No meio da chuva, ficou marcado novo encontro para o dia do Orçamento
Em Alcântara, tudo parecia conspirar contra a manifestação. O tempo, o local, os constrangimentos dos autocarros a desfilar na ponte. Talvez por isso, poucos jovens compareceram.
Sem grande resultado. Alcântara não é a Avenida da Liberdade. Não há resguardo nem espaço. E como o dia começara soalheiro, poucos trouxeram impermeáveis. Acreditaram na promessa de um dia radioso. Fiaram-se no milagre. Mas parecia que a traição vinha de todo o lado, que tudo conspirava contra a manifestação. A sensação dominante era o desconforto. Um estado de espírito de abstracção, de adiamento. O pressentimento de que o dia não era propício, a conjuntura não era favorável, o ânimo não era suficientemente forte. Tanto no palco como entre a assistência, falou-se menos do momento presente do que das lutas futuras: a manifestação de dia 1 de Novembro, a greve da Função Pública de dia 8.
“Esta manifestação deveria marcar o início de uma nova atitude dos portugueses”, disse João Figueira, 27 anos, licenciado em Relações Internacionais, desempregado. “Uma nova fase, em que vir para a rua significa reivindicar com meios mais eficazes, para forçar a mudança de políticas, fazer as coisas acontecerem”.
As palavras de ordem da manifestação foram assertivas e directas, ideologicamente vincadas. Exigiu-se a demissão do Governo, uma política de esquerda. “Contra a exploração, exigimos a demissão”. Ou: “A luta continua. Governo para a rua”. Os cartazes individuais eram radicais, desesperados. Diziam coisas como “Não somos lixo, somos gente”. Ou: “Assim o povo morre”. Ou ainda: “A trafulhice é tanta que não cabe em nenhum cartaz”.
Nos discursos, sempre que era mencionado o nome de Cavaco Silva, os assobios abafavam tudo. Quando era referido Passos Coelho, era ainda pior: “Gatuno!” “Filho da P.” O primeiro epíteto foi dito várias vezes aos microfones. O segundo quase.
No palco, os cantores vieram interpretar Zeca Afonso e Adriano. “Pergunto ao vento que passa notícias do meu país, o vento cala a desgraça, o vento nada me diz”. E depois: “Não há machado que corte a raiz ao pensamento…” Um poeta declamou uns versos ao estilo de Ary dos Santos. “Eles vêm de outro planeta, onde só há noite…”, vibrava o poeta. “A cidade está coberta de sangue… O povo ergue os corpos, cerra os punhos… A rua é do povo… cantando o hino… só nós é que somos donos do nosso destino!” E quando alguém se perdeu na multidão, nos altifalantes disseram: “Camarada, é favor dirigir-se ao lado certo do palco: a esquerda”.
João e os amigos estão sintonizados numa determinada perspectiva teórica. “Muitas pessoas já perceberam que se não se organizarem, para efectuaram acções concretas de pressão, nada acontece”, disse Marta Amorim, 25 anos, licenciada em História da Arte e também desempregada. “O facto de a manifestação se realizar na Ponte 25 de Abril tem esse significado simbólico. A ponte representa o 25 de Abril, e também o movimento do buzinão, de 1994, em que houve um verdadeiro acto de desobediência civil”.
Por trás do cabelo despenteado de Marta vê-se a ponte, entre brumas. E o palco da CGTP, com a faixa a dizer “Por Abril, contra a exploração e o empobrecimento – Salários, Emprego, Saúde, Segurança Social, Educação”. Mas todo o espaço parece exíguo e confinado, com o cemitério de um lado e o Cristo-Rei do outro.
Alcântara não é a Avenida da Liberdade. Aqui, o povo parece mais agressivo, mas também mais fraco. Havia polícias em todos os cruzamentos, os acessos estavam cortados. Não há metro e não passavam carros nem transportes públicos. Tudo estava contra a manifestação. Havia os símbolos, mas o que resta da sua força? João e Marta não tinham nascido, no 25 de Abril. Eram crianças quando os protestos na ponte levaram aos confrontos com a polícia, à agressão brutal de um jovem, e à queda do Governo de Cavaco Silva.
“Os jovens não acreditam que é possível fazer alguma coisa. Ou não sabem que é possível”, disse João. Por isso não compareceram. A média etária dos manifestantes era seguramente superior a 50 anos. “Os mais novos só pensam em emigrar”, explicou Marta. “Ou andam entretidos com a queima das fitas”.
Alguns seguiram depois para o porto de Lisboa, para participarem numa acção, convocada por um grupo anónimo, cujo objectivo era paralisar o porto. Aparentemente, o Sindicato dos Estivadores tinha apoiado a iniciativa, mas depois demarcou-se. O protesto acabaria por reduzir-se a um grupo de menos de uma centena de pessoas, tocando tambores e gritando alguns slogans. Não atraiu muitos jovens. Nem sequer o grupo de Marta e João, que tinham planeado ir jantar ao Bairro Alto depois da manifestação.
Maria Helena Gonçalves, 65 anos, professora reformada, disse que vem a manifestações porque sente a obrigação de explicar as coisas aos mais novos. “Nós, que já passámos por várias lutas, temos de mostrar-lhes que é possível mudar as coisas. O nosso saber acumulado dá-nos essa responsabilidade, de divulgar a esperança”.
No grupo de Maria Helena havia outros professores reformados. Natália Bravo, 66 anos, colocou uma dúvida: “A luta, agora, talvez seja mais difícil do que antes do 25 de Abril. Porque dantes sabíamos claramente onde estava o mal e quem eram os culpados. Agora…”
As professoras reformadas são filiadas no Sindicato dos Professores. Num Departamento dos Professores e Educadores Aposentados, da CGTP, que conta com cerca de 2400 elementos, só na zona da Grande Lisboa. Foi criado nos anos 90, contam, para lutar contra as reformas muito baixas dos professores que trabalharam numa época em que os salários eram quase miseráveis. O problema resolveu-se, e o departamento dos reformados continuou a sua actividade, organizando passatempos e excursões.
Mas agora tudo mudou. Com os cortes nas reformas e pensões, muitos reformados estão a voltar à luta sindical activa. “É verdade que não podemos fazer greves, mas podemos lançar petições, participar em manifestações, ajudar os mais novos”, explicou Maria Helena. Muitos reformados tinham saído do sindicato e agora estão a voltar, acrescenta.
É o caso de Maria Helena Gomes, 68 anos. “Eu tinha saído do sindicato. Não tinha preocupações, pensava que ia ter uma vida boa. Achava que o Governo ia respeitar o contrato que tinha com os cidadãos. Mas afinal vimos que não era assim, que não é gente de confiança”.
Dez anos depois de se ter reformado, Maria Helena voltou ao sindicato. “Ao menos aqui sinto que estou acompanhada. Venho às manifestações. E posso contar com os advogados do sindicato, para me ajudar”.
Maria Helena e os colegas vieram num autocarro, através da Ponte 25 de Abril. Foram centenas de veículos, vindos da margem Sul, ou atravessando a ponte para lá e para cá. Desfilaram de forma ordeira, nunca bloqueando o tráfego. Ninguém pôs um pé no tabuleiro. Visto de fora, nem chegou a haver engarrafamento. Apenas uma fila de trânsito, bem mais fluida e relaxada do que na hora de ponta. A manifestação decorria dentro de portas, em grupos isolados. Na sua maioria, os autocarros eram modernos, com ar condicionado e vidros fumados. Nada, ou muito pouco do que se gritava lá dentro transparecia para o exterior. Viam-se punhos erguidos, mãos a bater palmas, bocas a gritar palavras de ordem, em silêncio. Cá fora, só as buzinas. E os motards, de couro preto e floreados de tunning a gritar o seu individualismo e originalidade. A sua estética de Hell’s Angels e afins, de marginais ao sistema.
As pessoas batiam nos vidros dos autocarros, como se estivessem presas e quisessem sair. Batiam nos vidros como se estivessem em jaulas. Um homem colou um cartaz à vidraça: “Governo para a rua”. Bandeiras saíam pelas janelas, mas não se viam as mãos que as seguravam. Nalguns autocarros pareciam ir todos calados, semblantes sisudos, pensativos. Noutros, claramente, havia festa. Tudo de pé, a dançar. Noutros ainda distinguiam-se boinas e T-shirts com Che Guevara, bandeiras com a foice e o martelo, megafones, cartazes e faixas. Cada autocarro era uma pequena manifestação solitária e muda. “25 de Abril sempre”, lia-se nos lábios de uma mulher.