Há festa na aldeia - até ao Dia de Reis

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Num ciclo de doze dias, que se estende da noite de Consoada até aos Reis, em muitos lugares do nordeste transmontano os rituais católicos convivem com celebrações que remontam à antiguidade pagã. Com máscaras, chocalhos, trajes coloridos e muita animação, as Festas dos Rapazes são uma forma diferente de viver a quadra, explicam Ana Pedrosa (texto) e António Sá (fotos)

Quando o Carnaval se aproxima, as crianças começam a pensar nos disfarces com que se irão camuflar nos desfiles escolares. No extremo norte do país isso também acontece, mas por ali, em vez de Batman, pirata ou vampiro, uma boa parte dos rapazes pede disfarces de careto. Então é ver as mães a vasculharem os recantos da casa, em busca de fatos que tenham ficado dos irmãos mais velhos, ou à procura de trapos e mantas em desuso com que improvisam os trajes coloridos que hão-de alegrar os dias frios e cinzentos do Entrudo transmontano.

Na verdade, este fascínio das crianças por estes seres - metade vilões de ar diabólico, metade super-heróis de energia inesgotável - começa por alturas do Natal, quando as famílias se deslocam para as aldeias das proximidades. Num ciclo de doze dias, que se estende da noite de Consoada até aos Reis, em muitos lugares do nordeste os rituais católicos convivem com celebrações que remontam à antiguidade pagã, em que se festejava um novo ciclo da Terra e da natureza com a chegada do solstício de Inverno.

São as Festas dos Rapazes, protagonizadas por jovens com mais de 16 anos, onde se evocam os antigos rituais de iniciação que marcavam a passagem da adolescência à maturidade.

Também conhecidas como Festas de Santo Estêvão, dos Belhos, da Mocidade, do Inverno, do Chocalheiro, do Santo Menino, dos Reis, de acordo com tradições mais enraizadas em cada aldeia, todas têm em comum a presença de mascarados, os actos religiosos e a música que brota da gaita-de-foles ou da flauta pastoril, a que se junta o som do tamboril e do bombo. A maior parte concentra-se no concelho de Bragança, embora as celebrações também se estendam por algumas freguesias dos concelhos de Vinhais, Mogadouro, Mirandela e Miranda do Douro, onde, para fazer jus à tradição, os jovens envergam saias por cima das calças e xailes coloridos pelos ombros.

Curioso é que, embora muitos destes locais estejam cada vez mais despovoados, as festas têm ganho um novo ânimo, seja porque os moços da cidade se juntam aos das aldeias onde têm raízes, ou porque se vai permitindo a entrada de raparigas no grupo de caretos. As imagens que chegam através das televisões, eventos como a bienal Mascararte, e a presença na cidadela do castelo de Bragança do Museu Ibérico da Máscara e do Traje e da recém-inaugurada sede da Academia Ibérica da Máscara, acabam também por contribuir para uma maior divulgação dos eventos e para o crescente orgulho em preservar tradições antigas.

Vícios privados e bebedeiras públicas

Em Varge, aldeia a dez minutos de Bragança, mantém-se uma das mais tradicionais celebrações do género. No dia 25 de Dezembro, logo a seguir à missa matinal, as pessoas juntam-se numa pequena praça para presenciarem as primeiras diabruras dos caretos: a declamação das loas, crítica social onde são desvendados publicamente os mais íntimos e embaraçosos segredos dos seus habitantes. Os actores são rapazes disfarçados com máscaras de lata e um fato de trapos coloridos, à volta do qual amarram alguns chocalhos. Com uma genica desconcertante, cada um deles rebola à vez na palha espalhada pelo chão e sobe para cima de um carro de bois, utilizado como palanque. É do alto deste púlpito profano que, quadra após quadra, são postas a nu as verdades de um ano na vida da povoação.

Desde casos amorosos até desavenças familiares, vícios privados a bebedeiras públicas, todos os casos conhecidos são relatados juntamente com o nome dos envolvidos. A população olha e escuta atentamente num misto de curiosidade bisbilhoteira e receio de ver o seu nome, ou o da sua família, associado a um escândalo até aí mantido em segredo. Mas os caretos não se intimidam e a cada verso desferem rudes golpes na integridade moral de cada um. Sem papas na língua recordam uma vizinha "que não gosta do Manecas / Mas ela muda de namorado / como muda de cuecas. / Como muda de cuecas / eu nisto aqui não brinco / no ano que está passando / ela já andou com cinco". Já a sua prima "Namora com um espanhol / que tem a cabeça torta / é um grande molengão / parece uma mosca morta".

Outras vezes a crítica revela-se pintada nas paredes, como acontece junto a um estabelecimento local: "Cervejaria Machado, de dia não abre, à noite fechado". Em qualquer dos casos, os caretos - aqui elevados ao estatuto de "seres mágicos e proféticos que tanto assumem as funções de sacerdote como de diabo, louvando os mortos e criticando os vivos" - gozam de uma liberdade quase ilimitada, fazendo das críticas uma expurga dos males da comunidade que, resignada, as aceita.

Mas os diabólicos caretos também têm a sua faceta humana. Durante a tarde, acompanhados pelos gaiteiros e mordomos - jovens não mascarados que têm a incumbência de organizar a festa - dão a volta pela aldeia para visitar todas as casas, num sincero desejo de boas festas e de um próspero ano, que está prestes a entrar. Em troca os anfitriões estendem bandejas douradas de doces natalícios e dão a beber vinho do Porto, aguardente e licores caseiros. Os dias de festa terminam sempre com um abundante jantar, servido apenas ao grupo restrito dos seus adolescentes protagonistas e confeccionado por eles mesmos, seguido de baile, onde rapazes e raparigas têm oportunidade de se conhecer melhor. Mas a passagem à vida adulta é também feita de sacrifícios e responsabilidades. Enquanto os festejos duram, os rapazes têm de se levantar bem cedo, aos primeiros acordes da gaita-de-foles. Quem bebeu em demasia e tardou em acordar, corre o risco de ser arrastado para a rua completamente nu ou acabar no meio do rio num buraco aberto no gelo.

Enquanto isso, na vizinha Aveleda, o ritual repete-se com ligeiras alterações. Os jovens figurantes da festa são também os primeiros a sair da missa, correndo a casa para envergar o traje de farrapos, a maior parte das vezes herdado de um familiar e já com muitos anos de uso. O povo junta-se num largo, aguardando a chegada das estranhas personagens, que povoam os pesadelos dos mais pequenos. "E ele não tem medo?", pergunta uma garota à mãe de um bebé que assiste muito animado ao espectáculo. Para a miúda, apesar de conhecer bem os rostos que estão por trás, é impossível não se assustar com as máscaras de lata, de chifres compridos e narizes pontiagudos, que sublinham o fim de cada "comédia" com saltos e gritos agudos. Aqui, para além dos barulhentos chocalhos, os caretos também trazem consigo bexigas de porco que sugerem um culto primitivo da fertilidade. Novamente, as quadras desvendam os acontecimentos do ano anterior, dando especial relevo aos desaires amorosos dos rapazes, com uma pitada de malícia. O aviso é dado logo ao início: "São passagens de todo o ano/ não podem levar a mal / já vêm da tradição / estas quadras de Natal".

Afinal de contas, e apesar da diversão dos adultos, a festa é sua. Por isso, mal as quadras se interrompem sem aviso, correm para apanhar as raparigas, numa explosão de guinchos e gargalhadas. Logo a seguir virá o almoço só para eles, a volta pela aldeia à tarde e o baile nocturno aonde poderão surgir novos amores, desmascarados no ano seguinte.

Máscaras, reis e vassalos

Na manhã do dia 26, a atenção concentra-se em Ousilhão, no concelho de Vinhais, onde começa a Festa de Santo Estêvão. Na sua essência, é também um ritual de passagem dos jovens à idade adulta mas aqui as celebrações religiosas assumem uma maior importância. Os protagonistas também são ligeiramente diferentes, aparecendo a figura dos "moços", representada por quatro rapazes de chapéu e lenço pelas costas. Anunciados pelo toque da gaita e do bombo, vão entrando em cada casa onde cumprimentam as famílias com uma canção e uma peculiar dança à volta da mesa. Antes de saírem em direcção a outra moradia, recebem algum dinheiro como esmola para a Igreja e servem-se das iguarias dispostas sobre a mesa. Os caretos (aqui chamados de "máscaras"), vestidos com pesados trajes de lã e máscaras de madeira, seguem-lhes o rasto: logo após a saída dos "moços" fazem jus à sua fama de castigadores dos vivos, entrando nas casas para assustar, surripiar algum fumeiro e trocar de lugar tudo aquilo que está ao seu alcance. Durante todo o dia gritam, dão vida a figuras castiças como ciclistas ou barbeiros e imitam vozes do outro mundo; rebolam, fazem fogueiras e apavoram os animais, com uma vitalidade sobrenatural.

Talvez porque uma crítica social recheada de escândalos e palavras menos próprias seja incompatível com o carácter mais cristão desta festa, em Ousilhão não há loas. Em vez disso, o momento mais esperado acontece depois da eucaristia, quando o padre abençoa a coroação do novo Rei e dos seus dois vassalos. Estas três personagens, substituídas todos os anos, têm a responsabilidade de oferecer a comida para os festejos e de suportar algumas das suas despesas. À cerimónia da coroação, realizada no exterior diante de uma mesa decorada com as melhores bebidas e doces, segue-se o leilão de uma outra mesa - a de Santo Estêvão - sobre a qual se encontram chouriços, presunto, pão e fruta, entre outras oferendas, que os habitantes aí deixaram quando iam a caminho da igreja. Pelo meio, os "moços" vão distribuindo vinho e o indispensável pão bento.

Prova da vitalidade destes rituais, no início deste mês, Ousilhão ficou entre os três finalistas seleccionados entre mais de uma centena de candidaturas ao concurso Qual é a tradição de Natal mais criativa de Portugal?. Cabe ao viajante julgar, certo de que estará a assistir a uma das formas mais genuínas de viver a quadra.

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