Esta cidade não se conhece numa hora

Foto
A Igreja de San Juan é uma das muitas românicas de ZamoraGrande parte dos edifícios Arte Nova encontram-se na Rua de Santa Clara

Situada na orla do Douro, a uma centena de quilómetros da fronteira portuguesa, Zamora conta com 23 igrejas românicas, inúmeros edifícios de Arte Nova e um punhado de museus. António Sá (fotos) e Ana Pedrosa (texto) foram à procura do património e acabaram por descobrir uma cidade aprazível, com muitos espaços verdes, animados bares de tapas e ruelas por onde passaram alguns protagonistas da História ibérica

A Bem Cercada. Em tempos de guerra, Zamora mereceu o epíteto graças ao conjunto de muralhas que protegeu a urbe durante séculos de invasões, ataques e lutas fratricidas, como a que motivou o cerco de 1072, a que sucumbiu após sete meses de intensa resistência. Dessa época ficou a célebre frase, que os locais tanto gostam de repetir: "Zamora não se ganhou numa hora".

Em tempos pacíficos, a cidade continua bem protegida, agora pelas águas mansas do Douro. Aqui o rio é espelho onde se miram as torres das igrejas, as casas em cascata ribeirinha e os choupos esguios, é vereda para os passeios de caiaques que ali desaguam ao entardecer, é cenário para piqueniques em tardes de estio e para os jogos de cartas dos amigos do costume que nas suas margens marcam encontro, é companhia serena ao longo da extensa ecopista que rodeia a cidade.

Relaxar à beira-rio pode ser uma das razões para visitar Zamora (porque não?), embora a cidade tenha muito mais para oferecer. Sejam os edifícios Arte Nova que justificam a sua inclusão no clube restrito de cidades que integram a Rota Europeia do Modernismo (tal como Barcelona, Paris, Antuérpia e Ljubljana) ou a maior concentração de monumentos românicos do Velho Continente. E ainda uma mão-cheia de museus (da iconografia religiosa da Semana Santa às esculturas de Baltasar Lobo), bares de tapas inigualáveis e um dédalo de ruelas por onde passaram alguns protagonistas da História ibérica.

Aqui nasceu Portugal

Por mais que se procure, a inscrição não se encontra em parte alguma, nem há por aqui placa ou monumento que celebre o nascimento de um país. Mas a verdade é que foi dentro destas muralhas, pela assinatura do Tratado de Zamora, a 5 de Outubro de 1143, que Portugal viu reconhecida a sua independência. Por essa altura já o burgo estava bem estabelecido como ponto estratégico nas lutas ibéricas pela reconquista. Situada entre o reino das Astúrias, a norte, e a sul pelas vastas planícies dominadas pelas tropas muçulmanas, entre os séculos VIII e X a cidade (que seria baptizada de Azemur - olival silvestre - pelos árabes) mudou de mãos várias vezes, ora estando sob a alçada dos seguidores do Islão ora controlada pelos crentes na Bíblia. Mas no século XII eram já os templos católicos que floresciam, erguendo-se na cidadela medieval e nos vales adjacentes.

Muito para trás tinha ficado a resistência lusitana contra a conquista romana da península, onde se destacou Viriato, que os zamoranos chamam a si, dando-o como nascido em Torrefrades, uma aldeia da província. Por isso se ergue uma estátua de dois metros na praça com o seu nome, uma das principais e mais bonitas do centro histórico, com tílias a darem sombra ao descanso dos viajantes, entre o antigo Palácio dos Condes de Alba y Aliste (agora recuperado como Parador) e o edifício do governo provincial.

Hoje, quando as fronteiras são meras sinalizações nas estradas e algumas datas se vão apagando da lista de feriados, estas velhas questiúnculas são esquecidas. Mal o nosso portunhol nos denuncia, nuestroshermanos recebem-nos de braços abertos. Com a raia a uma centena de quilómetros, quase todos conhecem bem Portugal e os restaurantes onde se come tão bem o bacalao. Que nós também haveremos de provar por aqui, frito num leve polme enriquecido com molho de mel. Delicioso.

Art Nouveau e Arte Antiga

Mas não vale a pena mencionar já o jantar, se por ora a manhã ainda mal começou. Depois da passagem pelo posto de turismo, estamos agora artilhados com mapas, guias e brochuras. Uma delas reúne informação sobre diversas visitas guiadas, desde rotas gastronómicas com passagem por vários templos de bem comer (com a indicação de que "as tapas serão acompanhadas com vinhos das três regiões zamoranas com Denominação de Origem"), a um trajecto nocturno intitulado Noites do Douro, passando por um percurso pelas igrejas mais emblemáticas e terminando na Rota Europeia do Modernismo. µ

± É precisamente por aí que começamos, embora a solo, porque é mais divertido. Com um mapa ilustrado na mão, erguemos os olhos à procura das fachadas profusamente decoradas, de linhas curvas, com adornos florais nas janelas e nas varandas, que caracterizam o estilo Arte Nova. A busca pelos 19 sítios que integram este percurso não é difícil, até porque a maior parte se concentra nas imediações da Rua de Santa Clara, logo a seguir à Plaza Mayor. Esta é a zona comercial por excelência onde, a partir de finais do século XIX, os abastados comerciantes e industriais fizeram questão de construir as suas moradias no mais internacional e cosmopolita dos estilos europeus. Ao crescimento económico da altura juntou-se a chegada à cidade do arquitecto catalão Francesc Ferriol, que em Barcelona tinha colaborado com os grandes mestres do modernismo. Contratado pelo município, é ele o responsável pela concepção de grande parte dos edifícios classificados.

No mapa vamos riscando as mais belas descobertas - como o Casino cujas escadarias levam a um restaurante no primeiro piso ou a Casa de Norberto Macho -, embora algumas se escondam atrás de tapumes de fachadas em reconstrução, acima de lojas indistintas ou no canto sombrio de uma rua estreita. Pelo caminho vão-se descobrindo outras preciosidades, como o Mercado de Abastos, também de traça Arte Nova, apesar de não fazer parte da lista que possuímos.

O passeio devolve-nos à Plaza Mayor, onde afluem as ruas mais carismáticas do burgo: a Calle de los Herreros, uma viela apinhada de tascas e locais de diversão nocturna, a pitoresca Balborraz, cujas casas de fachadas antigas e varandas de ferro forjado descem em cascata até ao rio, e a Costanilla, com o seu ar provençal.

Seja qual for o percurso escolhido para percorrer o núcleo histórico damos, invariavelmente, de caras com uma igreja românica. Com efeito, dos 23 templos cristãos erguidos entre os século XI e XIII para celebrar as vitórias sobre os muçulmanos, catorze encontram-se na zona muralhada, enquanto que os restantes se espalham pelas cercanias. Entre aqueles que vamos espreitando, destaca-se o interior depurado da Igreja de la Magdalena, a rosácea da de San Juan, a Igreja de San Cipriano, um dos mais antigos, e a de San Isidoro, num larguinho pacato, sempre engalanada por cegonhas. Pelo meio descortinam-se pracetas recatadas, uma ou outra loja de recuerdos (onde avultam as figuras da Semana Santa, quando estas mesmas ruas fervilham "com austeridade, emoção e fervor religioso"), vielas silenciosas, miradouros inesperados.

Sobre tudo isto paira a mole da Catedral, encimada por um zimbório de inspiração bizantina, com dezasseis arcos rematados por uma original cúpula em escama. A relativa sobriedade das paredes exteriores contrasta com o interior exuberante: uma nave central rodeada por diversas capelas dignas de registo como a de Santa Inês e a de Santo Ildefonso, com o seu altar magnífico. No centro ficam os cadeirões do coro, trabalhados com uma minúcia que impressiona.

Igualmente notáveis são as peças do Museu Catedralício, da vasta colecção de tapeçarias flamengas à custódia quinhentista, uma das peças de prata mais importantes de Espanha.

Uma cidade para desfrutar

Para recuperar o fôlego depois de tanta arte admirável subimos à torre mais alta do forte, para uma vista de pássaro sobre as planícies de Castela-Leão, e deambulamos pela sombra do Parque do Castelo, onde se espalham algumas esculturas de Baltasar Lobo, um dos artistas contemporâneos mais destacados do país. Vale a pena entrar no museu adjacente, dedicado a este filho da terra, para conhecer as suas obras de formas depuradas e de uma imensa ternura, como as da série Maternidade.

Descendo agora para a beira-rio, deparamos com as azenhas dos Olivares, moinhos de origem medieval, recentemente recuperados como centro de interpretação das industrias tradicionais ligadas à água. Além dos mecanismos recuperados, vários painéis mostram a biodiversidade deste troço do Douro e as gentes que dele fizeram ofício: moleiros, pescadores, barqueiros. No dia seguinte haveremos de reconhecer um dos rostos fotografados, na figura de uma mulher que nos serve um prato de sardinhas numa esplanada perto dali.

Com tanto que ver, é bom abrandar nos muitos espaços verdes que a cidade tem para oferecer. A cada esquina se encontram parques infantis para as crianças darem rédea solta à energia, pracetas com bancos para repousar as pernas sob o abrigo de árvores frondosas e jardins bem cuidados. Dezasseis quilómetros de ciclovia dão vontade de seguir aqueles que se exercitam à beira-rio, mas com vagar para apreciar o cenário. Para isso há até bicicletas gratuitas disponíveis - de Maio a Novembro - espalhadas por treze pontos da cidade. A ecopista liga dois parques urbanos: Três Arboles, na margem norte do Douro, e o imenso Bosque de Valorio, cruzado por ribeiros e longas alamedas.

Pode-se optar também por cruzar a ponte românica em direcção à margem sul, de onde se obtém a melhor vista panorâmica sobre Zamora, sobretudo ao fim da tarde, quando o sol doura num tom antigo as paredes medievais.

Findo o dia, o corpo pede o aconchego de um copo tomado entre amigos no ambiente cálido de um méson. Difícil a escolha que se apresenta na barra, entre pinchos, callos, figones, tiberios, todo um léxico gastronómico para aprender e saborear. E eis que ouvimos falar do cabrito Dios nos libre, dos estufados de grão-de-bico, do farto arroz à zamorana. Ainda se balbuciam desculpas de que não há estômago para tanto mas, no meio do burburinho e da confusão, alguém lança um "a tapear!", como se fosse um grito de guerra. Percebendo que este é um verdadeiro passatempo local, deixamo-nos ir, avançando noite fora à conquista de bares nunca antes experimentados.

Sugerir correcção