O mundo aos pés de Hitchcock

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"É um filme sobre ver, sobre o olhar. É por isso que muitos cineastas ou cinéfilos são atraídos por ele", diz Joachim Trier, realizador de Oslo, 31 de Agosto

Porquê Vertigo, porquê Vertigo hoje? O enraizamento de uma visão de cinema, a do cânone da Hollywood clássica e da "política de autores"?Jorge Mourinha

Durante 50 anos, um filme reuniu o consenso à sua volta como "o melhor filme de todos os tempos". O Mundo a Seus Pés (1941), que marcou a estreia na realização (e selou o destino) de Orson Welles, já não é esse filme. Após cinco décadas de liderança, foi destronado, na votação que a revista britânica Sight & Sound efectua todos os dez anos junto de cineastas, críticos e programadores, por Vertigo - A Mulher que Viveu Duas Vezes (1958), de Alfred Hitchcock. Que regressa ao grande écrã em Portugal, aureolado do rótulo "o melhor filme de todos os tempos".

Continuamos fascinados por Hitchcock, em grande parte devido à sua vertente de entertainer: o britânico era ao mesmo tempo "um dos grandes cineastas" e "uma figura pública numa altura em que poucos outros o eram", nas palavras de Richard Brody, crítico da revista New Yorker. "Era um excelente publicitário de si próprio. Tornou a sua personalidade num emblema, numa marca registada." Sinal desse fascínio: neste preciso momento, dois novos filmes abordam a figura, com dois actores de peso a interpretarem o realizador - Anthony Hopkins (em Hitchcock, de Sacha Gervasi, sobre a rodagem de Psico) e Toby Jones (em The Girl, telefilme de Julian Jarrold sobre a relação de Hitchcock com a actriz Tippi Hedren, heroína de Os Pássaros e Marnie). Mas não é de Vertigo que estes filmes falam. Será Vertigo realmente o melhor filme de todos os tempos? E porquê?

Consensos e paixões

Ao telefone de Nova Iorque, Dave Kehr, crítico do New York Times e da Film Comment, define-o como o seu Hitchcock preferido: "É o seu filme mais profundo e mais comovente, que talvez represente um meio caminho entre a tradição do cinema de arte e o cinema de género. Os seus significados são secretos - é um filme pessoal e acho-o tão difícil como qualquer Bergman ou Antonioni. É uma obra de arte notável, inventiva, repleta das suas próprias obsessões eróticas trabalhadas através da teatralidade do cinema, do guarda-roupa, da maquilhagem - da mise en scène no sentido primordial de "faz de conta"."

Ao telefone de Oslo, Joachim Trier, realizador de Oslo, 31 de Agosto, resume tudo: "É um filme sobre ver, sobre o olhar. É por isso que muitos cineastas ou cinéfilos são atraídos por ele. É um filme sobre o modo como James Stewart olha para o mundo e para uma mulher como um profundo mistério pelo qual está atraído. O modo como o filme joga com o distanciamento perante uma mulher que se tenta recriar sem se ter sequer a certeza que isso é possível é profundamente cinematográfico."

Brody, Kehr e Trier são apenas três dos 846 críticos, programadores, cineastas e curadores de todo o mundo que responderam à Sight & Sound e colocaram Vertigo entre as suas dez escolhas. Mas apesar da dimensão da votação ser superior aos inquéritos anteriores (em 2002, aquando da realização do último, foram recebidas apenas 145 respostas) convirá não colocar demasiada ênfase na vitória. "Não quer dizer que toda a gente tenha votado nele como o seu filme preferido," aponta Kehr. "Trata-se antes do filme ao qual o maior número de pessoas levantou menos objecções, ou que teve menos inimigos. Este tipo de listas não mede paixões mas sim consensos."

O crítico irlandês Mark Cousins, incansável divulgador e autor da aclamadíssima série documental The Story of Film, não hesita em considerar estas votações, por mais sérias que sejam, como "concursos de popularidade". Numa truculenta conversa por e-mail define o cânone que estas listas acabam por construir como resultante dos "primeiros grandes filmes que nos vêm à cabeça". "Reflectem o que está no discurso oficial: aquilo de que as pessoas falam nos festivais, o que vêem depois de terem bebido uns copos, o que ensinam nas faculdades..."

Richard Brody levanta uma outra questão. "Uma lista como estas trabalha com filmes, não com realizadores e aposto que, se trabalhasse com realizadores, os resultados seriam diferentes." Cita o caso de um contemporâneo de Hitchcock, Howard Hawks, que apenas tem um filme na lista, Rio Bravo, em 63º lugar. "Hawks não aparece numa posição mais elevada não porque as pessoas não gostem do seu trabalho, mas sim porque não há um filme seu cristalizado como "o" filme. Acontece o mesmo com Stanley Kubrick ou Yasujiro Ozu: as votações repartem-se entre muitos filmes diferentes." O próprio Hitch tem três outros filmes na lista - Psico, Janela Indiscreta e Intriga Internacional - mas só Vertigo (191 votos) recebeu mais do dobro da votação desses três somada (90 votos), batendo o anterior número 1 da lista e actual segundo classificado, O Mundo a Seus Pés, por uma diferença de 34 votos.

Estilos e paradigmas

Richard Brody explica a mudança de liderança como uma mudança de paradigma. "Quando O Mundo a Seus Pés estreou, foi entendido como um passo em frente na arte cinematográfica, teve um efeito imediato e libertador noutros cineastas. Mas Orson Welles não era uma figura de Hollywood: vinha do teatro nova-iorquino, e fez algo de pessoal usando os recursos de Hollywood. Hitchcock, mesmo sendo um imigrante britânico, encontrara o seu lugar em Hollywood. Olhavam para ele como um entertainer de talento e grande sucesso, mas a maioria dos críticos não o levava muito a sério. Quem "descobriu" Hitchcock foram os franceses, e a eleição de Vertigo confirma essa perspectiva."

A subida de Vertigo ao primeiro lugar reflecte, então, o enraizamento de uma visão do cinema: a "política dos autores" lançada pelos "jovens turcos" da crítica francesa da qual sairiam a revista Cahiers du Cinéma e os cineastas fundadores da Nouvelle Vague - Truffaut, Godard, Chabrol, Rohmer, Rivette... Foram eles quem primeiro chamou a atenção para os tesouros que se escondiam nas linhas de montagem. Que Vertigo, obra maior de um dos seus cineastas mais amados, surja em primeiro lugar na Sight & Sound é, nas palavras de Kehr, "a política dos autores a triunfar, a aceitação definitiva da disponibilidade dos críticos para verem como arte filmes que [até então] eram encarados puramente como entretenimento."

Claro que ajuda o facto de ser um filme que revela sentidos com cada nova visão. Brody aponta: "Para toda uma geração que cresceu a estudar o modo como o cinema é auto-referencial, é um filme que reflecte o cinema e a arte do cinema." Para Joachim Trier, esse lado é central para o seu fascínio. "Filmes como 8 ½, de Fellini, ou Vertigo, ou A Máscara de Bergman, são eminentemente cinematográficos. Tratam do modo como vemos e olhamos, do modo como a identidade e a representação nos falam, por oposição a filmes mais humanistas, literários ou teatrais. Nesta altura em que as pessoas apreciam o naturalismo de um certo cinema representacional, Vertigo é o oposto: é incrivelmente estilizado, tem uma visão autoral do mundo. Talvez haja algo de nostalgia nas razões pelas quais o apreciamos."

A um oceano de distância, Brody toca em temas semelhantes. "Ao celebrar Vertigo estamos a celebrar o estilo de Hollywood. É um filme muito sofisticado, que fetichiza e erotiza o estilo." E é por aí que o crítico vai buscar o "lado mau" deste triunfo da "política dos autores". "A par do reconhecimento que os maiores realizadores de Hollywood podiam ser alguns dos maiores cineastas do mundo, canonizou-se ao mesmo tempo o estilo hollywoodiano dessa altura, e com ele um certo neo-classicismo que creio também estar reflectido na lista da Sight & Sound. A falta de modernismo na lista é surpreendente para mim - e reflecte algo que vejo na crítica contemporânea: muitos dos que defendem entusiasticamente o cinema americano clássico gostam de o usar como arma contra estilos mais elaborados do cinema contemporâneo."

É aqui que retomamos o diálogo com Mark Cousins, para quem a canonização começa a exigir a necessidade de reinventar estas listas - não por provocação, mas porque "a história oficial está errada", como lhe têm revelado explorações de cinematografias que só o desconhecimento permite considerar exóticas. Isso não implica que tudo o que faça parte do cânone convencionado deva ser deitado fora: "Há montes de coisas fantásticas no velho cânone que devem ser mantidas!" A questão é outra. "Como cinéfilos, temos de discutir o modo como a memória do cinema, e o discurso sobre o cinema, trabalha. Pessoalmente, sei que quero substituir alguns dos "clássicos" por outros. Não basta mandar abaixo o cânone velho, precisamos de substituí-lo. Não basta demolir (ou desconstruir, como dizem os académicos), temos também de reconstruir - para que quem vier depois possa desafiar o que fizemos."

Basta olhar para a primeira lista compilada pela Sight & Sound, em 1952, encimada por Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica, Luzes da Cidade e A Quimera do Ouro, de Chaplin. Em 2012, Ladrões de Bicicletas está em 33º lugar, Luzes da Cidade em 50º e A Quimera do Ouro nem aparece. O cânone move-se: como Michael Atkinson escreveu num ensaio publicado na revista, inquéritos como este são "instantâneos de um zeitgeist em fluxo, uma foto de família das prioridades e tendências da cultura cinematográfica neste ano. É tudo."

Daqui a 50 anos, em que posição estará Vertigo?

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