O meu reino por um burro

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Durante a sesta burriqueira, as crianças entretêm-se a criar memórias visuais do passeio

Percorrer os trilhos do planalto mirandês no dorso de um burro é uma aventura que qualquer criança aprecia. E se houver a promessa de que o Shrek aparecerá a meio do dia, será melhor ainda. Por Tierras D L Rei, eis o relato de como um ogre se transformou num príncipe e como as preces mais improváveis podem ser atendidas. Ana Pedrosa (texto) e António Sá (fotos)

Há ocasiões em que só nos resta recorrer a frases batidas. Quando Miguel Nóvoa, no Centro de Valorização do Burro de Miranda, está a meio de uma breve dissertação sobre a raça e é interrompido por uma forte zurraria, não resiste ao gracejo: "Vozes de burro não chegam ao céu", embora o coro desafinado ainda o obrigue a calar-se várias vezes. Está dada a oportunidade para explicar que "na Etiópia e na Somália, de onde estes animais são originários, as suas vozes conseguem ser ouvidas a dez quilómetros de distância".

Aprenderemos estas e outras curiosidades na palestra que marca o princípio do passeio Por Tierras D L Rei, dois dias passados a percorrer trilhos no planalto mirandês, entre a aldeia de Atenor e o Castelo de Algoso. Ficaremos ainda a saber que os burros têm uma esperança média de vida de 25 anos, apesar de no asilo reservado para os animais que já não conseguem trabalhar haver indivíduos com 36 anos, e que na "maternidade" várias fêmeas estão a poucos dias de dar à luz. As crianças, que constituem boa parte do grupo ali reunido, com cerca de sessenta pessoas, ouvem com atenção antes de desatarem a perguntar: "Os dentes de leite dos burros também caem?"; "Qual a diferença entre eles e os cavalos?"; e a mais ansiosa de todas, "Quando podemos montar?". As respostas sucederam-se ao mesmo ritmo: sim, já vais ver, agora mesmo.

A manhã já ia longa, depois do encontro junto ao café da aldeia, a recepção dos participantes com a entrega das senhas para as refeições e uma pequena caminhada entre lameiros, junto aos quais os conhecedores iam apontando rebentos de espargos-bravos.

Para quem chegou mais cedo, na noite anterior tinha havido chá e bolos durante a projecção do filme de João Botelho, Anquanto la Lhengua fur Cantada, rodado nestas mesmas paisagens e veredas.

Burricando

Agora chegou a altura de dar início ao passeio, depois de algumas indicações sobre cuidados básicos de segurança - manter os pés longe das patas dos bichos, segurar na arreata correctamente e nunca a largar. Onze burros estão separados para serem escolhidos por cada família ou pequeno grupo. Com a ajuda dos membros da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA), organizadora da actividade, começa-se por escová-los antes de aparelhar com suadouro, albarda e o alforge tradicional, que levará garrafas de água e os casacos despidos à medida que o sol aquece.

"A Rosinha, que é mais velha, vai à frente. Os outros seguem-na." As ordens humanas depressa são desobedecidas por animais pouco afeitos a hierarquias. Amadeu, macho impulsivo, não descansa enquanto não toma a dianteira; Serralves não demorará muito a acompanhá-lo. Franjinhas, a montada que nos calhou em sorte, irá revelar-se uma fêmea dócil, pronta a parar quando abrandamos e a pôr-se em marcha mal se puxa pela arreata. Casmurra não é.

Demasiado ocupados a tentar fazer tudo certo, na primeira meia hora mal se dá pelo cenário envolvente. No dorso das montadas, os mais pequenos seguem num misto de excitação e nervosismo. As paragens são frequentes, seja para esperar pelos retardatários ou porque algum burrico se desvia para trincar erva tenra nos prados de alfafa: "Isto, para eles, é como uma loja de bombons. Não resistem", comenta alguém sabedor das suas preferências alimentares.

Não tarda seguimos em velocidade de cruzeiro, por caminhos de terra ladeados por campos de aveia e plantações recentes de ciprestes semelhantes a "florestas de outro planeta". Chegados a um ponto mais alto, o planalto abre-se diante de nós - montes e vales que se estendem horizonte fora, apagando-se na névoa desta Primavera cálida mas pouco húmida. Falta verde mais viçoso e água a saltitar nos ribeiros, mas mesmo assim as flores lá conseguem despontar no meio dos olivais e as amendoeiras exibem o mesmo esplendor de sempre. Ao fundo, sobre alta penedia, descortina-se a silhueta do Castelo de Algoso, uma das sentinelas que vigiavam a fronteira do Condado Portucalense com o reino de Leão. Nos alvores da nacionalidade, a raia desenhava-se ao longo da margem esquerda do Sabor até à confluência com a ribeira de Angeira.

É por este território d"el Rei que a AEPGA inaugura os vários passeios que organiza ao longo do ano. Manuel, frequentador habitual, diz que esta saída primaveril "serve para aquecer", é como um aperitivo antes do estival L Burro I L Gueiteiro, cinco dias de caminhada acompanhada pelo som de tambores e gaitas-de-foles. "E muita animação", garante com um sorriso. Bem mais curto e pacato, o evento que este ano cumpriu a nona edição está vocacionado para famílias. Num olhar descobrem-se várias gerações, das cabeleiras brancas a anunciarem idades para lá dos 70 a uma criança a balbuciar as primeiras frases.

Os rapazes avançam com pose de cavaleiros e os trocadilhos sucedem-se. Numa pausa para trocar de montador, alguém se refere ao pêlo ruço de Tó como "cor de burro quando foge". Noutra ocasião, uma menina avisa os pais que vai abrandar o ritmo: "Estou a ficar com dor de...", e nem precisa de terminar a frase para ser entendida.

Assim se passam os quatro quilómetros que separam Atenor de Gregos, aldeia vizinha dedicada à produção de leite. Não é um mimo de povoação, nem a quantidade de vacarias a tornam particularmente aromática. Os passos estugam-se para pena dos catraios que vêm à porta espreitar a estranha procissão. A partir dali é sempre a descer, até ao prado que nos acolhe para o almoço à sombra de azinheiras.

Um ogre que não é

Estendem-se mantas e alforges, refrescam-se os pés no ribeiro que desliza ali ao lado, mete-se conversa com os companheiros de aventura. "Nossa! Que legal! Ainda não estou acreditando!" Há dois dias que Juliana, brasileira de Belo Horizonte, está nas nuvens, desde que deixou Liverpool em direcção a (julgava ela) Dublin. Acabou por aterrar no Porto, onde a esperavam as amigas, responsáveis pela maior surpresa da sua vida. O marido foi cúmplice desta "saída de raparigas", que demorou meses a preparar. Com a mala feita, só junto ao balcão de check-in lhe disse que não embarcava. Desde então Juliana não sabe o que vai acontecer no minuto seguinte - " "Tou adorando!". Os planos estão bem guardados com Sónia, a única portuguesa do grupo que inclui Dee, irlandesa, Lee, canadiana, e Davinia, uma inglesa impressionada com a tranquilidade das crianças: "Vê-se que estão a adorar cada momento."

Garantimos que não fomos os únicos a ler no programa que durante a sesta burriqueira as pinturas na natureza seriam orientadas por Shrek. Estávamos à espera de ver algum membro da organização aparecer pintado de verde ou, no mínimo, com umas orelhas que lembrassem o carismático personagem.

Quando surgiu, tendo como únicos adereços caixas com papel e lápis de cor, pensámos: se este é o ogre, escolheu a versão príncipe garboso, depois de ter tomado a poção. Filme 2, portanto.

Sem demoras, Shrek põe os miúdos à cata de musgos, flores, palha, qualquer coisa que possam utilizar nas colagens. Algumas instruções ("Não é preciso muito, basta sujar os dedos") e ali estão vinte pequenos artistas entusiasmados, orgulhosos das obras que vão surgindo: montanhas com casas no sopé, caminhos floridos, árvores e... "Quem se atreve a desenhar um burro?". Enquanto a exposição se espalha pelo prado, aproveitamos para perguntar ao monitor qual o seu verdadeiro nome. "Shrek!". Não preciso perguntar de novo, já está habituado ao quiproquó: "É mesmo Schreck, só que se escreve de maneira um pouco diferente. É alemão, significa susto." Quando relemos o programa vemos que o apelido está correcto. Numa partida pregada pelo cérebro ignorámos os "cc" - se havia burros no programa fazia todo o sentido um ogre maldisposto a acompanhar.

Miguel é o oposto, mas já acha piada ao equívoco. Quando chegou à região, há uns meses, estava a meio do projecto Douro Acima, pintando o rio, da foz até à nascente. Em Atenor, aprendeu a lidar com os animais e durante cinco dias viajou com um, acampando pelo caminho. "Éramos o Schreck e o Burro, a percorrer os montes." Agora que a missão está terminada continua a regressar, com frequência. "Quando cheguei aqui era para ficar três dias, fiquei um mês."

Muita música

Ouviremos histórias semelhantes. "Tem sido uma aventura", diz Cláudia, da direcção da AEPGA. Veio de Lisboa há 15 meses. Consigo trouxe o burrico que guardava numa quinta em Leiria e visitava todos os fins-de-semana. "Daqui a pouco está pronto para vir aos passeios."

Ana, também da capital, contraria a ideia de que a vida no campo é pacata: "Desde que vim ainda não parei." Ela faz parte da associação Aldeia, cujos objectivos são contribuir para a preservação da cultura e tradições que sobrevivem nos meios rurais. Nas actividades que organizam incluem-se uma oficina de construção de brinquedos elaborados com matéria vegetal (o poster mostra uma boneca feita com uma papoila), cursos de apicultura, de cestaria e de ilustração científica.

Já a associação Lérias, que gere o café no centro de Atenor, aposta na gestão de projectos artísticos e culturais. Na escola de música tradicional que estabeleceram em Palaçoulo, povoação famosa pela sua cutelaria, há aulas de gaita-de- foles, acordeão, percussão e teatro. Todas as sextas-feiras correm as Casas do Povo das aldeias vizinhas para animar festas, que tanto podem ser bailes tradicionais, como de reggae ou com temas dos anos 80.

Ali perto fica Sendim, terra de músicos. Dali são originários alguns membros dos Galandum Galundaina, ali nasceu a banda de rock agrícola Pica Tumilho e muitas bandas de garagem (ou celeiro) que todos anos mostram o que valem num encontro de músicos. Em Agosto, a vila é palco do concorrido festival Intercéltico.

"A diferença com Lisboa é que aqui é fácil arranjar espaços", continua Ana, "há sempre um pavilhão, uma sala vazia". Ou uma escola primária desocupada, transformada no café que a Lérias agora ocupa. Embora o presidente da Junta de Freguesia já tenha avisado que mais cedo ou mais tarde terão de a devolver: é que com tanta gente nova a chegar a Atenor, qualquer dia a escola poderá ter de reabrir.

Para já são as crianças do passeio a encherem a aldeia de gritos alegres. Os mais resistentes ainda levarão os burros até aos estábulos, revezando-se no uso da forquilha para lhes darem palha. Após o jantar ainda vão rir-se com as pantominas da peça de teatro e dançar no baile de música tradicional.

No dia seguinte, um terço do grupo sairá à conquista do Castelo de Algoso. Os restantes derramam-se pela região, em busca de programa alternativos. Há a Festa do Pão em Caçarelhos, cruzeiros no Douro, miradouros sobre as arribas, mil e uma sendas para descobrir, a pé e de bicicleta. Nessa busca, acabámos por encontrar um novo recanto, junto ao Angueira. Ficaremos por ali, a seguir o rio e o rasto de lontras. Ao lado, num lameiro ressequido, um burro zurra. Do céu escuro caem as primeiras gotas de chuva.

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