Hitchcock ou O mistério da qualidade negada

Deu brado, e com razão, a negação do selo "Filme de Qualidade" ao Vertigo de Hitchcock. Ainda para mais quando este tinha sido escolhido para encabeçar a lista dos 100 melhores filme de sempre (destronando Citizen Kane de Welles) para a revista Sight & Sound por um painel de 846 especialistas. Mas para perceber o mecanismo de tal selo em Portugal convém recuar pelo menos uns 35 anos.

No dia 7 de Abril de 1976 publicou-se entre nós um curioso decreto. Era destinado a, digamos, disciplinar a difusão da pornografia em Portugal. No preâmbulo dizia-se que, "após quase meio século de mistificação do sexo e de total ausência de educação sexual", era "compreensível" a curiosidade por tal temática. Porém, convinha disciplinar a coisa para que a devassidão não alastrasse de forma inconveniente. Isto, claro está, sem exageros. "Uma certa fluidez conceitual não deixa, neste domínio, de ser um bem", preambulava-se ainda. "Entende-se que proibir a importação ou a edição de obras de conteúdo pornográfico abriria as portas a um expediente de censura facilmente aproveitável para intoleráveis extensões ou extrapolações." E entendeu-se muito bem. Desconhece-se o autor do escrito, mas foi aprovado por Pinheiro de Azevedo (à data primeiro-ministro) e promulgado por Costa Gomes (o então Presidente da República).

Para o que aqui interessa, diga-se que os filmes pornográficos teriam "agravadas a sobretaxa de importação e as taxas incidentes sobre o preço dos bilhetes". Mesmo assim, a pornografia nos cinemas nacionais parecia imparável. E então surgiu, a 31 de Julho de 1976 outra lei, atribuindo aos filmes que "pela sua qualidade técnica, temática, artística ou pedagógica" o merecessem, o atributo de "filme de qualidade". A coisa começou aqui.

Era, como se entende, um rebuçado aos distribuidores: se importassem bons filmes, poupavam 30 contos (150 euros) por cada um; se importassem pornografia, arcavam com sobretaxas. Mas não bastavam palavras vagas, era preciso explicar melhor. Então veio o despacho normativo n.º 207, de 15 de Agosto de 1977, para pôr as ideias em ordem. Filme de qualidade seria aquele que tivesse, cumulativamente, alguns destes atributos: "1) Originalidade no tratamento do tema, criação/recriação, inovação (ruptura, pesquisa, experimentação); 2) Temática que aponte directa e/ou indirectamente para a valorização e compreensão da pessoa humana; 3) Coerência interna do discurso criativo; 4) Especificidade da linguagem cinematográfica; 5) Rigor na abordagem do tema, nos filmes que pela sua natureza o exijam; 6) Riqueza semântica e capacidade significante; 7) Unidade dos elementos criativos; 8) Técnica (sequência/planificação, realização, interpretação, fotografia, sonorização, ambientação, montagem) ao serviço da expressão cinematográfica."

Complicado? Em 1977 não parecia. Em 1983 pareceu. A portaria n.º 245 simplificou o assunto, decretando que "serão classificados de qualidade os espectáculos que pelos seus aspectos artístico, temático, pedagógico e técnico mereçam esse atributo". Sem mais. Mas a classificação de "qualidade" começara a 21 de Outubro de 1977. Primeiro filme a ser analisado: Ano Domini 1573 (1975), do croata Vatroslav Mimica. Rejeitado. Horas depois, Cenas de Caça na Baixa Baviera (1969), do alemão Peter Fleischman, tornava-se o primeiro filme a merecer "qualidade". Muitos outros vieram. Renoir, Minnelli, Resnais, Tati, Visconti, Wenders, Bergman, Coppola, Scorsese, Buñuel acumularam selos. Woody Allen e Kubrick também, ou quase: perderam-no, respectivamente, em Intimidade e Shinning. Uma curiosidade: o filme O Império dos Sentidos, de Oshima, esteve a um passo de ser qualificado como pornográfico. Mas três horas e meia de discussão fizeram dele "filme de qualidade".

Vertigo não teve essa sorte. A Comissão de Classificação de Espectáculos (CCE) argumenta que os vogais não ajuizaram nele "a observância cumulativa dos critérios exigidos", desde logo "quanto ao aspecto pedagógico". Bom, é verdade que o filme não ensina as crianças a lavar as mãos antes de ir para a mesa... Mas os tais vogais terão mesmo visto o filme? É que, com tal juízo, milhares de classificações terão de ser revistas. Não é preciso muito. Basta ler as listas no site da CCE e pasmar.

Sugerir correcção