade portuguesa. Por mérito próprio e por demérito alheio. É isso o fundamental.